A profecia de Laranja Mecânica concretiza-se

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Era uma vez... Malcolm McDowell

Kubrick, cineasta, era anti-establishment mas perseguido por uma angústia: se destruímos as instituições, o que pomos no seu lugar? Anthony Burgess, escritor, profetizou o que os Estados fariam com a violência. O primeiro adaptou em 1971 um livro do segundo, Laranja Mecânica, e a profecia está à vista: hoje. Um documentário em Cannes olha para o filme

Um ano depois da estreia de Laranja Mecânica, em 1971, Malcolm McDowell, o Alex de Large, esse hoodlum de chapéu de coco, pestanas postiças num olho e dedicação a Beethoven do filme de Stanley Kubrick, estava numa festa em Hollywood e alguém o apresentou a Gene Kelly, o bailarino-cantor que chapinhou na chuva em Singin" in the rain. E que não se tinha esquecido que Alex destruíra a casa de um escritor, antes de violar a mulher, trauteando I"m singin" in the rain, just singin" in the rain... E foi então que Gene virou as costas a Malcolm, castigando-o por ter pervertido a inocência de uma Hollywood euphoria.

O estigma da "violência" ainda hoje não larga o filme de Kubrick, de tal forma que o próprio realizador pediu que fosse retirado das salas britânicas, perante a espiral de ligações de causa-efeito que a imprensa estabeleceu entre o ecrã e uma série de crimes supostamente influenciados pelas proezas de Alex e do seu bando. (O filme só voltaria às salas britânicas em 2000.) Il était une fois... Orange Mecanique, documentário de Antoine De Gaudemar, na secção Cannes Classics, não quer evitar a História. Antes pelo contrário, já que pertence a uma série (Il était une fois..., projecto de Serge July e Marie Genin) que tem querido enquadrar um filme ensopado pelas marcas do tempo. Ao fazê-lo, complexifica as hipóteses de leitura, reequaciona etiquetas (para o futuro estão projectados documentários sobre Os Três Dias do Condor, de Sidney Pollack, O Charme Discreto da Burguesia, de Buñuel, Voando sobre um Ninho de Cucos, de Milos Forman, ou Aos Nossos Amores, de Maurice Pialat).

Filme violento... Burgess, o autor do romance publicado em 1962 em que, para a linguagem de Alex, inventou um vocabulário que misturava o inglês e o russo, línguas que achou que iriam dominar o mundo no futuro, aparece em imagens de arquivo a afirmar que não lhe interessou nunca a violência como tema. Interessou-lhe o que os Estados democráticos iriam fazer com essa violência. Esse aspecto profético do filme já não era apenas ficção científica na altura. Hoje a profecia parece concretizar-se.

Flashback: viviam-se os tempos pré-punk, e A Laranja Mecânica haveria de colocar a sua iconografia à cabeceira dos punks de Sua Majestade (a forma como Alex usa com ironia símbolos da classe dominante - isto é: o chapéu de coco - faria parte da paleta de Vivienne Westwood e outros designers). Aquele era o tempo em que a violência juvenil começava a colocar ansiedade nas sociedades democráticas. Apareceu um "problema", apareceram os mods e os rockers, irromperiam os punks. Apareceram as teorias antipsicanalíticas; Foucault e os outros denunciavam as instituições - prisões, estabelecimentos psiquiátricos, a escola - como zonas de controlo. A viagem de Alex em Laranja Mecânica era exemplar: a violência, primeiro, depois o condicionamento psiquiátrico que o transformava em ser passivo (a sequência em que é submetido a tratamento de choque com os olhos abertos à força, o que quase custou uma córnea a Malcolm McDowell) e o happy end, a violência integrada e aproveitada pelo Estado.

"Kubrick era anti-establishment", diz no documentário o seu cunhado, e desde 1975 co-produtor dos seus filmes, Jan Harlan. "Era um animal político" e "apaixonou-se" pelo livro de Burgess numa altura em que, em Londres, trabalhava sobre um projecto, que não concretizou, sobre Napoleão.

Era anti-establishment, mas perseguido por uma angústia: se destruímos as instituições, o que colocamos no seu lugar? Uma massa em fúria sanguinária? "Como chegar a um equilíbrio? Não sei a resposta" - palavras de Kubrick, cuja voz se ouve sempre em off, já que não gostava de dar entrevistas (um dos poucos entrevistadores que a deu acesso, o crítico Michel Ciment, é consultor do documentário.) A "ideologia da segurança" é a profecia de Laranja Mecânica, exibido em Cannes em cópia restaurada, e concretiza-se nas democracias de hoje.

Feito com a colaboração da família de Kubrick, com o cunhado e com a viúva, Christiane, Il était une fois... Orange Mecanique beneficia desse acesso, com imagens de arquivo da infância do cineasta, da rodagem não só de Laranja Mecânica mas também de Shining, as palavras do realizador nas raras entrevistas... Mas não se ultrapassa a barreira à intimidade: private, lê-se na tabuleta do portão da propriedade da família Kubrick no Norte de Londres, e essa imagem abre e fecha o documentário.

Há, de qualquer forma, uma pessoa em fundo e não apenas um mito. Malcolm McDowell, escolhido para o papel logo que Kubrick viu a forma como ele aparecia pela primeira vez em If..., de Lindsay Anderson, refere o "sentido de humor" do cineasta. O cunhado, Harlan, fala de alguém que "não gostava propriamente de ir a bares, mas era social". E que preferia a escrita de argumento e a fase de pré-produção dos filmes (onde podia dar liberdade à sua dedicação de compilador de informação) e que partilhava a ideia de Woody Allen sobre o trabalho com actores: deixa neles um ressentimento. É Harlan que chama a atenção para o facto de as sequências "violentas" de Laranja Mecânica utilizarem sempre como escudo a estilização BD ou o kitsch psicadélico, remetendo para o espectador a imaginação dessa violência - que está em nós. Finalmente, Christianne Kubrick diz que lhe dá vontade de rir, quando ouve falar na "reclusão" do seu marido.

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