Eddy Merckx: "É fácil chegar ao topo, difícil é lá ficar"
Eddy Merckx - Absolutamente. Agora ou daqui a 50 anos, se pudesse escolher, voltaria a ser ciclista.
Não. Há, sim, mais pressão mediática, porque há mais pessoas e jornalistas a seguirem a modalidade, especialmente durante o Tour. Mas o ciclismo continua igualmente duro, igualmente espectacular. Um campeão de hoje seria um campeão de outra época.
Olha para o pelotão e vê ciclistas com a qualidade dos da sua geração?
Sim. Vemos alguém como o Philippe Gilbert, como o Andy Schleck e percebemos que são óptimos ciclistas. O ciclismo mudou, evoluiu, mas o Tourmalet continua a ser o Tourmalet, o Tour continua a ser o Tour.
Não mencionou Contador...
Depende do que decidir o Tribunal Arbitral do Desporto (TAS). Ele tem qualidade, mas precisamos dessa decisão para saber se é realmente um grande ciclista ou não. Espero que esteja inocente, porque seria mau para a modalidade.
E, mais uma vez, vemos o doping associado ao ciclismo...
Não há mais doping no ciclismo do que noutros desportos. Simplesmente, há mais controlo. É o desporto mais difícil, mais duro, mas também o mais bonito. O doping não faz nada: um ciclista é campeão porque tem talento, porque se esforça e é tudo.
Em tempos disse que para ganhar uma grande Volta era preciso ser bom todos os dias. Agora, olhando para as três grandes e vendo quem acaba em primeiro da geral, está convicto do mesmo?
É exactamente a mesma coisa. Pode perder-se uma grande Volta todos os dias, seja numa etapa plana, numa de montanha, num contra-relógio. Só quando se atravessa a meta na última etapa, no último dia, é que a vitória está segura.
É tido como um dos melhores ciclistas de todos os tempos, mas vendo o seu currículo não restam dúvidas de que é o melhor de sempre. Não considera injusto não o cotarem como tal?
Não, nem penso nisso. O mais importante é verem-te como o melhor enquanto competes. Interessa seres o melhor da tua geração. Fazerem comparações entre tempos e épocas diferentes é uma estupidez.
Ao contrário dos outros grandes ícones da modalidade, não se contentou com vencer as grandes Voltas. Ganhou clássicas, campeonatos do mundo, bateu o recorde da hora... Qual era o segredo da sua polivalência?
Era uma combinação de motivação e talento, de uma vontade intrínseca de constante superação pessoal, que implicava o estabelecimento de desafios novos todos os anos. Nunca pensava que era o melhor e que isso bastava, sabia que tinha de me sacrificar mais, trabalhar mais. Noutros desportos é igual. Por exemplo, porque é que o Federer e o Nadal estão há tanto tempo no topo? Porque treinam muito, são verdadeiros desportistas e esforçam-se para ser sempre melhores.
Basta ser-se naturalmente bom?
O talento não é suficiente. É preciso talento, mas depois a pessoa tem de trabalhar muito, caso contrário, mais cedo ou mais tarde, a sua carreira acaba. Veja-se o exemplo do [Frank] Vandenbrouke [morreu de overdose]: tinha talento, estava no topo e perdeu-se em saídas à noite, em discotecas, no consumo de cocaína. Se não se for um desportista na essência da palavra não se vai ter sucesso. É fácil chegar ao topo, difícil é lá ficar.
E, no seu caso, quais foram os traços distintivos?
Ser capaz de sofrer mais do que os outros. E o facto de os meus pais me terem educado muito bem. Deles herdei a força, a coragem, o realismo de saber manter sempre os pés no chão.
Apoiaram-no quando decidiu ser ciclista?
Completamente.
Como descobriu que era essa a profissão que queria ter?
Não sei. Tinha três, quatro anos e dizia que queria ser ciclista. Ninguém da família tinha ligação à modalidade nem ninguém que eu conhecesse. Penso que, da mesma forma que alguém se torna padre ou decide ser advogado, eu senti que queria ser corredor.
Porque abandonou tão novo?
Mentalmente, não era possível continuar. Não foi uma questão de capacidade física, embora tenha tido várias lesões. Tinha sempre de ganhar, de ser o número um. Tinha muito mais pressão do que qualquer outra pessoa. Por exemplo, com o Indurain aconteceu a mesma coisa. Tornou-se demasiado cansativo e senti que tinha de parar.
Deixou de ter motivação?
Estava farto, não tinha a mesma vontade de correr.
Olhando para trás, ficou alguma prova por ganhar?
Não, de maneira nenhuma. Não tenho qualquer arrependimento. Não trocaria uma Milan-San Remo por um Paris-Tour [única clássica que não ganhou].
No momento em que anunciou o seu abandono, descreveu o dia como o mais triste da sua vida. Continua a sentir o mesmo?
Já não. Algum dia tinha de parar. Não podia continuar só pelo dinheiro, era demasiado duro. Não era como hoje em dia. Fazíamos 95 corridas por ano.
Preferia ter-se despedido como Lance Armstrong?
Talvez. Mas, ao contrário dele, nunca tive o impulso de voltar.
Conseguiu desligar-se do ciclismo?
Nunca. Criei uma fábrica de bicicletas, continuo a pegar na bicicleta quase todos os dias, só como hobby. Quem gosta de ciclismo, gosta sempre