Um memorialista militante

José Gomes Ferreira (1900-1985) gozou, sobretudo desde os anos 60, de uma reputação que se reflectiu em distinções como o Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores, atribuído em 1961, e que, com alguma naturalidade, o levou à presidência da Associação Portuguesa de Escritores, em 1978. Esta reputação tem revelado dificuldade em sustentar-se, apesar do cuidado programa póstumo de edição da sua obra, que inclui, em posição de destaque, o volume que a Cinemateca Portuguesa lhe dedicou em 2000 - "Uma Sessão por Página" -, reunindo os textos que o autor, ao longo dos anos 20 e 30, dedicou à arte das imagens em movimento, de que foi um cultor pioneiro. E contudo, na vastidão da sua obra e dos seus interesses, que vão da poesia ao conto e à literatura infanto-juvenil (em rigor, "crossover": "Aventuras de João sem Medo", de 1963, que considerava o seu melhor livro), Gomes Ferreira merece seguramente mais do que a desatenção de quem treslê o título sob o qual recolheu a sua poesia - "Poeta Militante" -, não lendo aí o essencial: o compromisso integral do poeta com a poesia. Como neste mais recente volume do seu diário se afirma, em passagem que visa ressalvar o escasso "compromisso político" de Herberto Helder: "Não escrevi eu já uma vez que o poeta tem deveres mais profundos e terríveis como poeta do que como cidadão?" (p. 113).

Saúde-se pois a edição de "Continuação do Sol", quinto volume do diário "Dias Comuns". Lamentemos, entretanto, o facto de o volume I do referido diário, "Passos efémeros", ter saído já em 1990, o que significa que foram necessários 21 anos para editar cinco volumes. A este ritmo, poucos serão os leitores que poderão ler a obra na íntegra, se se confirmar que na gaveta estará ainda uma boa dezena de volumes... O lamento tem sobretudo a ver com o facto de o diário de José Gomes Ferreira ser já uma peça central na diarística portuguesa do século XX, quer pelo inconfundível grão da voz do autor, quer pelo que do século nos restitui, nas suas grandezas como nas miudezas. É o que mais uma vez ocorre neste volume, cujo âmbito temporal vai de 1 de Junho a 22 de Setembro de 1968. Ou seja: o período em que a URSS invade a Checoslováquia ("Como gostaria de estar já no futuro para compreender o que se passa neste momento na Checoslováquia", p. 111) e em que Salazar cai da cadeira e o regime entra numa macabra dança de sombras em torno do improvável resgate do "ilustre enfermo". O espectro do ditador assombra todos os volumes do diário, mas o acidente liberta traumas geracionais duradouros (por exemplo, "a desonra [de] morrer antes dele", p. 206). Gomes Ferreira, porém, não alimenta grandes ilusões sobre "o sentido da História" e por isso dirá: "Prevejo (profecia fácil) que os reaccionários tentarão manter o mito Salazar através dos tempos" (p. 208). E, após o elenco dos tópicos do mito, todos ainda hoje objecto de permanente convocação, concluirá, de modo elucidativo: "" homens do futuro: aturem-no morto que nós aturámo-lo vivo - o que foi mais humilhante" (p. 209).

Um outro ponto reconhecível nos diários é a forma como eles deixam ler a estruturação complexa do campo literário português sob o salazarismo. À primeira vista, o campo cinde-se numa oposição nítida entre a "situação", de que aqui um emblema poderia ser António Ferro, apresentado como autor que "não deixou qualquer rasto na língua portuguesa" (p. 131), e a "oposição". O panorama é porém mais complexo, como se depreende da forma como o próprio autor se posiciona, próximo dos neo-realistas mas não confundido com eles, no plano das opções literárias. A presença insistente de termos como "névoa" ou "trevas", a fidelidade à memória de Pascoaes ("meu genial mestre", p. 133, embora - está em causa uma releitura de "Regresso ao Paraíso" que decepciona até doer - "artisticamente tão abaixo das suas concepções"), ou a descrição do seu realismo como algo que "reduz tudo a música de espectros» (p. 124), tudo isto mostra como uma sintonia ideológica não se traduz em afinidade estética. Mais produtivas são porém as clivagens dentro da própria oposição: é o caso da incomodidade da obra e da pessoa de Vergílio Ferreira junto dos neo-realistas e de Gomes Ferreira; de autores como Carlos Queiroz ou Bernardo Marques, colaboradores da revista do SNI, e qualificados por isso como "dois frágeis democratas" (p.p. 51-52); ou Ferreira de Castro, que procura "nas Direitas" o apoio "que lhe faltou à Esquerda" (p. 98) para a sua candidatura ao Nobel.

Mas 1968 é ainda, no plano literário, o ano da publicação de "O Delfim", de José Cardoso Pires, e de "Bolor", de Augusto Abelaira, obras marcantes na ficção portuguesa de então. Amigo próximo de ambos, Gomes Ferreira descreve a recepção das obras, o entusiasmo de Abelaira pelo livro de Cardoso Pires, que não anda longe do seu. Acrescentemos o caso da apreensão pela PIDE de "Apresentação do Rosto", de Herberto Helder; ou os episódios com que o volume contribui para a biografia mítica de Luiz Pacheco.vMuito mais haveria a dizer de uma diarística. Fiquemo-nos para terminar com uma nota definidora da complexidade deste sujeito que se escreve sem complacência ou ilusões: "Sou bom, por princípio. (E por inteligência). Mas não por ser bom" (p. 198).

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