Um conto de fadas contra o destino

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A tensão entre o efeito de multidão dos grupos de peregrinos e a história individual de Christine marca "Lourdes"

"Lourdes é a terceira longa-metragem da austríaca Jessica Hausner. Uma história sobre a fé num milagre, sobre a fé no amor. Francisco Valente

Antes de conhecer Lourdes, local de peregrinação católica no Sul de França, Jessica Hausner procurava criar um filme a partir da ideia de um milagre. Mas foi na função desse local - um ponto geográfico onde as pessoas rumam para celebrar um desejo de fé - que Hausner viu o palco ideal para se debruçar sobre o sentimento contraditório da crença no inatingível: o amor pelo outro. "Antes de descobrir o sítio, já pensava criar uma história sobre isso. E uma das razões que me levou a fazer o filme em Lourdes foi o facto de ser um local verdadeiro onde se anunciam milagres. Pegar num sítio real em vez de o inventar na escrita deu-me a oportunidade, enquanto autora, de me colocar num ponto exterior e desenvolver a ideia", diz ao Ípsilon.

Hausner escreveu a partir de Lourdes esta sua terceira longa-metragem: a história de Christine, uma doente de esclerose múltipla que ali se dirige como opção de último recurso para recuperar o funcionamento do seu corpo, agora preso a uma cadeira de rodas. No seu trabalho de pesquisa no local, a realizadora austríaca observou a movimentação de pessoas vítimas da arbitrariedade da doença física em busca da cura. Sylvie Testud, a sua actriz principal, transpôs as limitações da personagem para a sua vida real durante a rodagem do filme: "Percebeu que, para uma mulher deficiente motora, é constrangedor ser tocada constantemente: alguém que a levante da cadeira para se deitar ou sentar, que a alimente, vista ou dispa", nota a cineasta. Todos esses momentos são acompanhados pela sua câmara: a aparente impassibilidade do olhar da personagem é, no fundo, o que lhe resta de uma dignidade pessoal difícil de reproduzir aos olhos dos outros: "Há uma urgência em reencontrar partes da sua dignidade, urgência de se sentir como um ser humano e não como um bebé. Quando a a actriz percebeu isso, disse-me que tinha entendido a personagem"

Mas Christine revela-se um elemento de um mecanismo preparado: a movimentação encenada do turismo religioso, que busca, para além da devoção espiritual, a resolução de problemas palpáveis que afectam uma vida terrena condicionada pelo físico. A personagem não esconde o objectivo da sua presença em Lourdes, ao contrário de outros visitantes com quem convive e que, entre o desespero das suas limitações e a frustração, se entregam cegamente à irracionalidade do desejo de um milagre. Um elo oposto a Christine é Cécile, religiosa e líder do grupo peregrino, interpretada por Elina Löwensohn. "É como um espelho contrário de Christine. Enquanto esta é uma personagem pragmática com um olhar realista sobre o que a rodeia, Cécile tem uma crença muito forte", diz-nos Hausner.

Do milagre ao conto de fadas

É quando ocorre, aparentemente, a tão ansiada cura em Christine - mais pela fervorosa competição dos outros peregrinos do que pela própria - que se espelha, ainda mais, o isolamento e a incompreensão de cada personagem. Resta-lhes a entrega, por um lado, à inveja de Christine, e por outro, ao absurdo do acontecimento, antes do desenlace final de uma doença escondida. "Se Cécile duvida do milagre de Christine, será mais por uma punição que se inflige a si mesma, pois não se atreve a desejar o mesmo para si. É algo que lhe dá um lado muito rígido, e a história mostra que, por vezes, o destino cai sobre nós de forma injusta", ajuiza a realizadora.

É esse o motivo central de "Lourdes": "Procurava mostrar o lado absurdo da crença num milagre. As coisas podem acontecer tanto de uma maneira como de outra, e, enquanto seres humanos, tentamos sempre dar um sentido ao que nos acontece. Mas o destino é mais forte, e temos de aprender que, independentemente do que tentamos fazer, as coisas acontecem da forma que elas desejam e não como nós desejamos", continua.

A dúvida sobre o milagre de Christine transforma-se, entretanto, na segurança do seu renovado desejo por um dos guardas do grupo de peregrinos. E aí revela-se o que todos buscam em Lourdes: dar e receber amor, serem reconhecidos na sua capacidade de ternura e como fonte de vida de uma relação. A história que se esconde por trás de "Lourdes" é esta, aponta Hausner: o amor como conto de fadas. "Inspirei-me na "Cinderela" dos irmãos Grimm, uma rapariga ignorada que, um dia, encontra um príncipe. De repente, o seu pé cabe num sapato e ela torna-se na princesa que todos invejam." Para a realizadora, "não é apenas o milagre de Lourdes que inspira o filme, mas o milagre do amor: uma rapariga paralisada que encontra o seu príncipe encantado, mas que poderá perdê-lo outra vez no fim."

A irracionalidade da fé absoluta na pureza de uma paixão, ou numa eterna felicidade interior, servirá tanto de mote para o vazio que percorre as personagens peregrinas de Lourdes, como para as relações de amor que as suas almas pedem naquela paisagem idílica. E o absurdo daquelas crenças será o palco para que uma noite ouça, no milagre dos seus sonhos: "someday my prince will come."

Ver crítica de filmes pág. 38 e segs.

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