Quando os "okupas" são agricultores urbanos

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Ricardo Silva

Nem é muito o sustento que dali se tira, mas a Horta do Monte move-se também num plano ideológico, promovendo hábitos como o de consumir localmente

a Na cidades não há hortas. Há avenidas, ruas tortas, onde crescem os letreiros. Mas onde crescem as alfaces, nabos, rabanetes, limoeiros? - quem desce de carro a Calçada do Monte, no centro de Lisboa, vai torcendo o pescoço para trás para poder ler até ao fim a frase que corre pelo muro de graffittis abaixo. Na Graça há uma horta num terreno íngreme cercado de prédios e de carros, que é miradouro para a Mouraria e o Castelo, com o Cristo Rei, do outro lado do rio.

É sexta-feira, fim de manhã, dia de trabalho comunitário, como são também segundas, quartas e sábados. A horta é de todos e para todos, mas também há espaço para talhões individuais, muitas vezes preferidos pelos mais velhos, chegados a Lisboa há muito e que encontram na horta uma forma de regressar às suas aldeias.

O sol aperta, queima, mas há vários jovens de enchada na mão - alguns deles estrangeiros - e de um lado para o outro. É preciso alargar caminhos, colocar vedações, melhorar o sistema de rega (a água, cedida pela câmara e armazenada nuns reservatórios, é pouca e há que poupá-la). Cheira a verde, há muitas borboletas brancas, vê-se uma joaninha aqui, um lagarto ali, depois uma abelha. Bom sinal.

Uma das mulheres de pele queimada do trabalho é Inês Clematis, a actual responsável pela horta. Estudou pintura, mas está ligada à medicina tradicional e à agricultura e pertence ao grupo que começou com o projecto em 2007. "Começámos por plantar uns canteiros", diz. Depois foram ocupando o resto do espaço e o projecto cresceu, ganhou massa crítica, conta José, urbanista, que também acompanha o projecto desta horta comunitária desde o princípio. Trabalha-se agora no sentido de aproximar o método de cultivo dos príncípios da permacultura, porque se acredita que isso poderá ajudar a resolver alguns dos problemas do solo. "Temos 20 ou 30 pessoas a trabalhar na horta regularmente."

Uma delas é Dacil. Chegou das Canárias em Setembro, em Erasmus. Soube da horta num panfleto em que pegou de um posto de informação a turistas e como vive em Alfama e já não tem aulas, o tempo para isto é mais do que muito. À semelhança do que acontece com muitas hortas urbanas de Lisboa esta é ilegal, mas a postura da autarquia não é hostil a estas iniciativas. Pelo contrário, Lisboa tem um plano para a agricultura urbana, que prevê a criação de hortas e a reabilitação de outras que já existem. Dacil já não quer voltar para a aldeia dos pais, em Tenerife, onde se recorre a outros métodos na agricultura: "Aqui não se usam os químicos que se usam lá."

O projecto surgiu da vontade de um grupo de pessoas de dar uma nova vida a um terreno municipal que estava abandonado e, conta Inês, servia de abrigo a toxicodependentes. "Esta rua era conhecida pela elevada criminalidade." Tudo isso tem desaparecido. Esse baldio que a Horta do Monte também foi em tempos, como tantos outros, depósito de lixo de quem passava pela rua de cima, a Damasceno Monteiro. E, contam os mais antigos, pelo menos nos últimos quarenta anos, esteve abandonado.

Seringas, baterias, entulho. Encontrou-se de tudo das primeiras vezes que se mexeu aquela terra compactada e seca, que tem melhorado com a mistura de composto, para o qual a vizinhança é convidada a contribuir. Há gente a entrar e a descer os socalcos em direcção ao compostor onde se pode deixar o lixo orgânico que há de tornar-se fertilizante.

O perigo de contaminação dos alimentos que crescem em ambientes urbanos preocupa Inês, mas, argumenta, "também há que ver o histórico dos terrenos".Em todo o caso, tencionam analisar alguns produtos da horta, para perceber se existem problemas e, nesse caso, tentar resolvê-los. "Esta questão da contaminação não é tanto um impeditivo para as hortas urbanas seguirem. É um alerta para a falta de ética com que tratamos a terra.", conclui. Cláudia Sobral

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