Há 40 anos nasceram os drugstores

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O conceito de drugstore, veio dos Estados Unidos. Na imagem da esquerda, Joaquim Pinto, que está lá desde o início Joana Freitas

Era o tempo em que os centros comerciais eram drugstores e os banana splits estavam na moda. Em 1971, o Apolo 70 veio revolucionar a forma como se comprava, se convivia, e se via cinema em Lisboa.

a Eram gelados enormes, magníficos: bananas e bolas de cores coroadas por uma torre de chantilly com xarope de morango, que terminava numa solitária cereja caramelizada. Ou pelo menos foi assim que ficaram na nossa memória, quase 40 anos depois, os gelados do snack-bar do Apolo 70, em Lisboa.

O almoço no Apolo era um ritual de domingo. Atravessávamos o Campo Pequeno, entrávamos no drugstore - era assim que então se chamava - passávamos pela livraria, pelas lojas de decoração, pela tabacaria numa estrutura redonda, descíamos as escadas, lançando um olhar à loja dos animais, um estreito corredor encaixado no vão da escada, e entrávamos no snack-bar, deslizando pelos sofás para o nosso lugar.

E, de repente, no meio de uma conversa, alguém diz que o Apolo 70 faz este mês 40 anos, e as recordações voltam todas, uma mistura confusa de cãezinhos bebés a dormir enroscados uns nos outros em pequenas montras de vidro, gelados com todo o chantilly que se conseguia equilibrar em cima, e manhãs infantis no cinema.

Uma pesquisa rápida na Internet leva a uma velha foto a preto e branco da fachada do Apolo 70, e a um post de Pedro Rolo Duarte no seu blogue - com memórias que também misturavam "um irish coffee num bar minúsculo que havia na cave, ao lado do snack-bar", um "blusão de cabedal preto da Giannonne que se vendia numa boutique do rés-do-chão", as "caixas de soldadinhos da Airfix e tanques de guerra da Solido" da loja de brinquedos, "os hamburgueres e os gelados cheios de chantilly", "um filme de Jacques Tati num ciclo de cinema - talvez As Férias do Sr. Hulot", e ainda as "sessões da meia-noite com filmes de terror", que o irmão de Pedro podia ver - e ele invejava porque não tinha ainda idade para isso.

As memórias desse cinema estão nas mãos de Lauro António, crítico, realizador e director de programação do Estúdio Apolo 70 desde a inauguração do centro, a 26 de Maio de 1971, até meados dos anos de 1980. E, no meio dos dossiers da época, está o recorte do Diário Popular que noticia: "O Drugstore Apolo 70 (o maior da Europa) foi ontem inaugurado".

Não estará provado que fosse, de facto, "o maior da Europa", mas a inauguração do novo espaço comercial, na Avenida de Júlio Dinis, teve pompa e circunstância. Relata o jornal que "ao acto inaugural assistiram, entre outras numerosas individualidades de destaque nos meios comercial e financeiro, os drs. César Moreira Baptista e Xavier Pintado, secretários de Estado da Informação e Turismo e do Comércio", e ainda o governador civil e o comandante-geral da PSP.

Influência francesa

Não havia na altura nada comparável em Lisboa, diz o historiador Nuno Ludovice, que fez recentemente uma investigação sobre o Apolo 70. Tinha havido, ainda nos anos 50, na Baixa, duas ou três lojas que "anunciavam a espacialidade do Apolo 70", uma das quais a loja Rampa, do arquitecto Conceição Silva, que substituiu o tradicional balcão por uma "rampa sinuosa em betão armado, que evocava a promenade architecturale de Corbusier". O que surge com estes projectos (que, na altura, não tiveram continuidade) é um "sentido dinâmico da espacialidade", as formas são fluidas, tudo é redondo, a curva é um elemento marcante.

O Apolo 70 era assim - percorria-se como um longo corredor, entrando-se por uma porta e saindo por outra. Os candeeiros do tecto eram globos redondos, as costas das cadeiras do cinema tinham um círculo branco (projecto do arquitecto Augusto Silva e decoração de Paulo Guilherme), o tecto tinha efeitos ondulatórios, as paredes tinham espelhos, o quiosque/tabacaria (que ainda lá está, mas desviado do local original) era um cilindro envidraçado. E o snack-bar era uma espécie de vórtice de círculos com os balcões de madeira rodeados pelos individuais de quatro lugares.

O conceito de drugstore, explica Ludovice, veio inicialmente dos Estados Unidos, mas chegou a Portugal por influência francesa. Em Paris, tinha surgido, nos anos 60, o Publicis, com "um conceito unitário de espaço que agregava ambientes diversificados, mas integrados através das formas, das cores, dos materiais, da luz".

O Apolo queria comunicar essa modernidade - a começar pelo nome, uma homenagem às viagens do Homem à Lua, e a terminar no inovador bowling de quatro pistas. Nos arquivos de Lauro António está um outro recorte de jornal que conta o desfile de moda que antecedeu a inauguração do cinema: ""Uma linha jovem para jovens" (dominada por azuis e vermelhos gritantes) foi, justamente, o tema da passagem de modelos que assinalou a inauguração do cinema-estúdio do drugstore Apolo 70. Arrojados hot pants, saias com grandes aberturas, vestidos de inspiração cigana e botas desenhadas por Charles Jourdain para a Sapataria Mariazinha desfilaram, cingidos aos corpos esguios de Fiorella, Denise, Friquette, Mireille e Fernanda, perante as três centenas de convidados que esgotaram a lotação da acolhedora sala de espectáculos."

O cinema inaugurou com O Vale do Fugitivo, de Abraham Polonsky, o western que Lauro António escolhera para a estreia, e que vinha marcado pela polémica por ser, na realidade, uma metáfora da guerra do Vietname.

"A ideia era revolucionar o ambiente cinematográfico em Portugal", recorda o programador. Uma das grandes inovações do Apolo 70 foram as sessões da meia-noite. Lauro António tinha já feito uma experiência, pouco antes, no Vox, na Avenida de Roma, com Frankenstein Criou a Mulher, de Terence Fisher - uma sessão à meia-noite completamente esgotada, obrigando a, na mesma noite, fazer mais duas sessões porque o público recusava-se a voltar para casa sem ver o filme.

No Apolo 70, ao longo dos anos seguintes, passaram clássicos, westerns, comédias e os filmes fantásticos nas sessões da meia-noite. Tudo o que por lá passou está registado nos programas, desdobráveis com textos sobre os filmes, que eram entregues aos espectadores e que, durante bastante tempo, conseguiram evitar a ida à censura. Mas a época era já de "Primavera Marcelista" e as regras estavam menos apertadas, sobretudo para as salas de arte e ensaio. Guerra colonial não era um tema aceitável, mas, no domínio dos costumes, abrandava-se e já era possível mostrar filmes como A Piscina, com Romy Schneider. A estreia de Ivan, o Terrível, de Eisenstein, foi um acontecimento.

Cinema soviético

Veio o 25 de Abril, e o Apolo abriu-se a cinematografias que nunca tinham sido vistas em Portugal - da semana de cinema cubano ao cinema soviético, passando pelo húngaro e pelo checoslovaco. E, mais tarde, vieram os anos 80, outros centros comerciais (que já não eram drugstores), outras salas de cinema, outros gostos. O que é que mudou? "Mudou o mundo", responde Lauro António, que acabaria por deixar de programar o Apolo a meio dos anos 80 (a sala fecharia só nos anos 90).

No Apolo de hoje sobrevivem alguns dos espaços originais: a livraria, a farmácia, a loja dos animais, o snack-bar (fechado, mas com a esperança dos actuais proprietários de que possa reabrir), e o Pinto"s Cabeleireiro, onde, desde 26 de Maio de 1974, Joaquim Pinto corta cabelos a anónimos e a famosos (entre os quais, Cavaco Silva e Mário Soares). À Lusa, Joaquim Pinto recordou essa inauguração há 40 anos, "uma coisa linda", com "os porteiros fardados, o chão alcatifado, um autêntico luxo para a época".

Nos comentários deixados ao post de Pedro Rolo Duarte, há quem recorde ter visto no Apolo O Inimigo Público, de Woody Allen, O Meu Tio, de Jacques Tati, e há mesmo quem evoque "Maria Elisa a fazer de jornalista no filme India, ou Maria Barroso interpretando a Genoveva noutro filme estreado naquele cinema (Benilde ou a Virgem Mãe)."

Alguns falam da loja de brinquedos, dos cãezinhos na loja dos animais, do bowling. E muitos recordam os gelados com chantilly. Para terem resistido na memória de tantos, talvez estes fossem de facto tão magníficos como na altura acreditávamos que eram.

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