Os novos desafios de Demarcy-Mota
Falando pela primeira vez à imprensa, o encenador que agora chega à direcção do mais importante festival europeu explica como quer envolver todas as instituições para repensar
a identidade de uma marca. Ele quer fazer de Paris um palco
Emmanuel Demarcy-Mota tem um escritório relativamente esconso no último andar do Théâtre de la Ville (TdV), em Paris. Das janelas em meia-lua vê-se o Sena, as paredes não estão decoradas e têm a mesma cor amarelada da alcatifa. Não é gabinete glamoroso que se esperava do director de um dos mais importantes teatros europeus. Mas aos 41 anos não é o posto que o preocupa, é o que pode fazer com ele. Filho do encenador francês Richard Demarcy e da actriz portuguesa Teresa Mota, é o mais novo director de sempre do TdV, onde chegou há quase três anos e meio depois de ter dirigido a Comédie de Reims (2001-2007). Vimos o seu trabalho como encenador mais recentemente no último Festival de Teatro de Almada, com Casimiro e Carolina, e há uns anos, no São João e no Dona Maria, com Rinoceronte, Peine d"Amours Perdues e Um Homem é um Homem. E foi um dos membros do júri que, a convite da EGEAC (a empresa municipal que gere os teatros Maria Matos e São Luiz) escolheu, no ano passado, o novo director do São Luiz, em Lisboa. O seu percurso e a sua tenacidade foram razões que pesaram numa escolha, pessoal, do anterior director do TdV, Gérard Violette. E foi, também, a escolha de Bertrand Delanöe, presidente da Câmara de Paris para a direcção do mais importante e influente dos festivais europeus, o Festival de Outono (FdO), fundado por Michel Guy e mais tarde dirigido por Alain Crombecque, que morreu em 2009. A sua nomeação, no início de Maio, foi, aliás, a mais consensual de todas as danças de cadeiras que ocuparam Frédéric Mitterrand, o ministro da Cultura francês, nos últimos meses.
É a primeira vez que um encenador vai dirigir o FdO e, para Demarcy-Mota, "foi algo de inesperado por causa das tensões políticas". Estava em jogo um festival que serve de cartão-de-visita para a cidade e que gere três milhões de euros, co-financiados pelo Estado e pela cidade, mas com forte presença dos mecenas, entre eles Pierre Bergé, o todo-poderoso filantropo cultural, e o mais importante mecenas do festival. Demarcy-Mota sabe a responsabilidade que agora carrega nos ombros, ele que chegou a ser equacionado para a direcção de Avignon, mas que recusou porque "era muito importante continuar a desenvolver a linha de trabalho" que começou há quase três anos no Théâtre de la Ville. "Não me parecia correcto sair, mesmo sendo uma proposta excitante. Não era compatível com uma escolha pessoal, não era sério para com a equipa nem para com um projecto de abertura de um teatro que se quer internacional." Isso levou-o a recusar encenar para o Berliner Ensemble ou para a Ópera de Paris. "Não quero sair do local onde trabalho", justifica.
Formar o olhar
Os últimos três anos significaram, para o teatro, uma outra forma de se pensar no interior da própria cidade e na relação com os artistas que aí são apresentados, muitos deles dependentes das suas co-produções. É este modelo que quer levar para o festival, cuja direcção assume, oficialmente, em Setembro, e que só em 2013 terá exclusivamente uma programação por si assinada, mesmo que já esteja a trabalhar com a equipa interina "a activação de linhas que devem funcionar em pleno em 2013". E que linhas são essas? Demarcy-Mota prefere substituir a palavra programação por outra: reflexão."É preciso reconstruir uma identidade do festival, no sentido em que é preciso repensar e reinventar as relações de parceria com as diferentes instituições parisienses em torno de projectos que devem ser definidos em comum, tendo como eixo principal a exigência que o FdO representa", começa por dizer. "Penso no FdO como um lugar federador na evolução das disciplinas artísticas mas também na sua relação com o público, sobre o qual há toda uma reflexão a fazer."
Ao longo dos anos o FdO foi sendo visto como uma temporada e não tanto como uma programação. Em muito devido à ausência de uma coordenação entre os diversos parceiros, às redes entre festivais e às relações institucionais que levaram a estratégias de promoção de países-tema (este ano, a Argentina; antes, o Japão, os Estados Unidos, o Médio Oriente e a Inglaterra). "É preciso regressar à origem do próprio festival, em 1972. O FdO dos anos 70 e 80 formou um público, um olhar e uma cultura em relação às disciplinas artísticas e aos artistas do mundo, do teatro, dança, cinema, música e artes plásticas. E, hoje, deve ter também uma função de formação do olhar sobre as obras e não apenas de apresentação dos espectáculos." Uma das críticas que lhe eram apontadas, sobretudo quando comparado com outros festivais que lhe copiaram o modelo, como o Kunsten, em Bruxelas, era de se ter perdido na sua relação com o próprio tecido da cidade. Demarcy-Mota diz que "é preciso que o FdO crie o seu próprio público, a sua própria linguagem, reflicta sobre a sua responsabilidade, bem como a dos parceiros, na construção de uma identidade comum que respeite as identidades de cada um deles, [abandone] o lado institucional, e possa reflectir sobre a sua responsabilidade em relação aos novos públicos e a sua relação com as novas gerações". O que propõe é "uma reflexão sobre a própria cidade enquanto palco". O FdO deverá "manter uma independência em relação às obras que se apresentam e implicar-se mais com uma cidade, com as populações de uma cidade, e não entender que é só uma população."
Paris, diz, "é uma cidade com uma oferta que é concorrente do FdO e o festival portou-se, nos últimos anos, como um selo e uma marca. Isso não chega e é preciso ser questionado. Inclusivamente se as disciplinas artísticas se devem manter as mesmas todos os anos. Deve manter-se como um lugar de reflexão e de acção sobre as novas dinâmicas, com uma ambição agregadora".
E dá exemplos concretos, para além da "necessidade de repensar a relação do TdV com o FdO": o Théâtre de Chaillot e "a reflexão sobre o lugar da dança no quadro europeu", o Théâtre de la Colline "e a responsabilidade para com os autores teatrais vivos", a Ménagerie de Verre "e as propostas mais arriscadas", e o Ódeon "e a questão europeia". Esta é, aliás, uma preocupação corrente no TdV, que, pela mão do programador, e só para falar no caso português, mostrou recentemente trabalhos de Ricardo Pais e Paulo Ribeiro e se empenhou na campanha de promoção da candidatura do Fado a Património Mundial. E resume: "O FdO deve hoje redescobrir por que é que foi importante e necessário para as artes, na cidade e em França [antes de decidir por que] é que é importante [a peça] apresentar-se no Festival de Outono."