Uniões gays: "O Brasil acordou mais livre e mais democrático"
Estamos no centro do Rio de Janeiro, no gabinete de pesquisa da Universidade Cândido Mendes onde Sílvia é investigadora, e ela tem boas razões para crer que esta "esquizofrenia" do Brasil agora pode diminuir.
Porque na quinta-feira, dia 5, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, a união estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar. Uma decisão histórica que fará com que as regras das relações estáveis entre homens e mulheres sejam aplicadas aos casais homossexuais, suprindo assim um longo vazio legislativo.
Ao concluir a votação, o presidente do Supremo, Cezar Peluso, desafiou mesmo os deputados da nação: "O Poder Legislativo, a partir de hoje, tem de se expor e regulamentar as situações em que a aplicação da decisão seja justificada. Há, portanto, uma convocação em relação ao Poder Legislativo para que assuma essa tarefa que até agora não se sentiu muito propenso a exercer".
Desde 1995 que uma proposta para reconhecimento dos direitos de casais gay estava à espera no Congresso. E nada aconteceu, apesar dos homossexuais serem "demonizados" por pastores, agredidos por skinheads e por vezes mortos - no país do samba e do Carnaval, todas as grandes cidades têm casos de travestis brutalmente assassinados.
A mentira"O Brasil é uma grande mentira", diz o escritor João Silvério Trevisan, 66 anos, pioneiro dos direitos gays, ao telefone, de São Paulo. "O Carnaval é um símbolo clássico do que é o Brasil: o país da máscara. A bissexualidade é um exemplo: uma falsa bissexualidade, sobretudo de homens que se escondem atrás de casamentos. Isto tem a ver com o jeitinho brasileiro. É um país que se move por factos consumados, não por projectos políticos. Por isso, digo que há muito tempo não tinha orgulho assim do Brasil."
Como teve com a decisão do Supremo. "O que os nossos intelectuais de esquerda não fazem, os ministros do Supremo fizeram. Deram uma aula não só para o Congresso como para a nossa intelectualidade chamada progressista."
Os (des)encontros entre activismo gay e esquerda vêm da ditadura, nos anos 70. Trevisan viveu nos Estados Unidos, "em exílio voluntário entre 1973 e 1975, porque o clima aqui estava irrespirável", e lá contactou com os movimentos cívicos. "Quando voltei decidi iniciar um movimento pelos homossexuais. É a pré-história da coisa." Fundou a organização SOMOS e o jornal O Lampião da Esquina, que a censura acusou de atentado à moral.
"Fomos fichados na polícia. Éramos vistos pela ditadura como parte da esquerda. Nós éramos parte da esquerda, mas a esquerda não era parte da gente! Era muito machista, muito ortodoxa, achava que rompíamos a unidade da luta proletária. As lutas feministas, dos negros, dos homossexuais eram vistas como menores."
Ponta-de-lançaE depois, já em plena democracia, os direitos dos homossexuais não se tornaram prioritários.
"Temos uma bancada evangélica e católica no Congresso que envia constantes recados de que não passaremos por eles. Não acham que tenhamos direitos. Negros e mulheres, tudo bem, homossexuais não. Apesar de dizerem que não aceitam o pecado mas aceitam o pecador, já tivemos no Brasil um grupo evagélico, Moses, para tratamento de homossexuais, que eram internados supostamente de forma voluntária."
Quando o Conselho Federal de Psicólogos proibiu os clínicos de tratarem a homossexualidade como doença, psicólogos evangélicos chegaram a mover processos, lembra este activista. E há muitos exemplos da "dedicação obsessiva com que a bancada religiosa reproduz os sermões das igrejas".
"É incorrecto dizer que a situação se deve exclusivamente a essa bancada. Faz parte do movimento de direita e conservador que continua a existir no Brasil. Temos muitos partidos de direita. Mas a bancada religiosa no Congresso será a ponta-de-lança."
A união estável implica o reconhecimento de que os homossexuais amam, diz Trevisan. É isso que os deputados religiosos, sobretudo evangélicos, não aceitam. E o seu poder é tão grande - desde 2006 duplicaram mandatos - que a esquerda vai a reboque, para ganhar votos. "As nossas reivindicações têm sido adiadas em função dos interesses. Somos reféns dos partidos progressistas. O PT é um partido muito pragmático. Quando lhe interessa, faz as coisas. Quando tem outras prioridades, atropela." Lula tentou centralizar a luta pelos direitos homossexuais, chegou a convocar um Congresso Nacional e criou a iniciativa Brasil Sem Homofobia.
"Mas que fez esse Brasil Sem Homofobia?", questiona Trevisan. "Conta-se pelos dedos. É como se o PT vendesse uma imagem para poder trabalhar com circunstâncias mais pragmáticas."
É verdade que "se não fosse o PT não teríamos uma série de conquistas importantíssimas", ressalva. Mas o PT foi abrindo mão do que podiam ter sido conquistas. Como, por exemplo, a actual senadora Marta Suplicy, do PT, que enquanto deputada levou o projecto sobre as parcerias gay ao Congresso. Mas, depois, "enquanto prefeita de São Paulo, recusou-se a criar uma coordenadoria homossexual como existe para mulheres e negros, porque precisava dos votos evangélicos".
Então, para este activista, as grandes experiências políticas do movimento LGBT têm sido as paradas. A de São Paulo tornou-se a maior do mundo, quase ocupando a cidade por quatro dias, mas hoje acontecem paradas até em cidades pequenas.
Uma visibilidade que também acirra a resposta dos conservadores, alerta Trevisan. "Tem os skinheads municiados ideologicamente pelos argumentos desses conservadores religiosos, a mencionarem a questão da família em primeira instância. Tem os travestis, que começam a ser estuprados aos 10, 11, 12 anos pelos pais, pelos tios, pelos primos e aos 13 são jogados na rua. E um dos factos mais notórios aqui em São Paulo são os rapazes de classe média que ficam próximos aos bares gays e no final atacam." Exemplos de como "a sociedade brasileira está sendo municiada pelos pensadores conservadores, nos seus blogues, nos seus sites, com actividades de incitamento à violência".
Por tudo isto, a decisão do Supremo é "uma revolução para a democracia", ao representar "o reconhecimento do amor, da união estável". A ponto de para João Silvério Trevisan a questão do casamento ser "secundária".
Big Brother gayJean Wyllys, 37 anos, tornou-se um caso nacional ao vencer o Big Brother brasileiro em 2005, depois de se assumir homossexual. Vindo dos movimentos católicos e cívicos, Wyllys é hoje deputado eleito pelo PSOL (comunistas) e foi a caminho do Congresso, em Brasília, que falou ao PÚBLICO por telefone.
Mesmo sendo congressista, não tem dúvidas em dizer que foi "a omissão do Congresso" que levou o Supremo a decidir. "E ao contrário do que afirmaram deputados, o poder judicial não usurpou. Tratou-se de julgar uma acção quando o Congresso é omisso."
Como Trevisan, Wyllys também acha que essa omissão se deve às forças conservadoras. "A bancada religiosa, mas também a bancada ruralista, que defende o agronegócio, as grandes plantações de soja. São forças de direita, com um discurso sexista e machista que atravessa o Congresso, unindo sindicalistas e ruralistas."
Sindicalistas? "Têm uma inclinação de esquerda quanto aos direitos do trabalho. Mas quando se trata das mulheres e dos homossexuais unem-se aos ruralistas e aos evangélicos." Estamos a falar do PT? "Também. Alguns deputados do PT recusaram-se a assinar uma frente parlamentar pela cidadania LGBT. A deputada Benedita da Silva [lulista, ex-governadora do Rio] recusou-se a assinar porque é evangélica."
O Brasil, acha Wyllys, "precisa de uma reforma política que faça os eleitores votarem de forma mais consciente". O que se passa actualmente "é um voto de cabresto", diz. "Existem currais eleitorais que mantêm o eleitorado na ignorância, e as pessoas acabam por votar por favores e políticas assistencialistas. O Congresso está cheio de pessoas que não representam a transformação da sociedade, mas sim currais. A sociedade mudou muito mais do que o próprio Congresso. O Congresso é insensível às demandas. Então cabe aos poderes judiciário e executivo atender."
Esperava a decisão do Supremo, mas não ousara esperar que fosse unânime. "Amadureceu a democracia. O Brasil acordou mais livre e mais democrático. E quando aprovarmos o casamento, estaremos tão maduros quanto Portugal, Espanha, Argentina ou África do Sul."
Wyllys está a recolher assinaturas no Congresso para apresentar a proposta de casamento. Outra prioridade é a criminalização da homofobia. "Temos deputados pastores evangélicos que no púlpito incitam ao ódio e demonizam a homossexualidade. Ao considerarem homossexualidade coisa do demónio estão dando chancela a assassinos ou agressores que acreditam que estão a fazer o bem." O mais recente homicídio de um travesti aconteceu na Paraíba, Nordeste do Brasil. "Morreu com 37 facadas diante das câmaras de segurança instaladas na rua."
E o Brasil muitas vezes não quer ver o evidente, diz Wyllys. "O massacre de 12 crianças em Realengo [em Abril] entrou nos grande media com uma aproximação forçada ao islamismo, quando aquela carta [deixada pelo assassino] é fruto do fundamentalismo cristão."
Uma bússolaDe volta ao oitavo andar no centro do Rio, onde Sílvia Ramos investiga violência anti-homossexual.
A sua experiência pessoal é o oposto. Há 21 anos que vive com a artista e psicanalista Numa Ciro e nunca sofreu qualquer tipo de discriminação, do porteiro à universidade, passando pela família. "Claro que estamos protegidas. O segmento intelectual e artístico é muito mais aberto por exemplo do que o empresarial." Não se trata de classe social. "Não é verdade que haja mais preconceito entre os pobres. Por exemplo, numa favela um rapaz efeminado pode ser bem mais acolhido que numa escola de classe média-alta."
Mas olhando para o Brasil como um todo, o que Sílvia diz é que, em termos morais, "é um país progressista publicamente e conservador em privado". A tal esquizofrenia entre a casa e a rua. "Como um país que elege um ídolo gay no maior programa de TV [Big Brother], ama os personagens gays das novelas e os seus artistas gays, pode produzir tanta homofobia, tantos rapazes espancados em casa, mortes físicas?"
Sílvia tem ressalvas a fazer quanto à responsabilidade dos meios religiosos. Na base da Igreja católica brasileira, diz, há uma tradição de não seguir as normas do Vaticano. "Na vida real, os padres acolheram os desquitados, e isso é válido também para as camisinhas [preservativos] e para os homossexuais. O padre na paróquia não só é homossexual como os acolhe."
E algumas igrejas evangélicas "são extremamente liberais", ressalva. "Conheço um monte de gays de extracção pobre que são muito acolhidos nas suas igrejas." Mas essa não será a realidade das mais poderosas igrejas evangélicas.
Por tudo isto, a decisão do Supremo é histórica. ""Pode não gostar, mas engula. E se expressar publicamente homofobia, pode até ser preso." Um aviso para toda a sociedade e para o Congresso." Uma "bússola".
"O executivo tem sido muito progressista ali e aqui e muito retrógrado por exemplo em relação às Forças Armadas", diz Sílvia, lembrando os dois sargentos gays que foram presos em 2008. "O Presidente Lula não deu um pio e foi uma situação de humilhação e tortura pública."
É esta página que o Supremo vira, "de forma enfática e cristalina", e isso poderá ajudar a violência a diminuir. Não significa "o fim de vivências terríveis e dolorosas". "Na vida familia , como na escola, a percepção de ser excluído ainda é muito forte. Mas a tendência é para que a violência mais grave se reduza e para que haja uma inibição das manifestações mais públicas de homofobia aberta."
Um bom sinal, conta Sílvia: recentemente, duas jovens beijavam-se num restaurante quando o gerente lhes pediu para saírem. "E o restaurante inteiro indignou-se contra o gerente."