A sua profissão tem sexo? A minha tinha

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Maria Amélia Chaves foi a primeira mulher a fazer Engenharia Civil, no Técnico, em Lisboa rui gaudêncio

Elas foram engenheiras num tempo em que as empresas pediam "engenheiros com a tropa resolvida". Hoje, as mulheres estão em maioria no ensino superior, mas continuam a ser menos nas ciências e tecnologias

Ao chegar à porta da sala de aula, o professor mandava-a entrar primeiro, à frente dos rapazes. Um dia, perguntou-lhe: "Então, a menina para que curso é que vai?" Maria Amélia Chaves respondeu-lhe que ia para Química e quando o matemático Mira Fernandes a questionou sobre se gostava e a aluna respondeu que não, o famoso professor reagiu: "Então teve a coragem para vir até cá e agora não a tem para seguir aquilo que quer?".

"Até cá" era o Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa, e o ano era o de 1931. Por isso, Mira Fernandes falava em "coragem". Foi o professor que deu o empurrão de que Maria Amélia precisava, tinha então 20 anos, para seguir o que realmente gostava, Engenharia Civil.

A história desta engenheira cruza-se com a do instituto onde se formou. Maria Amélia Chaves nasceu no ano da fundação do IST, foi a primeira mulher a licenciar-se em Engenharia Civil, em 1937, e a primeira a inscrever-se na Ordem dos Engenheiros. Hoje o IST celebra os 100 anos de existência da escola com uma sessão solene, em Lisboa.

"Sempre me dei muito bem com os homens, de maneira que nunca tive problemas", resume assim os seus anos de estudo e de trabalho. Maria Amélia Chaves escolheu o ramo de Engenharia Civil, área tradicionalmente masculina, e é com um sorriso no rosto que fala desses tempos. Quase a completar os 100 anos de vida, foi recentemente homenageada na escola onde se formou. Na mesma altura, o IST distinguiu outras mulheres que se destacaram: Isabel Maria Gago, de 97 anos, a primeira professora de uma escola de engenharia no país; e Sílvia Marília Costa, de 69 anos, primeira catedrática em Engenharia. Estas mulheres foram pioneiras na alteração do paradigma de género em Portugal, sobretudo no que diz respeito à escolha dos cursos e das profissões.

Antes delas, só os homens entravam no ensino superior. Hoje, as mulheres já inundaram as universidades e politécnicos, estão em maioria, mas continuam a ser menos nos cursos de engenharia, ciências e tecnologias, diz Luísa Saavedra, investigadora na Universidade do Minho.

"Queriam que fosse para Química", área que até aos dias de hoje é vista como a mais feminina dentro das engenharias, "mas para Química não tinha jeito", revela Maria Amélia Chaves, "de maneira que gostei muito do curso de Engenharia Civil". Na altura, os três primeiros anos de Engenharia eram de tronco comum e só depois se optava pela especialidade. A engenheira confessa não ter tido dificuldades para lidar com os seus colegas: "Eu trabalhei muito, é certo, mas não tive lutas."

Sílvia Marília Costa, engenheira química, diz que houve um professor com quem sentia que teria um tratamento diferente, "talvez porque a disciplina se prestasse um bocado mais a isso e fosse mais apelativa para os meus colegas homens e envolvia máquinas", revela com um sorriso. Fora da escola, nota, é nos cargos mais elevados que as diferenças entre homens e mulheres mais se fazem sentir.

O estudo de Luísa Saavedra também o revela. A investigadora fala do "efeito do oleoduto", do inglês leaky pipeline effect, ou seja, "o número de mulheres tende a diminuir à medida que se avança na escolaridade e, posteriormente, na carreira profissional", explica a investigadora, resumindo assim a sua tese Mulheres nas Engenharias, Ciências, e Tecnologias: o efeito do oleoduto que pinga.

A professora da Escola de Psicologia da Universidade do Minho chega à conclusão que "as mulheres continuam a evitar determinados domínios de actividade associados às ciências, à informática e às engenharias". "Em comparação com as restantes áreas de formação, as ciências, matemática e informática e engenharias, indústria transformadora e construção são as menos frequentadas pelas mulheres, aspecto que também se verifica no estrangeiro, revela o estudo.

O sexo das profissões

Segundo os dados da investigação, "o número de raparigas e rapazes que se interessam por matérias e actividades de ciências e tecnologia é idêntico até aos 12/13 anos, fase a partir da qual se começa a registar uma diminuição no número de raparigas que escolhem aqueles domínios, em todos os níveis de ensino subsequentes".

Mas o tal efeito do oleoduto que pinga faz-se notar particularmente "na transição de um programa de graduação para um de pós-graduação, e quando têm que decidir se devem continuar ou não na chefia ou coordenação dos ambientes académicos ou industriais, em especial quando tais ambientes são percebidos como hostis para essas mulheres".

No estudo participaram 102 mulheres, distribuídas por cinco grupos etários: alunas do 9.º ano, do 12.º ano, universitárias, profissionais com menos de 30 anos e com mais de 40, das zonas Norte e Centro do país.

Dados da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género indicam que em Portugal, em 2004, a percentagem de mulheres no ensino superior atingiu os 86,3 por cento no domínio da Educação, os 66,5 por cento nas Ciências Sociais, e apenas 33,4 em Engenharia.

Os pais pesam na decisão?

Segundo a investigadora, "atribui-se um sexo às profissões", baseando-se nos papéis tradicionalmente associados aos homens e às mulheres.

Vários especialistas nas questões de género concordam que estas escolhas se devem a uma extensão do domínio privado à profissão. A dimensão de organização da mulher, o seu papel de cuidar da casa e dos filhos, contribui para que esta opte por profissões onde possa continuar a reproduzir esses papéis, "como se fossem biologicamente preparadas para isso". Por consequência, a diferença salarial entre homens e mulheres advém do mesmo factor, reforça a psicóloga da Universidade do Minho, uma vez que o papel do homem era assegurar o dinheiro para sustentar toda a família.

"As características psicológicas depois encaminham-nos para determinadas profissões que acabam por reforçar essa imagem", diz Saavedra ao P2. No entanto, face à situação de crise actual e com a sombra do desemprego a pairar, as "raparigas começam a ultrapassar estes estereótipos", realça.

"Elas optam por outro rumo, mesmo quando têm muito boas notas", revela a psicóloga.

Os pais desempenham um papel preponderante na escolha profissional: "Os jovens são muito influenciados pela figura dos pais, pelo que estes querem para os seus filhos, sobre o que eles próprios gostavam de ter sido...", acrescenta.

A geração mais nova de engenheiras partilha com as pioneiras nas engenharias o apoio que dizem ter sentido por parte dos pais. Helena Rocha, de 29 anos, Íris Duarte, de 24 anos e Ana Fiadeiro, de 23 anos, todas formadas no IST, afirmam que sentiram o apoio que precisavam por parte das suas famílias para seguirem o curso que pretendiam.

Helena Rocha, licenciada em Engenharia Electrotécnica, um dos ramos da Engenharia mais associados ao sexo masculino, segundo diversos estudos, diz que dentro da sua família nunca viram profissões de engenharia como algo masculino que não devia seguir. "Mas se calhar também ajudou ter um pai com curso de electricidade e ele ter gostado de eu partilhar dos seus interesses", confessa.

Ana Fiadeiro, formada em Engenharia Biológica, confirma esta aceitação: "Inicialmente, a opção foi bastante bem aceite dentro da família. No fim do curso, o facto de ter arranjado no espaço de um mês emprego e de ser 100 por cento focado na área de formação, também foi bem aceite."

"Nunca houve qualquer reprovação, sendo que a família reagiu com naturalidade à escolha do meu curso", conta Íris Duarte, licenciada no mesmo ramo de Engenharia.

Mulheres mais exigentes

Apesar de as três engenheiras afirmarem que nunca sentiram discriminações pelo facto de serem mulheres, Ana Fiadeiro acredita que existem problemas desses dentro da Engenharia, nomeadamente em áreas que são geralmente mais associadas ao sector masculino, como Engenharia Informática, Mecânica e Electrotécnica. "Acredito que uma mulher para subir na hierarquia da sua empresa tenha mais dificuldades de o fazer e os obstáculos que lhes aparecem serão mais desafiantes."

A expressão "tecto de vidro" é utilizada para explicar as dificuldades que muitas mulheres enfrentam para chegar ao topo. Segundo o estudo da Informa D&B, divulgado em Março, as funções de topo continuam maioritariamente em mãos masculinas, com apenas oito por cento das mulheres portuguesas a ocupar o cargo executivo de director-geral das empresas. Também segundo dados recentes da Comissão Europeia, apenas três por cento das empresas são dirigidas por mulheres e é em Itália onde esta disparidade mais se acentua.

Na hora de atribuir um cargo de topo a uma mulher, os homens sentem "uma ameaça à sua masculinidade", interpreta Luísa Saavedra. O poder é muito importante, os homens gostam de liderar e "têm medo" de perdê-lo.

Actualmente a trabalhar na Nokia Siemens Networks, Helena Rocha diz que nunca sentiu discriminação no seu local de trabalho e que "se calhar" isso deve-se ao facto de estar numa empresa em que a média de idades é baixa. "Quanto a diferenças em relação a promoções e salários para mulheres também não sinto que haja". A engenheira revela que as maiores exigências têm vindo "por parte de outras mulheres" e não dos homens. "Não sei o quanto lhes custou subir na carreira, mas as mulheres revelam sempre um enorme empenho."

Também em contracorrente face às conclusões do estudo de Luísa Saavedra, Íris Duarte, a trabalhar na Hovione Farmaciência, afirma que nunca sentiu nenhum tipo de discriminação. "Respeitamos as ideias e as opiniões de cada um, e de forma independente e autónoma prossigo com o meu trabalho diariamente, sem restrições a esse nível", explica.

Chá para caloiras

Noutros tempos, o número reduzido de raparigas a estudar no IST constituía um pretexto para a realização do "chá das caloiras", permitindo-lhes "formarem amizades num universo predominantemente masculino".

Este mantém-se ainda, mas já não há convívios só para raparigas. Em Março, coube a Palmira Ferreira da Silva, professora de Engenharia Química no IST, organizar a homenagem às mulheres do Técnico. A professora recorda que no seu tempo de estudante, na década de 1980, muito depois das primeiras mulheres terem atravessado as portas do IST, os anúncios nos jornais ainda pediam "engenheiros" e um dos requisitos era ser "engenheiro com a tropa resolvida". Um dia, uma amiga, que queria trabalhar na área de "controlo de qualidade", respondeu ao anúncio dizendo que tinha a tropa resolvida desde que nascera. "A desculpa era sempre a mesma", diz Palmira, "os homens não se sentiam à vontade com a presença das mulheres, por exemplo, para dizer palavrões".

Segundo o ranking do Fórum Económico Mundial Global Gender, Portugal subiu de 46.º para 32.º lugar na conquista da igualdade de género. "As dificuldades ainda existem, pese embora muitas conquistas", avalia Elza Pais, secretária de Estado da Igualdade. "Se somos capazes de gerar o mundo, também somos capazes de o gerir", defende, citando a até hoje única primeira-ministra em Portugal, Maria de Lurdes Pintasilgo.

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