No mundo da música (quase) perdida
No Instituto de Etnomusicologia, uma pequena equipa lançou-se num trabalho inestimável. Preservar a música gravada em Portugal. Porque ela existe, e em abundância, desde o início do século passado. Sairá dali a base do futuro Arquivo Fonográfico Nacional, há muito reclamado pela directora do instituto, Salwa Castelo-Branco, e que o Ministério da Cultura anuncia que será instalado em Évora
Em 1927, Elisa Carreira cantava Rapazes Não Se Casem num fonograma de 78 rotações editado pela Ódeon. Por essa altura, havia conjuntos, como o da Guarda Municipal de Lisboa, a gravar valsas, boleros, polkas e rapsódias transmontanas. E editoras como a Machinas Falantes ou a Luzofone, dos Grandes Armazéns do Chiado, a par das conhecidas multinacionais Pathé, His Master"s Voice ou Brunswick. Era um tempo em que ouvíamos Jorge Bastos cantar um As Freiras de Santa Clara que se encontra agora guardado no Museu Nacional do Teatro. Estas edições são preciosidades de um tempo distante, apagadas num país com dificuldades em lidar com a memória, encaixotadas, dispersas por colecções privadas e instituições várias. Mas agora estão a ser inventariadas e digitalizadas. Vamos ter uma história (uma história completa) para contar.
No Instituto de Etnomusicologia - Centro de Estudos em Música e Dança (INET-MD), na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, uma pequena equipa trabalha há já alguns anos naquilo que será a base de um futuro Arquivo Fonográfico Português. "Tal como a Biblioteca Nacional tem livros desde o início da impressão, tal como o ANIM [Arquivo Nacional de Imagens em Movimento] preserva os filmes desde os tempos dos irmãos Lumière, temos também que preservar o nosso património sonoro." A declaração, que é também, diríamos, a afirmação de uma obrigação, pertence a Salwa Castelo-Branco, nascida no Egipto, mas radicada em Portugal desde o início da década de 1980, uma das fundadoras da etnomusicologia nacional e directora do INET-MD. Nos próximos anos, espera-se que a sua reivindicação se torne realidade.
Em 2010, foi anunciado que o Museu da Música, desde 1994 instalado provisoriamente em instalações na estação de metropolitano no Alto dos Moinhos, em Lisboa, será dignificado com a transferência, até 2014, para o Mosteiro de São Bento de Cástris, em Évora. Ali ficará também, disse ao P2 o Ministério da Cultura, o Arquivo Fonográfico Nacional. A localização é justificada pela existência de um curso de Música na Universidade de Évora, o que permitirá o desenvolvimento de trabalho académico sobre o acervo reunido, e pela proximidade com Espanha, o que, segundo a assessoria da ainda ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, facilitará "o esforço de internacionalização" do arquivo.
Em 2010, sob a direcção de Salwa Castelo-Branco, foi editada a Enciclopédia da Música Portuguesa, um trabalho do INET-MD a que se dedicou década e meia de investigação e que envolveu 150 especialistas, vindo colmatar um espaço em branco no estudo da música em Portugal. Aquilo que o instituto vem fazendo, mergulhando no espólio disperso por coleccionadores privados e instituições públicas, como o arquivo histórico da RDP, o Museu Nacional do Teatro ou o Museu da Rádio, será também o ocupar de um vazio. Se mesmo após a implantação da cultura pop e a decisiva massificação da edição e consumo de discos, na década de 1960, continuamos sem ter acesso a muito do que era a música que se produzia e ouvia em Portugal, o que dizer de um tempo anterior a esse? "Houve uma produção prolífera de discos de 78 rotações em Portugal nas primeiras três décadas do século XX, tanto por parte de empresas multinacionais, como por algumas empresas locais", diz Salwa Castelo Branco. "Impressionante", acrescenta.
Impressionante porque essa música, e muita da música que se lhe seguiu, popular e pop, fado à guitarra ou ao piano, criada em teatro de revista ou saltando continentes para se cruzar com o idioma local, se mantém por estudar e por contextualizar, por preservar e por ouvir. Sendo que a música é uma das emanações culturais mais democráticas, porque partilhada por todos, e reveladora, na "leitura" de um país, dos seus habitantes e história, deixando-a perder arriscamo-nos a perder um pouco de nós mesmos.
A recuperação patrimonial é trabalho sempre em atraso. "Cada ano que passa, é um ano que se perde", alerta Salwa Castelo-Branco, uma das mais empenhadas defensoras da criação do Arquivo Fonográfico Nacional. Dietrich Schuller, ex-director do Arquivo Fonográfico de Viena, o mais antigo do mundo, comparou o património musical a uma floresta a arder. "Pouco a pouco, os registos vão desaparecendo." E, sem a iniciativa política para avançar para a criação do arquivo, o INET-MD mobilizou-se: "Com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia, adquirimos o equipamento adequado e temos pessoas especializadas no processo de digitalização."
O processo, no âmbito do projecto A Indústria Fonográfica em Portugal no Século XX, desenvolve-se em três fases: a digitalização, o arquivo da documentação e, por fim, a disponibilização - já tivemos um curto vislumbre de todo esse trabalho nos CD que acompanham a Enciclopédia da Música Portuguesa, onde encontramos, por exemplo, "gravações históricas da rádio, nunca editadas", ou "canções urbanas e de fado, principalmente dos anos 10 e 20": "É outra sonoridade, muito interessante", destaca Salwa Castelo-Branco, "o fado acompanhado com piano, muitos cantores de opereta, cantores líricos que cantavam no chamado teatro ligeiro".
Neste momento, o levantamento feito já permitiu criar uma primeira base de dados com milhares de cópias, um trabalho de base para o arquivo em que o Ministério da Cultura se diz "muito empenhado".
A equipa do INET-MD tem-se dedicado a visitar vários arquivos fonográficos e, para estudar a melhor forma de concretizar o seu projecto, trouxe a Portugal Dietrich Schuller, que, depois de três décadas à frente do arquivo de Viena, abandonou o cargo há dois anos e é hoje consultor da Unesco para a criação de novos arquivos. Como modelo preferencial, Salwa Castelo-Branco aponta o da British Library. "Enquanto o arquivo de Viena recolhe colecções de trabalho no terreno, sobretudo de investigadores austríacos, o de Berlim é muito mais universal, e o inglês tem, para além das gravações no terreno, gravações comerciais".
É essa abrangência que a directora do INET-MD gostaria de ver implantada num arquivo português. "Totalmente aberto ao público", e agrupando trabalhadores que sejam também "curadores" conscientes "da música e do contexto histórico em que foi e é feita". O objectivo é "produzir investigação, dinamizar as colecções e pô-las à disposição tanto do público em geral quanto do especializado".
Recolhas de campo da tradição popular e registos tão díspares comoos fados da vasta colecção do britânico Bruce Bastin, adquirida pelo Estado português em 2009, os discos de estreia dos Osso Exótico ou dos Ocaso Épico, bandas de culto das décadas de 1980 e 1990, disponíveis a todos e incluídas, sem hipótese de esquecimento, na história da música portuguesa.
Em tempo de crise, o argumento financeiro é, como se sabe, levantado sobre toda e qualquer questão. Neste caso, não poderia ser tido em conta. "A tecnologia hoje não é dispendiosa e [a criação do arquivo] não envolverá números muito avultados", aponta Salwa Castelo-Branco. "Mesmo com um início muito modesto de três ou quatro pessoas, pode-se fazer qualquer coisa. Temos aqui a prova." Aqui, no gabinete do INET-MD onde a entrevistamos. Aqui, onde a investigadora Leonor Losa nos guia pela base de dados recolhida ao longo dos últimos anos.
Viajamos pelo início do século, por um Portugal musical com muito mais edições comerciais do que julgávamos existir, um país onde abundavam na imprensa os anúncios à venda de gramofones, fonogramas e demais utensílioshi-fipara fruição caseira. Aqui, juntam-se as peças de um puzzle por montar. Começa a desenhar-se o mapa musical de um país, desde a alvorada da gravação fonográfica.
Nos próximos anos, espera-se que, quer em Évora, quer acedendo a partir de um computador à base de dados em criação, a possamos conhecer em pormenor. E descobrir a que soam as polkas da Guarda Municipal de Lisboa ou essa Rapazes Não Se Casem que Elisa Carreira cantou em 1927.