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Os livros de Margaret Millar irradiam um sufocante negrume que o "roman noir" propriamente dito raras vezes atingiu

Policial

Singula-ridades

Uma das melhores escritoras de policiais do século XX ?emerge do passado ?numa edição impecável.

Luís Miguel Queirós

Um Estranho no Meu Túmulo

Margaret Millar

(Trad. Inês Dias)

Averno

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No panorama daquilo a que se costuma chamar literatura policial, "Um Estranho no Meu Túmulo" ("A Stranger in My Grave"), de Margaret Millar (1915-1994), é uma obra a vários títulos singular, desde logo no modo como lida com a sagrada trilogia crime-detecção-solução.

Há um crime, mas esse crime é apenas uma peça do puzzle, e não propriamente o centro da narrativa.Há um investigador, mas não é a personagem principal e, embora faça o que lhe compete - detectar -, não lhe cabe exactamente o papel habitualmente atribuído ao detective privado nas histórias policiais. Há uma solução, mas não se reduz ao esclarecimento do crime em causa, embora o inclua. Quanto ao enredo, a própria autora o descreve numa breve introdução ao romance, explicando que a história nasceu de uma ideia que apontara num caderno: "Uma mulher sonha que visitou um cemitério e que viu uma lápide de granito com o seu nome gravado, assim como a data de nascimento e a data da sua morte quatro anos antes". E Millar acrescenta: "Agora vê lá o que é que consegues fazer com isto, miúda".

E a verdade é que não é imediatamente óbvio o que a autora está a "fazer com isto". No início, o leitor pode admitir que a história venha a ter contornos sobrenaturais, ou então esquecer-se de que lhe prometeram um policial e dar por si embrenhado na leitura do que parece ser um drama familiar situado na Califórnia dos anos 50, pelo qual perpassam temas como a subalternização da mulher, o racismo ou a busca da identidade.

Basta, de resto, ler-se a nota inicial de Millar para se intuir que não nos espera um "policial" vulgar. Começa assim: "Qualquer escritor pode falar, regra geral longamente, sobre os fluxos e os refluxos da sua criatividade. A força que provoca um refluxo quando se espera um fluxo deve ser a mesma que provoca um zigue em vez de um zague, quer se queira, quer não. É inexplicável em termos físicos, mentais e emocionais". Digamos que é algo um pouco diferente dos agradecimentos de rotina ou das pequenas larachas que alguns autores policiais costumam antepor aos seus livros.

Às singularidades atribuíveis à própria Millar vêm ainda somar-se as desta tardia edição portuguesa de "A Stranger in My Grave". A primeira estranheza reside no facto de este romance policial, publicado há meio século, ter finalmente chegado aos leitores portugueses com a chancela da Averno, a pequena editora mais ou menos artesanal de Manuel de Freitas e Inês Dias, que publica a revista "Telhados de Vidro" e que, até aqui, se vinha centrando quase exclusivamente na edição de poesia. Mas quando se abre o livro e, logo nas primeiras páginas, se lê uma frase como esta: ""Morte". Assim que a palavra lhe ocorreu, ela sabia que era a verdadeira; as outras às voltas no carrossel tinham-na apenas substituído", os leitores da poesia de Freitas começam rapidamente a suspeitar de que Millar não terá aterrado propriamente por acaso no catálogo da Averno.

Com um formato pequeno e aquadrado e uma bela capa do fotógrafo José Francisco Azevedo, "Um Estranho no Meu Túmulo" é também a demonstração de que existe um caminho entre o regresso às saudosas colecções de bolso, com as suas sedutoras capas surrealizantes, e a generalizada mediocridade gráfica da edição policial contemporânea.

Os aficionados do género terão ainda a grata surpresa de ler um policial impecavelmente traduzido e revisto. E não há dúvida de que Millar merece ser bem traduzida. Quase não há recenseador dos seus livros que não lhe elogie os dotes de ficcionista, a capacidade de criar personagens com genuína densidade psicológica, o ouvido para os diálogos, a singularidade do estilo. O romancista e crítico inglês H. R. F. Keating, que morreu em Março passado, escreveu: "Margaret Millar é seguramente uma das melhores escritoras de ficção policial da segunda metade do século XX, no sentido de que, nos seus livros, a escrita, a prosa, é de primeira qualidade". Um juízo certeiro, mas potencialmente equívoco, já que pode sugerir mera competência, quando a tónica deve ser colocada no poder criativo. Millar é bastante mais do que uma espécie de P.D. James americana.

De origem canadiana e baptizada Margaret Sturm, a autora deve o apelido Millar ao marido, Kenneth, que se celebrizou como autor policial com o pseudónimo Ross Macdonald. Num género onde os casos de dupla autoria são estranhamente abundantes - pense-se em Ellery Queen (pseudónimo de dois primos) ou, entre muitos outros exemplos, no casal sueco Maj Sjöwall e Per Wahlöo -, o facto de Margaret e Kenneth, tendo sido ambos notáveis autores policiais, nunca terem escrito nada a quatro mãos é mais uma singularidade a acrescentar às restantes.

Na verdade, pouco ou nada aproxima os livros de Millar e Macdonald. Se o segundo é considerado por muitos um mestre do "roman noir" e o grande herdeiro de Chandler (para seu desgosto, um dos poucos que não o apreciavam era o próprio Chandler), a primeira costuma ser apresentada como uma escritora que pôs ao serviço da ficção policial tradicional o talento de uma genuína romancista. Apreciação que seria ainda mais justa se não implicasse a subalternização estética do policial e se, por outro lado, assinalasse que o facto de Millar não se enquadrar na legião dos herdeiros mais ou menos directos de Carroll John Daly ou Dashiel Hammett não impede que os seus livros irradiem um sufocante negrume que o "roman noir" propriamente dito raras vezes terá atingido.

Também a distingue do marido a sua recusa em se fixar num só protagonista. Figuras como o psiquiatra Paul Prye, o inspector Sands ou o advogado hispânico Tom Aragon repetem-se em dois ou três livros da fase inicial da sua carreira, mas as suas melhores obras não são protagonizadas por nenhum deles. É, aliás, extraordinário que nunca tenha voltado a utilizar a notável figura de investigador que criou para "Um Estranho no Meu Túmulo", um presumível mexicano que ignora as suas origens e o seu nome.

Hoje bastante esquecida mesmo nos Estados Unidos, onde apenas os seus poucos (e relativos) sucessos comerciais vão sendo reeditados, Millar chegou aos leitores portugueses no final dos anos 50, através da colecção XIS, que teve o mérito de publicar, ainda que em traduções provavelmente um tanto abreviadas, "Vida Por Vida" ("Vanish in an Instant", 1952), "A Bola de Cristal" (o notável "Beast in View", vencedor do prémio Edgar Allan Poe em 1956) e "A Caixa de Prata" ("The Listening Walls", 1959).

Decorrido meio século, pode bem dizer-se que Millar, com esta edição da Averno, emerge do passado - uma expressão que, de resto, vai bem com a sua obra, na qual o presente é quase sempre uma espécie de frágil película estendida sobre um passado que ameaça quebrá-la. Mas, neste como noutros livros da autora, é justamente essa dolorosa emersão do que foi suprimido (num sentido muito freudiano) que pode assegurar ao presente uma espécie de amarga redenção.

Diário

Era uma vez, no Cairo

Diário pessoal e inspirado de quem viveu os dias da revolução egípcia na icónica praça Tahrir.

José Riço Direitinho

Tahrir - Os dias da revolução

Alexandra Lucas Coelho

Tinta-da-China

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A 3 de Fevereiro deste ano, Alexandra Lucas Coelho - jornalista do PÚBLICO e autora dos inesquecíveis "Caderno Afegão" (2009) e "Viva México" (2010), ambos publicados na colecção de livros de viagem da editora Tinta-da-China - estava nos Açores enquanto iam chegando a todo o mundo notícias de que o regime egípcio de Mubarak atacava de maneira furiosa, com gás lacrimogéneo, canhões de água, bastões e armas de fogo, manifestantes por todo o país, mas sobretudo no centro do Cairo, na praça Tahrir, que por esses dias se tinha já transformado num ícone da revolução, num símbolo da resistência ao regime. Em vez de regressar ao Rio de Janeiro - onde é correspondente -, Lucas Coelho pediu uma semana de férias e voou para o Cairo - a "mãe das cidades" onde "multidões se levantam como as ondas do mar e dificilmente podem ser contidas nela", como escreveu no século XIV Ibn Battuta, o "viajante dos viajantes".

"Tahrir - Os dias da revolução" não é uma reportagem jornalística, é o diário da experiência pessoal - com a mesma qualidade de escrita a que a autora nos habituou - que foi viver essa semana de "pandeiretas resistindo na noite", esses dias passados na praça em que a liberdade se podia cheirar no ar, os dias da partilha do pão e da água e dos cobertores, os dias da "juventude em marcha". Mas tudo começara muito antes, em Alexandria.

Em Junho de 2010, a polícia espancara até à morte um jovem, Khaled Said. Alguém criou então no Facebook a página "We Are All Khaled Said", que atraiu muitos milhares de seguidores. Nessa página, incentivou-se a saída à rua no dia 25 de Janeiro, feriado nacional. Entretanto, na Tunísia, o povo tinha já deposto Ben Ali, o déspota corrupto. Daí até que a revolta contagiasse um grande número de jovens (e também outras redes sociais), foi uma questão de dias. (Soube-se mais tarde o nome de quem administrava a página: o egípcio Wael Ghonim, um executivo da Google a trabalhar nos Emirados Árabes Unidos, que a 24 de Janeiro voou para o Cairo porque "tinha um assunto pessoal a resolver no Egipto"; esteve 12 dias preso.) E "quando o mundo olhou melhor, a praça Tahrir era uma revolução."

O que Lucas Coelho viu quando lá chegou, depois de passar por tanques e soldados nas avenidas entre o aeroporto e o centro, foi a massa de gente que fez a revolução: "jovens mas também os pais deles, e os avós; muçulmanos mas também cristãos; religiosos e laicos; pobres e ricos; analfabetos e intelectuais; homens e mulheres."

Depois vieram os dias à conversa na praça, a noite fria passada ao relento com chá quente, cobertores, canções, palmas e cigarros. E há ainda aquele nono andar cuja varanda dá para a praça, "um "zoom" sobre a revolução". Mas que casa é esta? Uma espécie de improvisado centro de imprensa da revolução, onde "uma romaria de gente" entra e sai com computadores e câmaras debaixo do braço, o dono - um romântico com "corpanzil de Francis Ford Coppola" - está sentado à secretária com a página do Facebook sempre aberta e a escrever a história da revolução, e há também "bloggers", videastas, e amigos, e também amigos dos amigos. "Pensem num escritório com armários de madeira e vidro cheios de livros encadernados, pinturas a óleo, velhas caixas de tabaco, candeeiros "art déco". Agora pensem em tudo isto com a "patine" de um século misturada com sacos-cama, câmaras de filmar, pilhas de jornais, laranjas, biscoitos, óculos, maços de cigarros, porta-chaves, raparigas no sofá com portáteis da Apple, rapazes de caracóis teclando em iPhones. Pensem num lugar antigo onde toda a gente está ocupada a fazer o presente." (p. 61)

O livro, com um "epílogo em aberto", termina com a transcrição de uma série de mensagens trocadas no Facebook depois de Lucas Coelho ter voltado a casa - ou não fosse esta uma revolução que antes de se propagar pelas ruas alastrou nas redes sociais -, mensagens essas que mostram um pouco do desencanto (e também da esperança) sentido nos dias que se seguiram ao derrube de Mubarak. Pelo menos uma coisa ficará para sempre: "Qualquer futuro terá este momento": os dias na praça Tahrir.

Um memo-rialista militante

Uma peça central ?da diarística portuguesa no quinto de muitos volumes ?ainda por publicar.

Osvaldo Silvestre

Dias Comuns V. Continuação ?do Sol

José Gomes Ferreira

Dom Quixote

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José Gomes Ferreira (1900-1985) gozou, sobretudo desde os anos 60, de uma reputação que se reflectiu em distinções como o Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores, atribuído em 1961, e que, com alguma naturalidade, o levou à presidência da Associação Portuguesa de Escritores, em 1978. Esta reputação tem revelado dificuldade em sustentar-se, apesar do cuidado programa póstumo de edição da sua obra, que inclui, em posição de destaque, o volume que a Cinemateca Portuguesa lhe dedicou em 2000 - "Uma Sessão por Página" -, reunindo os textos que o autor, ao longo dos anos 20 e 30, dedicou à arte das imagens em movimento, de que foi um cultor pioneiro. E contudo, na vastidão da sua obra e dos seus interesses, que vão da poesia ao conto e à literatura infanto-juvenil (em rigor, "crossover": "Aventuras de João sem Medo", de 1963, que considerava o seu melhor livro), Gomes Ferreira merece seguramente mais do que a desatenção de quem treslê o título sob o qual recolheu a sua poesia - "Poeta Militante" -, não lendo aí o essencial: o compromisso integral do poeta com a poesia. Como neste mais recente volume do seu diário se afirma, em passagem que visa ressalvar o escasso "compromisso político" de Herberto Helder: "Não escrevi eu já uma vez que o poeta tem deveres mais profundos e terríveis como poeta do que como cidadão?" (p. 113).

Saúde-se pois a edição de "Continuação do Sol", quinto volume do diário "Dias Comuns". Lamentemos, entretanto, o facto de o volume I do referido diário, "Passos efémeros", ter saído já em 1990, o que significa que foram necessários 21 anos para editar cinco volumes. A este ritmo, poucos serão os leitores que poderão ler a obra na íntegra, se se confirmar que na gaveta estará ainda uma boa dezena de volumes... O lamento tem sobretudo a ver com o facto de o diário de José Gomes Ferreira ser já uma peça central na diarística portuguesa do século XX, quer pelo inconfundível grão da voz do autor, quer pelo que do século nos restitui, nas suas grandezas como nas miudezas. É o que mais uma vez ocorre neste volume, cujo âmbito temporal vai de 1 de Junho a 22 de Setembro de 1968. Ou seja: o período em que a URSS invade a Checoslováquia ("Como gostaria de estar já no futuro para compreender o que se passa neste momento na Checoslováquia", p. 111) e em que Salazar cai da cadeira e o regime entra numa macabra dança de sombras em torno do improvável resgate do "ilustre enfermo". O espectro do ditador assombra todos os volumes do diário, mas o acidente liberta traumas geracionais duradouros (por exemplo, "a desonra [de] morrer antes dele", p. 206). Gomes Ferreira, porém, não alimenta grandes ilusões sobre "o sentido da História" e por isso dirá: "Prevejo (profecia fácil) que os reaccionários tentarão manter o mito Salazar através dos tempos" (p. 208). E, após o elenco dos tópicos do mito, todos ainda hoje objecto de permanente convocação, concluirá, de modo elucidativo: "Ó homens do futuro: aturem-no morto que nós aturámo-lo vivo - o que foi mais humilhante" (p. 209).

Um outro ponto reconhecível nos diários é a forma como eles deixam ler a estruturação complexa do campo literário português sob o salazarismo. À primeira vista, o campo cinde-se numa oposição nítida entre a "situação", de que aqui um emblema poderia ser António Ferro, apresentado como autor que "não deixou qualquer rasto na língua portuguesa" (p. 131), e a "oposição". O panorama é porém mais complexo, como se depreende da forma como o próprio autor se posiciona, próximo dos neo-realistas mas não confundido com eles, no plano das opções literárias. A presença insistente de termos como "névoa" ou "trevas", a fidelidade à memória de Pascoaes ("meu genial mestre", p. 133, embora - está em causa uma releitura de "Regresso ao Paraíso" que decepciona até doer - "artisticamente tão abaixo das suas concepções"), ou a descrição do seu realismo como algo que "reduz tudo a música de espectros» (p. 124), tudo isto mostra como uma sintonia ideológica não se traduz em afinidade estética. Mais produtivas são porém as clivagens dentro da própria oposição: é o caso da incomodidade da obra e da pessoa de Vergílio Ferreira junto dos neo-realistas e de Gomes Ferreira; de autores como Carlos Queiroz ou Bernardo Marques, colaboradores da revista do SNI, e qualificados por isso como "dois frágeis democratas" (p.p. 51-52); ou Ferreira de Castro, que procura "nas Direitas" o apoio "que lhe faltou à Esquerda" (p. 98) para a sua candidatura ao Nobel.

Mas 1968 é ainda, no plano literário, o ano da publicação de "O Delfim", de José Cardoso Pires, e de "Bolor", de Augusto Abelaira, obras marcantes na ficção portuguesa de então. Amigo próximo de ambos, Gomes Ferreira descreve a recepção das obras, o entusiasmo de Abelaira pelo livro de Cardoso Pires, que não anda longe do seu. Acrescentemos o caso da apreensão pela PIDE de "Apresentação do Rosto", de Herberto Helder; ou os episódios com que o volume contribui para a biografia mítica de Luiz Pacheco.

Muito mais haveria a dizer de uma diarística. Fiquemo-nos para terminar com uma nota definidora da complexidade deste sujeito que se escreve sem complacência ou ilusões: "Sou bom, por princípio. (E por inteligência). Mas não por ser bom" (p. 198).

Ensaio

Estrelas na nossa noite

Maria Filomena Molder torna visível o esforço de pensar com Walter Benjamin. Nuno Crespo

O Químico e o Alquimista. Benjamin, leitor de Baudelaire

Maria Filomena Molder

Relógio D"Água

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Este livro de Maria Filomena Molder é um percurso, intenso e complexo, pelo universo de Benjamin. Não se trata de um comentário ou de um guia pelo pensamento do filósofo alemão; as suas palavras formam antes com as palavras daquele uma ligação de intimidade e partilha. O texto é intenso e obriga a movimentos enérgicos por parte do leitor: andar para trás e para a frente, seguir excursos, fazer pausas, voltar atrás. Tudo gestos próprios de uma leitura que se confronta não com um pensamento acabado, apresentando uma rede estável de conceitos e vocabulários, mas com um esforço e uma actividade de permanente confronto com a exigência filosófica da reflexão.

Sobretudo, trata-se de tornar visível o esforço de pensar com alguém e de fazer surgir, ao longo dessa acção, o pensar por si tão próprio: exigência fundamental da actividade filosófica. Os problemas invocados dizem respeito à linguagem, à arte, à tradução, à crítica, à história e, fundamentalmente, à relação, que a autora tem vindo a explorar, entre arte e filosofia ou, se se preferir, entre poesia e filosofia. Se Benjamin, presença habitual no universo Molder, é o mote, Baudelaire surge como caso de estudo, ou seja, o poeta francês, que Benjamin estudou e onde encontrou ecos de si próprio, é a oportunidade de ver em acção o olhar crítico e contemplativo de Benjamin. Não se trata da apresentação de um método - até porque, como é referido, para o filósofo método é desvio -, mas da oportunidade de surpreender o exercício daquele pensamento.

O parentesco entre a arte e a filosofia é o ponto de partida deste texto - e parece ser o fio que percorre toda esta obra, bem como muitos momentos anteriores do trabalho de Molder -, e essa relação é apresentada, via Benjamin, da seguinte forma: "Tentar conhecer a obra de arte é como travar conhecimento com "uma pessoa bela e atractiva, mas que traz consigo um segredo". A fim de encontrarmos um acesso para essa pessoa, vamos à procura dos seus parentes. Os parentes das obras de arte são os problemas filosóficos. O segredo da arte é, tal como o segredo da vida, um segredo visível" (p.20). E esta visibilidade é o que está sempre a ser invocado e a fazer exigências de compreensão. A inquietação de Molder - idêntica à de Benjamin - é estabelecer a possibilidade de pensar o visível combatendo todo o cepticismo relativamente ao que os sentidos nos podem trazer (e atente-se ao modo como a autora estabelece uma importante ligação entre arte e vida). Ou seja, a arte (como a vida) é um segredo ainda por desvendar, mas esse secretismo não se deve ao lugar escondido e distante onde se inscreve, mas porque o pensamento tem condições estranhas à plasticidade e ao dinamismo do visível.

Depois de estabelecido aquele parentesco (não sendo estabelecida nenhuma diferença significativa entre as linguagens materiais da arte, a música e a poesia), é feita uma aproximação entre crítica de arte, tradução e filosofia. O objectivo é mostrar as afinidade entre estas acções, mesmo havendo problemas próprios a cada uma: "Com frequência, a crítica - aqui claramente equiparada à filosofia - é comparada a um acto de desenterrar, de escavar na terra. O crítico é assim como um mineiro ou um descobridor de tesouros." (p.22) e "a filosofia para Benjamin [...] é um esforço de tradução, coincide com tarefa do tradutor. Isto é, é um esforço em encontrar um ponto em que os múltiplos modos de querer dizer se unificariam sem tensões" (p.40),

Outro aspecto importante, a que corresponde a inquietação própria do filosofar, é a descoberta da noite como o lugar de permanência de todos nós. Consciência esta que não se transforma em fechamento porque as obras de arte podem iluminar e assim deixar reconhecer (nunca anular) essa escuridão constitutiva da vida humana: "Só o brilho das estrelas (as obras de arte) nos tornará a noite suportável, embora não contribua em nada para nos salvar dela, pois a noite retorna" (p.46).

O movimento do texto não é o de fixar um sentido de arte ou de estética, de história, tradução ou crítica, mas descrever com precisão o esforço filosófico enquanto "actividade contemplativa libertadora, no sentido de deixar cair o que está apodrecido, de mortificar as evidências feitas, de modo a tornar os conceitos - rompendo a sua carapaça - aptos a escavar o tesouro que é preciso trazer à luz do dia, para decifrar o enigma em que a vida se torna a partir do momento em que descobrimos que estamos vivos e abrimos entre nós e nós uma distância" (p.54).

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