Nikolai não é um cliché
Nenhuma comunidade imigrante provoca tanto fascínio como a dos ucranianos e russos, desde que começaram a chegar maciçamente a Portugal há uma década. O festival Indie acaba de mostrar dois filmes portugueses com protagonistas de leste. Nikolai Nekh, artista português e russo, foi ver a antestreia e achou que os portugueses procuram sempre uma certa ideia da Rússia nos imigrantes em Portugal.
Noite de 6 de Maio
Culturgest/Clube Ferroviário
Do filme ficam no ouvido palavras russas: pajalsta, por favor. Os imigrantes pedem muito por favor. Estão dependentes. A protagonista russa está dependente do marido português e dos companheiros dele. Está dependente de um passaporte. Está dependente do imigrante ucraniano por quem se apaixona: "Pajalsta, leva-me contigo."
Os imigrantes precisam de alguém que lhes explique como tudo funciona. Necessitam de tradução, necessitam de vistos, necessitam de trabalho, porque o dinheiro que trazem acaba-se depressa, ficam com as mãos cheias de vento, tudo voa. Em América, há tempestades e chovem barcos, caso os homens se tenham esquecido de que um dia navegarão os céus. América é uma nação de vulnerabilidade, onde os imigrantes são presas fáceis e os que supostamente não são imigrantes - os portugueses - acabam por ser estrangeiros na vida.
As luzes acendem-se no Grande Auditório da Culturgest e há palmas e comentários e abraços dos actores e dos técnicos - estão lá todos, gente da câmara, do guarda-roupa, da produção, todos aqueles que aparecem em letras pequenas e tão rápidas no ecrã final - que dão parabéns uns aos outros e ao realizador, João Nuno Pinto. Era a antestreia, no Festival Indie, de América, que ontem se estreou nas salas.
De todos as comunidades que chegam a Portugal, nenhuma parece provocar tanto fascínio nos portugueses como os russos e os ucranianos. Ainda no Festival Indie, na semana seguinte, estreava-se Viagem a Portugal, de Sérgio Tréfaut, a partir de uma história real de uma imigrante ucraniana que fica retida no aeroporto de Faro. Tréfaut fez há alguns anos Lisboetas, um documentário e um dos primeiros filmes a mostrar como os habitantes da cidade estavam diferentes no início do século XXI, e nesse filme a câmara namorava os imigrantes de leste com mais veemência.
Nikolai Nekh, que o P2 convidou para vir ao cinema e comentar o filme, vem à porta da Culturgest fumar um cigarro.
Nikolai ficou um pouco desiludido com América. Conta a história que já foi contada. Mostra as pessoas que já foram mostradas: em outros filmes, na televisão. Os ucranianos são doutores. Bebem vodka, mas não fazem muito barulho. No entanto, repara Nikolai, o imigrante angolano faz barulho, aliás, faz mesmo confusão, aliás, dá pancada no protagonista português, um bandido pouco profissional que lhe prometeu um passaporte e não cumpriu. "São clichés", diz.
E agora repete-o numa mesa no Bar Clube Ferroviário, enquanto João Nuno Pinto fica a meio de uma sandes.
- Achas que os russos do filme são clichés? - pergunta o realizador.
- Acho - responde Nikolai.
É a festa de estreia do filme. Está molhado o Terraço do Clube Ferroviário e ainda assim está cheio. No rés-do-chão há música para dançar. João Nuno Pinto é um dos sócios do bar em Santa Apolónia. O P2 sentou-se com ele e com aquele rapazinho com ar de quem não faz mal a uma mosca, vestido de blusão azul-anjo, discreto, para assistir a um breve braço-de-ferro. João Nuno Pinto gosta de uma boa luta.
- Os russos são mais organizados, mais sérios - explica. - Até os mafiosos russos são mais eficientes do que os mafiosos portugueses.
- O meu padrasto é português, foi para a Rússia e lá era ele que organizava os russos.
- Todos os imigrantes ficam mais motivados, tornam-se mais dedicados, focados.
João Nuno ainda pergunta se Nikolai viu Stromboli, de Rossellini. Não viu. América também é uma história de uma mulher deslocada e o Mar da Palha é a paisagem que ela procura para se lembrar da Rússia e de quem é.
Para Nikolai, a imagem da russa Liza, uma e outra vez, com o mar em fundo, é a imagem da nostalgia - que é parecida com a nossa "saudade".
João Nuno acaba a sanduíche e vai festejar com a equipa. Um copo mais tarde voltamos a encontrá-lo. Despede-se de Nikolai: "Gostei da tua sinceridade, miúdo."
Já no carro, depois da festa acabar, Nikolai volta a falar da nostalgia. A nova Rússia é nova-rica e não é tão poética. Não é séria, bem-comportada, estóica. Mas os portugueses continuam a imaginar uma Rússia heróica. A Rússia é a outra periferia, na outra ponta da Europa. E imaginamos que os russos são cismáticos como nós, de olhar perdido.
O imaginário da Sibéria é tão forte que até para Nikolai é difícil distinguir entre realidade e imaginação.
Deixou a Sibéria com 13 anos, em 1998. Tem agora 25. Diz que não é nostálgico. O seu português já não tem vestígios da língua russa. Como artista, quer continuar a trabalhar na Europa ocidental. Nikolai aprendeu a "negociar", a ditar os termos. Ele também pode, do seu lado, jogar com as percepções do que é um russo e o que é um português. E também pode escolher não jogar. Depois, a caminho de casa, às três da manhã - e todos somos mais sinceros a essa hora -, disse que se lembrava de uma vez nevar em Vila Franca de Xira, onde passou a adolescência e viveu até ter ido estudar para Lisboa, para Belas-Artes, e a frase - "Uma vez nevou em Vila Franca de Xira" - saiu-lhe nostálgica. Ou talvez uma portuguesa não consiga deixar de achar que um russo deve amar a neve, desejá-la, sentir falta.
Para um rapaz que cresceu na Sibéria nevar em Vila Franca de Xira deve ter sido familiar e ao mesmo tempo deve ter sido estranho.
Manhã de 7 de Maio
Instituto Alemão
Nikolai põe-se à sombra de uma árvore do jardim do Instituto Alemão. Pediu para ser fotografado em frente do café, uma casinha de madeira pintada como se fosse as Caraíbas, com cores fortes- uma intervenção da escola Maumaus, de que Nikolai fez parte no Verão passado.
Também podia ser em Raduzhnyy, a cidade onde Nikolai cresceu, na Sibéria. Raduzhnyy quer dizer "arco-íris". É uma cidade petrolífera e as autoridades usaram o que Nikolai descreve como uma "metáfora óbvia". A cidade tinha todas as cores do arco-íris. As cores dividiam os bairros da cidade. Os habitantes vinham de várias partes da Rússia, e não se entendiam todos, como se a Rússia fosse um continente, e cada província, um país estrangeiro.
Raduzhnyy era o título do trabalho de Nikolai Nekh que foi premiado com o prémio BES Revelação em 2008 e exposto no Museu de Serralves. Fez uma série de postais de Raduzhnyy, porque já não conseguia lembrar-se bem da sua cidade. Uma carta acompanhava: "Olá, pai! Como disseste que a minha cidade não tinha postais, decidi fazê-los. Misturei as minhas memórias com a cidade de Lisboa e procurei lugares familiares que me causam estranheza."
Dentro do Instituto Alemão, Nikolai mostra as marcas que fez nas paredes o Verão passado: desenhou um pau e escreveu "stock": a palavra é de origem alemã e quer dizer "pau", e é um comentário discreto, mas mordaz do tempo em que vivemos.
As palavras importam. Quando chegou a Portugal, só sabia dizer uma coisa em português: "Rei do gado". Em Portugal, nem reis, nem gado, nem escravos, mas as pessoas conheciam a Escrava Isaura, que tinha visto na televisão russa.
Na biblioteca onde Nikolai tem o seu atelier - porque não tem dinheiro para alugar um atelier e a biblioteca do Goethe é muito perto de casa, confortável e com Internet -, abre o computador e o YouTube. Basta escrever o nome do cantor russo Murat Nasyrov, para encontrar o vídeo. Play, e um careca pálido, imitando a personagem da família Adams, uiva à lua. Duas sul-americanas dançam rumba. A mãe Adams também por lá anda. E um homem de cabelo comprido e óculos começa a cantar: "Malchik hochet v Tambov." "Um miúdo quer ir a Tambov", canta Nasyrov, ao som de Bate, bate o tambor. O músico russo morreu quando se atirou de uma janela depois de tomar LSD, informa Nikolai.
O vídeo faz parte das suas pesquisas. Ele pesquisa sempre sobre imagens que outros fizeram de outras imagens. Nos arquivos de família, por onde começou a trabalhar, julgava que se encontraria a ele próprio. E se isso foi verdade para o primeiro trabalho, o que vimos em Serralves, deixou de ter a certeza que olhava para os arquivos de família e explorava a sua própria história pelas razões certas.
"Comecei a questionar-me: por que é que é preciso olhar para esse passado? Comecei a dar conta que estava a cair numa armadilha - de pensar sobre a relação Rússia-Portugal - e de criar uma imagem como artista, que depois tinha que sustentar", diz. "Eu estou aqui, agora. E quero fazer a melhor arte possível."
Do outro lado da biblioteca há televisores com DVD onde mostra o vídeo mais recente em que está a trabalhar. Uma câmara foca um pontinho no mar. Estamos dentro de um helicóptero. O mar de novo, o pontinho às vezes parecendo uma ilusão de óptica. Depois, subitamente, corte para um imagem de um bloco de gelo, grande como uma montanha, imóvel sobre o mar. E depois, novamente, o pontinho flutuante.
Um icebergue parece imóvel, mas não está. E Nikolai partiu para esta ideia de monumentos flutuantes - que não se fixam, porque não podemos fixar a memória.