Tyler, The Creator: o puto que os putos adoram e que os adultos receiam

Foto
Rapper, produtor, designer gráfico, realizador de vídeos: Tyler The Creator é um talento multiforme, com especial queda para a provocação JULIAN BERMAN

Como é que um grupo de putos fora do controlo se viu no olho de um furacão mediático, originando um invulgar fenómeno de identificação com a geração Internet? É uma das questões a colocar no momento em que o mais destacado membro da pandilha, Tyler, lança "Goblin".

Poderia ter sido apenas mais uma vulgar sessão de autógrafos, em Boston, há oito dias, numa loja de discos, mas lá fora centenas de pessoas gritavam e tentavam forçar a entrada. Quem não soubesse talvez pensasse que era por Lady Gaga, ou Madonna e Michael Jackson, se estivéssemos em 1991, mas não. No telhado, a incitar e a provocar os fãs, estavam os visados pelo alarido: Tyler, The Creator, um puto de 20 anos, alto, musculado, ar um pouco pateta, e alguns membros do seu colectivo, os Odd Future. O objectivo era promover o álbum "Goblin", que Tyler acabou de lançar.

Às tantas a polícia foi obrigada a encerrar uma das principais artérias da cidade, tentando pôr ordem na multidão descontrolada. Resultado: alguns feridos, entre polícias e admiradores, e uma adolescente de apenas 13 anos detida. Mais tarde as televisões trataram de noticiar o sucedido e a Internet encheu-se de pequenos vídeos de telemóveis. A Fox News narrava que o alvoroço tinha sido provocado por Tyler e pelo seu colectivo, "conhecidos pelas letras controversas" e pelo seu "comportamento indomesticável". A meio da peça televisiva, o jornalista acaba por dizer aos espectadores que "se não fazem ideia de quem são [os Odd Future], não estão sozinhos", explicando que Tyler e o seu colectivo ainda não chegam às massas porque "as letras das canções são muito escabrosas para passarem na rádio", para de seguida concluir, num aparente paradoxo, que "junto de certas audiências são muito populares."

É isso mesmo. Tyler e os Odd Future (nome completo: Odd Future Wolf Gang Kill Them All) são um dos acontecimentos mais surpreendentes de há muito tempo a esta parte, expondo, precisamente, uma série de aparentes contradições. Passaram directamente, e muito depressa, dos parques do Sul de Los Angeles, onde andavam de skate e se filmavam a fumar erva, procurando divertir-se a todo o custo, para o centro da indústria, que viraram de pernas para o ar, sendo acolhidos pela imprensa musical mais influente (Pitchfork), mas também pela generalista (do "New York Times" ao "The Guardian"), e pela televisão nacional americana ou britânica.

A primeira vez que aqui falámos deles foi em Fevereiro, na ressaca da sua primeira prestação televisiva que terminou com Tyler às cavalitas de Jimmy Fallon ("Late Night with Jimmy Fallon"), uma imagem que correu mundo no dia seguinte. Nessa altura já era perceptível que alguma coisa estava a acontecer, mas desde então os factos precipitaram-se.

Em particular para Tyler Okonma, seu verdadeiro nome: rapper, produtor, designer gráfico, realizador de vídeos, com um álbum anteriormente lançado, "Bastard", dono de uma voz potente que muitas vezes altera digitalmente para parecer mais grossa. Não surpreende que tenha sido o primeiro da pandilha a assinar por uma grande editora, a XL Recordings (Vampire Weekend, M.I.A., Radiohead). É ele a energia do colectivo.

Na maior parte das vezes, a sua música é esquelética, feita de ritmos mínimos e climas cósmicos, muito distante dos padrões mais acessíveis do hip-hop. Aquilo que Tyler e o seu colectivo fazem é rap, mas com um espírito tão subversivo e com um impacto tão grande junto da cultura juvenil que estão mais próximos dos Sex Pistols do que dos Wu-Tang Clan, afastando-se das narrativas clássicas associadas ao género.

Não são fáceis de enquadrar, mas quanto mais visíveis são, mais lhes acontece serem rotulados de forma simplista. Uma coisa é certa: são mais do que apenas um grupo de música. Ainda é cedo para se perceber se estamos a assistir a uma nova transformação nos processos da cultura pop, ou se tudo não será esquecido depressa, mas neste momento personificam a ideia de como as coisas podem acontecer de forma super-rápida na nova ordem digital. As redes sociais são o seu bairro, o quarto de dormir o seu estúdio. Nos últimos anos muito se falou no papel da Internet na ascensão de uma série de grupos e artistas, mas mesmo assim eles são outra coisa. São muito provavelmente o primeiro fenómeno a surgir da cultura da Internet e da interactividade através das redes sociais que já não interroga esse facto.

Cresceram com a Internet. Fazer rap não é grande coisa para eles, é a extensão natural da sua identidade "on-line". Faz parte do que são. Não a interrogam, absorvem-na, com milhões de visualizações no YouTube, uma multidão de seguidores no Twitter e um Tumblr (oddfuture.tumblr.com) onde disponibilizaram à borla 12 álbuns de produção caseira e três mixtapes.

Numa entrevista recente, Tyler dizia, provocatoriamente: "o melhor é despacharem-se a sacar os discos à borla antes que a situação mude", numa alusão ao facto de terem assinado um contrato de distribuição com a RED, subsidiária da Sony. Ao longo destes meses criaram 12 álbuns e três compilações, e alguns valem mesmo a pena, como "Bastard" de Tyler, The Creator, "Earl" de Earl Sweatshirt, ou "Nostalgia, Ultra" de Frank Ocean.

Desde o primeiro momento que a música, as letras e os vídeos entraram no imaginário de uma geração de miúdos que partilha música avidamente e está habituada a expor a intimidade - e as suas fantasias mais inenarráveis - nas redes sociais, fazendo exactamente o mesmo que Tyler e os Odd Future. São putos a serem putos, oferecendo-nos o seu universo sem filtros. O que por vezes é fascinante e noutras ocasiões muito perturbador.

Heróis e anti-heróis

Não espanta que soem autênticos a quem os segue e que originem um fenómeno de identificação. "Eu sou eles", diz Tyler. Quando vemos os vídeos do YouTube, com o colectivo a andar de skate nos parques de Los Angeles ou a entrar nas lojas de conveniência, é impossível não sentir que estamos a ingressar no seu mundo. Quando ouvimos Tyler a debitar violentas desilusões e inseguranças pessoais ("I"m just a teenager who admits he"s suicide prone"), parece que entramos directamente na sua cabeça.

Para a geração Internet que os viu crescer num curto espaço de tempo, são heróis. Ou anti-heróis, o que vai dar ao mesmo. Para os que se habituaram a segui-los, acontecimentos como os de Boston já fazem parte da rotina. 48 horas antes, por exemplo, no dia em quem foi lançado oficialmente o álbum, numa noutra acção de promoção, desta feita numa escola de Los Angeles, gerou-se outro confronto com a polícia e Tyler foi acusado de perturbação da ordem e de andar de skate em zona proibida. Já esta semana, num concerto em Detroit, entraram em conflito aberto com a assistência, que lhes arremessava garrafas de água, e o espectáculo não chegou ao fim.

Escusado será dizer que as suas actuações em palco são catárticas e instigadoras do caos. Nos últimos meses foi raro o dia em que não foram motivo de falatório pelas mais diversas razões. Mas é evidente que o lançamento de "Goblin", o segundo álbum de Tyler, lhe traz uma visibilidade acrescida. A partir de agora, para o bem e para o mal, nada irá ser como dantes. Logo se verá qual dos lados predominará no fim.

Apesar da exposição mediática, para muitas pessoas, ainda são de facto ilustres desconhecidos. Não só por causa das letras polémicas - que versam sobre crimes, violações, raptos ou ausência parental - e da sonoridade por vezes bizarra, mas também porque constituem o sintoma de que vivemos num período de micro-movimentos liderados por putos que já não operam segundo a lógica habitual da indústria. Se antes a indústria tentava ir ao encontro ao gosto do homem comum, hoje parece curvar-se perante as dinâmicas fragmentadas e difíceis de controlar da Internet.

Como no Facebook

Há qualquer coisa neles que é difícil de apreender pelos adultos, ou pelos "cotas", como gostam de dizer. Eles representam aquilo que os adultos já não se podem consentir ser: descarados, provocadores, fazendo comentários despropositados antes de se abandonarem aos jogos vídeo, ao skate ou às avenidas da Internet. Muitas vezes não filtram o que dizem, como tantas vezes acontece nas redes sociais. Acabam por ser resultado de uma cultura digital em que fotos aleatórias, piadas privadas e estranhos vídeos caseiros delineiam um leque de referências múltiplo. Por vezes não passam disso: são como um daqueles vídeos patetas do YouTube, com milhões de visualizações, que ninguém percebe bem porquê mas toda a gente vê. Outras vezes são uma mistura estimulante de mundanismo e desafio, parecendo saídos de uma versão mais dura do filme "Kids", de Larry Clark.

O mais novo, Earl Sweatshirt, tem 17 anos. O mais "veterano", Frank Ocean, tem 23. São 11, no total, entre produtores, rappers, compositores, ilustradores, DJ, skaters, fotógrafos ou realizadores. Tyler é o líder. Hodgy Beats, Domo Genesis e Mike G rappam. LeftBrain produz. Syd é o DJ de serviço. Frank Ocean é o que gosta de canções com poder emocional. O misterioso é Earl Sweatshirt, o melhor rapper do lote, que, revelou esta semana a "The New Yorker", terá sido enviado para Samoa há meses pela mãe, que o quis ver afastado das más companhias.

Alguns deles vêm de famílias complicadas, mas os Odd Future têm pouco a ver com conflitos sociais - alguns são da classe média-alta - ou com afirmações de identidade racial através da música. A sua crispação é mais hormonal do que social. Falam das frustrações escolares e do desemprego depois da universidade, mas a sua bolha é paranóica, não conforta, estabelecendo normas e uma linguagem vernacular próprias, pronunciando "foda-se" frase atrás de frase. A sua raiva parece dirigida contra uma certa forma de entender a vida, a hipocrisia, o manter das aparências, a autoridade, mas não são claros. Daí que os "cotas", que tentam enquadrar os putos para melhor os domesticarem, se sintam confusos. Mas, para lá da repercussão social, a sua luta é a música. E estão a ganhá-la.

O que fazem tem menos a ver com formatos tradicionais do que com os arquivos do YouTube, resultando daí uma amálgama que incorpora elementos de todos os lugares, desembocando numa espécie de jazz negro e cósmico. Têm mais coisas em comum com o rap independente, emocionalmente denso, dos anos 90 (Anti-Pop Consortium) ou com o minimalismo inicial dos Neptunes de Pharrel Williams do que com o hip-hop contemporâneo. Para além de Pharrell ou Roy Ayers, Tyler cita como influências grupos tão diferentes como os Portishead, Beach House, Toro Y Moi ou os Broadcast. Mas são as letras que provocam posições irascíveis. Algumas são escabrosas, outras simplesmente vulneráveis, falando de violência, sangue, abuso de drogas, com uma assumida misoginia. Nada de novo no universo do hip-hop ou da cultura rock. Mas com impacto pela crueza e pela vulgaridade. "Violo uma puta grávida e conto aos meus amigos que tive um ménage-à-trois" debita Tyler em "Tron cat", talvez a canção mais depravada de todas.

Declaração literal de um desejo? Uma piada exagerada da qual nos sentimos excluídos? Parvoíce de miúdo pouco esclarecido que deveria levar umas palmadas? Tyler nunca pára de dizer que são ficções. Fantasias. Recalcamentos. Solilóquios de um alter-ego, ou diálogos esquizofrénicos consigo mesmo. Aliás, os temas de "Goblin" estão ligados por interlúdios em que discute os seus problemas com um terapeuta. Ele próprio.

É contraditório. Escreve sobre drogas, mas diz que não quer nada com elas. Lança piadas homofóbicas, mas apoia o movimento LGBT. Talvez a chave de compressão de tudo isto esteja na frase "I"m a fucking walking paradox. No, i"m not", verso da canção "Yonkers", para a qual realizou um vídeo a preto e branco onde come uma barata e acaba a suicidar-se.

Quem segue há meses o colectivo Odd Future já não duvida de que são talentosos, às vezes divertidos, outras vezes reles e imaturos, e sempre virais. Não estão sós. Outros rappers da mesma geração, como Lil B, Clams Casino ou Pyramid Vritra, prolíficos, muito jovens, fazem, como eles, música e vídeos de baixo custo, construindo o seu percurso de baixo para cima através da Internet, produzindo directamente do quarto para o mundo, expondo as suas experiências sociais de forma desabrida, como se estivessem a falar para os "amigos" do Facebook. Não admira que exista muita gente que não os entende nem está disposta a fazê-lo, e muitos outros que se sentem totalmente identificados com eles.

Ver crítica de discos na pág. 34 e segs.

Sugerir correcção