Lobo bom

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Perguntar a Norberto Lobo se toca diariamente é um absurdo: Não consigo imaginar um músico que não esteja sempre a tocar

Um cachimbo e uma legenda: "Isto não é um cachimbo". René Magritte, 1929. Uma guitarra e uma inscrição: "Esta máquina mata fascistas". Woody Guthrie, 1940. Olhar para uma coisa e ver para além dela. Ou, pelo menos, tentar estrafegar impiedosamente a ideia fechada que temos sobre algo. Quando um músico como Fred Frith sobe ao palco, diz-nos Norberto Lobo, "senta-se e dá um concerto em que é inacreditável o que ele faz com uma guitarra e poucos pedais". "É uma máquina de fazer sons e ele toca-a como tal", acrescenta. "Uma guitarra que não é uma guitarra". Norberto Lobo sobre Fred Frith, 2011.

O concerto a solo de Frith a que Norberto assistiu tornou-se um reservatório de inspiração a que o músico recorre frequentemente. Foi em Maio de 2010, na sala La Carène, em Brest, que passaram pelo mesmo palco do festival Sonore, e aquilo que Norberto sorveu das mãos de Frith ainda hoje lhe serve de ensinamento. Também a guitarra do português incha a cada disco, as madeiras parecem dar de si, deformam-lhe as curvas e deixam circular pelas frestas uma música que transcende cada vez mais o próprio instrumento. Cada vez mais, Norberto Lobo toca guitarra porque toca guitarra. Assim como podia tocar outra coisa qualquer. "Fala Mansa", terceiro álbum, é um murro na mesa que impõe essa verdade - se as mãos de Norberto acabassem num piano, ele seria um iluminado homem do jazz; assim, é um guitarrista sem lugar, cuja abordagem ao instrumento é comparável à de Jack Rose e de John Fahey, mas também à guitarra portuguesa de Carlos Paredes.

Norberto Lobo gosta de resgatar à algibeira uma citação de John Fahey em que este dizia que o seu objectivo era hipnotizar as pessoas. Este Lobo bom não acredita em nirvanas em cima do palco, "porque se não uma pessoa estava em transcendência permanente e isso era um bocado cansativo". Prefere a versão de que a música, praticada num contínuo, se aproxima da poesia. "Fala Mansa" é, à sua maneira, uma elevação da música ao estado poético, uma sequência de tons e cores sem palavras, aceitando unicamente um murmúrio vocal indecifrável que parece um fantasma de Chet Baker a assombrar magnificamente o tema título.

Quando se lhe tira a guitarra das mãos, as palavras também parecem atrapalhar Norberto Lobo. Como aquela velha ideia indígena de que uma fotografia pode roubar a alma. Falar, discutir a música, parece ler-se no rosto de Norberto, emagrece o mistério da criação. Luz a mais queima, fere as canções.

Mas não é só para o exterior que Norberto Lobo se revela um mistério. Há algum que guarda para consumo próprio, e que é fundamental para testar a sua fé num álbum acabado de gravar. "Fala Mansa" também passou a prova: "Se ficar com uma sensação de algum mistério quando acabo um disco, é bom sinal. Se fizer um disco e não o sentir, não posso editar. Tem de haver qualquer coisa que também não sei como fiz".

Este encantamento ressalta de uma forma vibrante em "Fala Mansa" - mas também nos anteriores "Mudar de Bina" ou "Pata Lenta" -, como se cada música fosse abordada com o entusiasmo infantil de quem consegue redescobrir constantemente um primeiro olhar sobre as coisas, por pouco que possa haver de novo. Entendemo-lo quando Norberto diz ver nas - a voz trava a fundo antes de chamar-lhes isto, mas depois retoma a marcha e ultrapassa a hesitação - canções "um organismo, uma coisa viva em constante mutação". Por vezes, temos até a sensação de que segue em cima delas, a cavalgar, como num "rodeo", mas não para as domar ou dirigir, antes para ser dirigido. Se Norberto usa as rédeas, é para não cair, e não para escolher o caminho.

Cola gasta

Ponham-no num sítio e ele toca, esquecendo nos primeiros cinco segundos onde foi largado com a guitarra. Daí que a aura romântica que se atribui ao facto de Norberto ter gravado "Fala Mansa" numa casa particular perto de Mértola não envolva, na verdade, uma inspiração alentejana com passeios pelos campos, pores-do-sol em alpendres e copos de vinho tinto esquecidos ao lado da guitarra. Quando chegam a Norberto, os clichés têm a cola gasta. Caem sem charme. E descobre-se um outro fascínio, da ordem da pureza. Mértola foi uma razão puramente acústica, foi a casa do avô do técnico de som Eduardo Vinhas e foram sobretudo as propriedades de duas divisões, uma delas uma biblioteca feita de livros e madeira. Nisto, aquilo que lhe agrada é a oposição à impessoalidade do estúdio, onde "não há móveis, não há aquelas coisas que as pessoas usam no dia-a-dia". Norberto não quer os seus partos num bloco operatório, quer os seus partos em casa(s).

Em 2011, espera lançar ainda um segundo álbum com os Tigrala e um disco de colaboração com o outro Lobo, nome próprio João, baterista de jazz. Criador incontinente, o guitarrista que diz nunca ter pensado em si como tal não se lembra de alguma vez ter pegado na guitarra para ensaiar. "Quando me sento à guitarra é para fazer canções, não é para tocar as antigas", explica. E fá-lo todos os dias, como se munido de uma faca de mato num desbravar constante de novos rumos. De resto, perguntar-lhe se toca diariamente roça até o absurdo: "Não consigo imaginar um músico que não esteja sempre a tocar. É uma profissão, faz-se todos os dias".

E é nesse processo diário que se constrói esta verdade: isto não é uma guitarra, é uma guitarra nas mãos de Norberto.

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