Quando os turistas procuram a cultura da cidade morta
No Cemitério Père Lachaise, em Paris, passeiam-se milhares de turistas. Todos os anos, os visitantes procuram os túmulos onde estão gravados nomes como Marcel Proust, Edith Piaf ou Jim Morrison. Voando para Buenos Aires, no Cemitério de La Recoleta, o túmulo de Eva Perón continua também a atrair outros flashes fotográficos. Assim como o Cemitério Hollywood Forever, em Santa Monica Boulevard, onde estão enterradas celebridades da indústria de entretenimento norte-americana. Mas não é apenas o "culto" dos famosos que atrai este turismo cemiterial. Também o valor monumental das edificações aparece como chave de um interesse crescente. E os cemitérios portugueses parecem estar, precisamente, a captar cada vez mais público, principalmente oriundo do Norte e Centro da Europa e da Ásia.
O que procuram os turistas que visitam os nossos cemitérios? "Existem sobretudo três tipos de visitantes: estrangeiros, nacionais que valorizam a vertente cultural e a ostentação dos cemitérios e outros que optam pela vertente do turismo "negro"", explica Francisco Queiroz, investigador da Universidade do Porto e especialista em História da Arte.
Se muitos vêem este tipo de turismo como "sombrio", outros encaram-no como singular. Ana Paula Ribeiro, da Divisão de Gestão Cemiterial da Câmara de Lisboa, acredita que esta é ainda "uma tendência embrionária, em Portugal, porque ainda há a ideia de que os cemitérios são lugares santos e relegados para culto da morte, e não um local de cultura."
Dados do município revelam que, só em Setembro de 2010, 800 turistas passaram pelo Cemitério dos Prazeres. Desde Janeiro, houve 7187 visitas de estrangeiros, na maioria alemães e holandeses. "No Cemitério dos Prazeres, já em 1994 (quando comecei a estudar o tema), existiam visitas guiadas. Até hoje, não se evoluiu muito mais. Ainda se anda a passo de caracol.", comenta Francisco Queiroz.
Na capital portuguesa, existe o único núcleo museológico cemiterial do país, na Capela do Cemitério dos Prazeres, onde se faz a interpretação dos elementos de um cemitério. Elementos valiosos, como diz a Associação dos Cemitérios Importantes da Europa (ASCE), que aponta os cemitérios portugueses como dos mais ricos em termos de oferta de arte romântica do século XIX.
No entanto, os municípios ainda tendem a minimizar a sua importância. Prova disso é que, em Portugal, só o Prado do Repouso e o Agramonte, os dois cemitérios municipais do Porto, integram a Rota Europeia de Cemitérios, criada pelo Conselho da Europa, no ano passado. O circuito cultural engloba 54 cemitérios, espalhados por 18 países, e tem trazido vários turistas ao Porto.
"Eles ficam fascinados"Entre 2007 e 2010, cerca de um milhar de turistas visitou os cemitérios portuenses, espaços ricos em contribuições de importantes arquitectos e artistas como Soares dos Reis ou Emídio Amatucci. Procuraram, por exemplo, a exuberância visível num cemitério como o de Agramonte, com mais de 150 anos. O porteiro deste espaço, José Sousa, avança alguns números. Diariamente, diz ver entrar "entre 15 e 20 turistas estrangeiros, principalmente no final da manhã". Júlio Andrade, também porteiro, diz que "entram de mapa e máquina fotográfica em punho". Para eles, é como se o cemitério coleccionasse inúmeras minicatedrais. "Eles ficam fascinados", nota.
Sob o calor das 15h00, avista-se um grupo. Ana Lemos, professora de 27 anos, guia sete estudantes da Universidade Sénior Eugénio de Andrade. "Vimos pela história, pela arquitectura, pela capela, por este ser um exemplo de escultura mortuária. E amanhã trago mais sete alunos", adianta, entre risos. A estudante Maria Gabriela, de 63 anos, explica que não é a primeira vez que visita o cemitério. "Até já tenho aqui o meu sítio", confessa.
Aproveitando o crescente interesse por estes espaços, a Câmara do Porto celebra, entre 28 de Maio e 3 de Junho, a Semana à Descoberta dos Cemitérios, uma iniciativa que decorre em toda a Europa. Desde 2003, têm sido organizadas visitas guiadas nos cemitérios municipais. Mas, em Portugal, ainda não existe um turismo cemiterial organizado. Para Francisco Queiroz, autor da tese de doutoramento Os Cemitérios do Porto e a Arte Funerária Oitocentista em Portugal, o problema maior "é o facto de não existirem guias e visitas (em várias línguas) com regularidade". Por exemplo, em Lisboa, as visitas ainda são feitas por marcação. Algo que poderá mudar brevemente, pois, segundo Ana Paula Ribeiro, a autarquia já está a planear "implementar estas actividades de forma calendarizada".
Francisco Queiroz defende também que deveriam ser editados mais livros sobre a matéria. Mas, admite, "os editores, quando ouvem a palavra cemitério, fogem como o Diabo da cruz", apesar de haver, argumenta, um forte mercado para estas publicações. "Em 2001, dirigi uma colecção de livros sobre o Porto. Propus à gráfica fazer um livro sobre os cemitérios do Porto e não gostaram da ideia, talvez porque o cemitério lembra a morte. Mas a morte é a coisa mais evidente que temos", reitera Francisco Ribeiro da Silva, historiador e professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Na entrada do Cemitério do Prado do Repouso, o primeiro cemitério público no Porto, estabelecido em 1839, Rosa de Jesus Santos vende flores desde os 13 anos. Tem, agora, 70, e diz que, de vez em quando, "vêm uns turistas que passam, olham, lêem a placa identificativa do cemitério e entram. Mas nem compram cravos nem rosas", sorri. "Lá vem um turista", aponta.
De mochila de campismo às costas, Mario Luzza, argentino de 27 anos, avança os portões. "Estava a atravessar a rua e vi umas cúpulas, vim espreitar". Caminhando pelo caminho de terra batida ladeado de cedros, Mario comenta que "as capelas e as colunas são lindíssimas, parece La Recoleta". Passear por um cemitério pode parecer estranho, diz, mas é uma visita que vale a pena. "Há cemitérios com campas rasas em prado, mas este, com as construções, é monumental."
Mais trabalhados ou simples, a estética dos cemitérios marca a diferença. Como o projecto do Cemitério de Monchique, em Guimarães, que conquistou o primeiro Prémio Nacional de Arquitectura Paisagística na categoria Espaços Exteriores de Uso Público, em 2005. Trata-se de uma obra situada na encosta da Penha e funciona visualmente como uma extensa área verde com a presença da água a marcar todo o cenário. "Os cemitérios são um espaço também para os vivos, constroem-se edificações para a contemplação", assinala Queiroz.
O roteiro dos escritoresNo Cemitério da Lapa, o mais antigo cemitério particular do Porto, passando pelo mausoléu de José Ferreira Borges ou pela capela de José de Parada Silva e Leitão, aprecia-se esta grandeza. Paredes-meias com a igreja onde se encontra o coração de D. Pedro IV, Camilo Castelo Branco repousa no cemitério. E o revólver com que o autor de Amor de Perdição se matou ou as cartas de amor a Ana Plácido encontram-se também na Irmandade da Nossa Senhora da Lapa. José António, responsável pelos recursos humanos da irmandade, explica que as visitas que o cemitério recebe são essencialmente "a nível escolar". Recorda que, em 2001, quando o Porto foi capital europeia da cultura, desenvolveram várias actividades no espaço.
Francisco Ribeiro da Silva realizou algumas visitas guiadas. "O cemitério romântico permitiu construir para o morto, por grandes arquitectos e escultores, a cidade dos vivos." Nestes espaços, "há inscrições de sabedoria popular incrível. E na Lapa, por exemplo, por todos os escritores que cá estão sepultados, poder-se-á fazer até turismo literário", acredita.
Os cemitérios podem, então, não ser apenas espaços de meditação e silêncio, mas também de aprendizagem sobre a própria cidade. "De todos os sítios e monumentos que vão ver, os cemitérios envolvem visitas demoradas para os turistas. Há que caminhar, observar os pormenores. Os que reconhecem o que vêem e seguem roteiros acabam por ficar muito tempo na cidade, o que é excelente para o turismo", defende Francisco Queiroz, que acredita que "a dinâmica deste turismo existe, mas vem de fora para dentro. São os próprios turistas que vão forçar as câmaras a fazer algo neste área", vaticina. "Há que preservar-se estes espaços e perder-se o receio de transformar os cemitérios, que têm uma cultura imensa, em elemento visitável. Não há nada de sorumbático e sombrio nisto", conclui Francisco Ribeiro da Silva.