Não foi para morrer que nascemos
Toda a história do cristianismo é um denodado esforço contra o nada como meta e como origem
1. Entre as muitas leituras, da última Quaresma, os Trinta Anos de Poesia, de Jorge de Sena, acompanharam-me como livro de resistência: "De morte natural nunca ninguém morreu./ Não foi para morrer que nós nascemos,/ não foi só para a morte que dos tempos/ chega até nós esse murmúrio cavo,/ inconsolado, uivante, estertorado,/ desde que anfíbios viemos a uma praia/ e quadrumanos nos erguemos. Não./ Não foi para morrermos que falámos,/ que descobrimos a ternura e o fogo,/ e a pintura, a escrita, a doce música./ Não foi para morrer que nós sonhámos/ ser imortais, ter alma, reviver,/ ou que sonhámos deuses que por nós/ fossem mais imortais que sonharíamos./ Não foi".
Para este poeta, a eternidade não é uma duração infinita. À semelhança de Wittgenstein, pensava nela como intemporalidade: "E a vida então será, sem noite e sem memória, o prazer puro em triunfar-se viva".
Não comungo dos textos nacionalistas da Bíblia que fabricam inimigos para matar. Outra é a linguagem da Sabedoria bíblica: "Deus não fez a morte nem tem prazer em destruir os viventes. Deus criou o ser humano para a incorruptibilidade e o fez imagem da sua própria natureza; foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo. Mas tu compadeces-te de todos, pois tudo podes, fechas os olhos diante dos pecados dos seres humanos para que se arrependam. Sim, tu amas tudo o que criaste, não te aborreces com nada do que fizeste; se alguma coisa tivesses odiado, não a teríeis feito. E como poderia subsistir alguma coisa, se a não tivesses querido? Como conservaria a sua existência, se a não tivesses chamado? Mas a todos perdoas, porque são teus: Senhor, amigo da vida" (Sb 3 e 11).
2. São poemas do desejo que a evidência do fenómeno biológico da morte parece neutralizar. Celebrámos, no passado dia 5, na Igreja do Convento de S. Domingos, a passagem da morte à vida do Frei José Augusto Mourão.
Deixo alguns fragmentos das suas homilias que apontam para a fonte da sua confiança na vitória do impossível: "Que desejamos, afinal, deixando de lado os desejos vulgares que não precisam de um Deus para se satisfazerem? Acima de tudo, não morrer, ou não morrer definitivamente; não perder aqueles que amamos - não dizemos que o amor é mais forte do que a morte? Outro desejo: que a justiça e a paz acabem por triunfar. Outro ainda: encontrar alguém que nos ame com bondade".
É um desejo com raízes: "Nós sentimos e experimentamos que somos eternos. Sentimos a vida em nós como aquilo em que vivemos, sabendo que não nos damos esta vida a nós próprios". O filósofo M. Fraijó vem em auxílio dessa convicção: "O cristianismo afirma que a noite não nos surpreenderá. O ser humano é algo mais do que um breve parêntese entre duas obscuridades: a do nada, de onde vimos, e a do sepulcro, para onde nos encaminhamos. Toda a história do cristianismo é um denodado esforço contra o nada como meta e como origem (1).
É na conferência que preparou para a última Sexta-Feira Santa - que já não pôde ler - que afirma: "A conversão do impossível em possível acontece na passagem dos homens a Deus. Mas esta passagem faz-se a partir de Deus. O mais impossível para nós, para ele é possível. A impossibilidade é a marca distintiva da diferença de Deus face aos homens. O maior milagre de Cristo é a sua ressurreição. Ao aceitar a morte, Jesus aceita o fim de toda a possibilidade, como aos olhos dos discípulos e dos políticos: tudo está consumado. Tudo acabou. A morte triunfa porque com a morte (do Santo) dá-se a morte da possibilidade de tudo e de todos. Ora, é esta possibilidade mundana que o poder de Deus desafia. A noite pascal fez com que a impossibilidade triunfasse sobre Cristo. Ele tomou-se o primeiro ressuscitado de entre os mortos e também de numerosos irmãos a quem abriu a possibilidade. Porque é a novidade em pessoa, pode fazer novas todas as coisas.
"Claro que vamos morrer, uns mais cedo do que outros. Aceito ou não que a minha morte decida do meu fim? Recusar a ressurreição equivale a resignar-se a acabar".
3. Para falar da morte e da ressurreição, o Frei José Augusto Mourão preferia, no entanto, associar a música que escolhia para os poemas que ele próprio criava. Recordei, no passado dia 7 - na apresentação da Obra Poética, de Maria Natália Duarte Silva (Teotónio Pereira) - que, no seu funeral, em 1971, o Frei Mourão cantou o seu hino pascal: "Ressuscitou, o Cristo está vivo! Porque o buscais no meio dos mortos? Ressuscitou como disse! Aleluia!". Agora, passados 40 anos, para celebrar a passagem da morte à vida deste irmão, voltamos a cantar a mesma letra com a mesma música.
Foi também cantado, nesse momento, outro poema e música que ele compôs para o funeral de uma irmã dominicana: "Não pode a morte reter-me na cruz. Não pode o mundo arrancar-me à raiz. Ao pé de Deus hei-de sempre viver; com Deus cheguei e com Ele vou partir".
Ana Cristina da Costa Gomes/José Eduardo Franco (2) e o Padre Tolentino apontaram a direcção para o aprofundamento da obra provocadora deste dominicano: "A impressionante ponte (apetece escrever a "impossível ponte") que ele, quase marginalmente, desenha entre o campo da fé e o da razão, entre a liturgia e a poética, entre a regra e o desejo. Por alguma razão, ele nunca foi um criador confortável, nem para o campo católico, nem para os parâmetros da cultura dominante".
(1) José Augusto Mourão, Quem vigia o vento não semeia, Pedra Angular, Lisboa, 2011, p. 273-274
(2) Dominicanos em Portugal. História, Cultura e Arte, Aletheia, 2010