Maldita Coca-Cola
A Coca-Cola faz hoje 125 anos, mas só chegou oficialmente a Portugal em 1977, quando já somava 91. A marca tinha tentado entrar no país na década de 1920, com um slogan icónico de Fernando Pessoa, mas acabou por ser banida dos cafés e mercados. No pós-revolução, foi o factor fruto proibido que ajudou os publicitários a lançar a Coca-Cola em Portugal. Era a "Coca-Cola... a tal!"
Terá sido uma espécie de falsa partida. L. P. Moitinho de Almeida lembrava-se de beber Coca-Cola, enquanto criança nos anos 1920, numa das mais conhecidas pastelarias de Lisboa. Depois, uma ausência de 50 anos, quebrada em 1977 com a entrada da "água suja do capitalismo", do mais famoso refrigerante do mundo, da insuplantável Coca-Cola no mercado português. Tinha 91 anos e o seu fulgor à chegada cavalgava a onda do fruto proibido e uma estória marcada pela mítica frase de Fernando Pessoa.
A entrada da Coca-Cola, que faz hoje 125 anos, no mercado português,"foi uma das conquistas do 25 de Abril, do ponto de vista não político", estima a publicitária reformada Maria Eduarda Colares, que trabalhou na campanha de lançamento da concorrente Pepsi no mercado português. "Essas conquistas, na prática, passaram por ver OÚltimo Tango em Paris [no cinema], por beber Coca-Cola. Os mitos da repressão caíram", enumera.
Mas 50 anos antes, vasculha António Mega Ferreira na sua biblioteca pessoana ao telefone com a Pública, a história era outra. O presidente da Fundação do Centro Cultural de Belém e escritor procura o artigo de L. P. Moitinho de Almeida, publicado em 1982 no Jornal de Letras, em que se conta a história em torno do slogan "Primeiro estranha-se. Depois, entranha-se", escrito em 1927 (algumas versões apontam para o ano seguinte) para a Coca-Cola, que por aquela altura tentava entrar em Portugal.
Mega Ferreira reproduz esse artigo no seu livro Fernando Pessoa, o Comércio e a Publicidade (Cinevoz/Lusomedia, 1986), actualmente esgotado, e ali se ouve a voz de alguém que contraria a versão oficial da história da presença da marca norte-americana em Portugal.
O ícone Fernando Pessoa escreveu o slogan quando trabalhava para "a primeira agência de publicidade em Portugal, a J. Walter Thompson", cujo representante no país era Manuel Martins da Hora, amigo do escritor, evoca Mega Ferreira. O slogan é uma daquelas frases que já muitos não sabem de onde vem. Nem que terá ajudado à proibição da Coca-Cola em Portugal até 1977, segundo a versão de Moitinho de Almeida.
O pai de Moitinho de Almeida, conhecido pelo mesmo apelido, seria o representante da Coca-Cola em Portugal nos anos 1920 e era também amigo do poeta dos heterónimos. "Pela descrição, já havia no mercado garrafas de Coca-Cola", deduz Mega Ferreira. "A mercadoria começou a vender-se a um ritmo animador", recordava Moitinho de Almeida (filho) no texto de 1982, dando a entender que 50 anos antes da data assinalada como a da entrada em Portugal da marca já se teria experimentado Coca-Cola em plena Lisboa.
"Na sua qualidade de agente da Coca-Cola, meu pai fez várias encomendas de mercadoria, que vinha então dos Estados Unidos da América em garrafões e em garrafas, estas muito parecidas, senão iguais, àquelas em que actualmente se serve a bebida no nosso país. O mercado (pelo menos o de Lisboa) foi abastecido de mercadoria e eu recordo tê-la tomado, mais de uma vez, na companhia de condiscípulos do liceu, na esplanada da Pastelaria Versailles, que então existia na Avenida da República", escreve Moitinho.
Hoje, as garrafas ou latas do refrigerante não vêm dos Estados Unidos como no século passado. Desde 1978 - um ano depois da sua chegada oficial e definitiva - que o engarrafamento da bebida, preparada a partir de um concentrado, é feito em Portugal.
Voltando aos anos 1920, "o slogan de Fernando Pessoa ajudou à morte da representação da Coca-Cola por meu pai", lê-se no texto de Moitinho de Almeida. "O conhecido cientista [Ricardo Jorge, director de Saúde em Lisboa] "mandou apreender o produto existente no mercado e deitá-lo ao mar"", lê Mega Ferreira, de outro livro seu em que recupera a mesma história.
O problema do slogan escolhido, dizia o médico, era expressar "a toxicidade do produto, pois que primeiro se estranhava e depois se entranhava", que é "precisamente o que sucede com os estupefacientes". E "se do produto faz parte a coca, da qual é extraído um estupefaciente, a cocaína, a mercadoria não podia ser vendida ao público, para não intoxicar ninguém", escreveu Moitinho de Almeida, explicando a posição do médico higienista amigo de Oliveira Salazar, já a partir dos relatos do próprio Pessoa. "Mas se o produto não tem coca, então anunciá-lo com esse nome para o vender seria burla, o que igualmente justificava que ele não fosse permitido no mercado."
E quando, depois de décadas no papel de fruto proibido, a Coca-Cola chegou a Portugal, fê-lo em força. A campanha de lançamento em 1977 foi feita pela McCann-Erickson/Hora, ainda sob a égide do nome Manuel Martins da Hora, o amigo de Pessoa que o ligou à agência publicitária J. Walter Thompson.
Em plenos anos 1970 e três anos após a revolução que pôs fim à ditadura, a McCann aproveitou as restrições de décadas para essa campanha de entrada no país. O primeiro slogan: "Coca-Cola... a tal!" - a que não se podia beber, como completa Maria Eduarda Colares. Poucos anos depois, a publicitária teria o desafio de lançar a concorrente Pepsi no mercado português.
"Aquele formato da garrafa da Coca-Cola era um ícone da liberdade, dos países livres. Fictício, mas era", frisa a publicitária. Em Portugal, o que acabou por ajudar a Coca-Cola, acredita Joaquim Pessoa, ex-director criativo em várias agências de publicidade, "foi a proibição".
Maldita cocaína
O que motivara a proibição em Portugal é então um cenário difuso e dado a várias explicações. Não será um mito como aqueles que rodeiam a marca ao longo dos seus 125 anos de vida - como o que indica que só duas pessoas, que nunca se encontram no mesmo lugar, têm a receita. O próprio site da empresa tem uma secção dedicada a desfazer uma série de mitos urbanos sobre a bebida.
A associação à maldita cocaína, a questão do ingrediente folha de coca na sua versão "descocainizada", ensombrou a reputação da marca e é uma das explicações para a proibição portuguesa até 1977. "A opinião oficial classificava a Coca-Cola como uma droga", recorda Maria Eduarda Colares. Mas "ninguém acreditava nisso, porque se ia a Badajoz e bebia-se Coca-Cola. Era uma coisa que não fazia sentido. Sempre que passávamos a fronteira, bebia-se Coca-Cola."
Mesmo às então colónias Angola e Moçambique a Coca-Cola já tinha chegado, via África do Sul.
A marca assinala 4 de Julho de 1977 como o dia em que se venderam na região de Lisboa as primeiras 30 mil grades daquele que, já na altura, era o refrigerante mais famoso do mundo. Tinham passado mais de 91 anos desde o dia em que John Pemberton, o inventor da fórmula - que recentemente se achou ter sido descoberta, apesar de a Coca-Cola o negar - começou a trabalhar nela. Para celebrar os 125 anos da receita, aliás, o Museu da Farmácia, em Lisboa, vai acolher de 25 de Maio a 30 de Junho uma exposição com os artefactos usados por Pemberton para criar o xarope, algumas garrafas originais da Coca-Cola e uma cronologia dos momentos mais marcantes da marca no mundo e em Portugal.
Maria Eduarda Colares, que foi directora criativa de várias agências durante os seus 35 anos de carreira, lembra outras explicações que se foram desenvolvendo para justificar a proibição desta cola no país: "Sempre ouvi dizer que era uma questão meramente comercial, para proteger a produção nacional, porque era uma coisa que quando entrasse [no mercado], entraria com muita força."
Os refrigerantes existentes em Portugal antes da Coca-Cola, lembra, eram a Orangina C, a Spur Cola, da Canada Dry, e o português Sumol. E havia o hábito da groselha e do capilé. "Ninguém percebia por que é que era uma coisa tão proibida. Dizia-se também que era para proteger a produção de vinho." Um dos slogans da propaganda do Estado Novo era, recorde-se, "Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses".
Uma questão política?
Uma outra história -mais romanceada do que a do slogan de Pessoa - conta que um representante da Coca-Cola terá vindo a Portugal negociar pessoalmente com Salazar para obter uma licença para comercializar a marca em Portugal. Quando o presidente do Conselho já estaria inclinado a aceitar, diz-se, o dito representante ter-lhe-á enviado um presente de agradecimento. Salazarterá interpretado o gesto como uma tentativa de suborno e cancelado o acordo.
Anos depois, feita a revolução de Abril, a Coca-Cola aterra em pleno pós-PREC [Processo Revolucionário Em Curso]. Luís Trindade, historiador e autor do livro Foi Você Que Pediu Uma História da Publicidade?(Tinta da China, 2008), acredita que não terá havido uma intervenção do poder revolucionário para impedir a entrada de uma das marcas-símbolo do capitalismo norte-americano no país.
Logo entre 1974 e 1976 foram retomadas as tentativas de introduzir a marca em Portugal, pela mão do príncipe russo Alexander Makinsky, que fora vice-presidente de exportações da Coca-Cola e que agia como seu relações públicas na Europa. Mas "um país em PREC também não ofereceria garantia de estabilidade", comenta o especialista em História Contemporânea, sugerindo que talvez por isso a marca tenha demorado três anos a chegar a Portugal depois da revolução de 1974.
Luís Trindade vai ainda além da política para encontrar motivos para a ausência da bebida em Portugal. "Os motivos podem ter até a ver com hábitos alimentares", sugere, salvaguardando que nunca estudou especificamente o caso da Coca-Cola. "Seguramente, até muito tarde produtos como refrigerantes só poderiam ser consumidos por uma franja muito estreita da população. O mercado português também não seria muito atractivo", indica.
Hábitos alimentares presos a bebidas muito tradicionais, o dirigismo do mercado e a questão "mais interessante que é a puramente ideo-lógica" terão sido, segundo Luís Trindade, as justificações mais prováveis.
"Marca trabalhada à exaustão"
A vantagem da Coca-Cola sempre esteve na imagem e na comunicação, não no produto, explica Joaquim Pessoa, também poeta e artista plástico. Dá o exemplo dos blind tests (testes em que se provam alimentos de olhos vendados para tentar associar identificar as marcas dos produtos, as hoje comuns provas de sabor) em que a Coca-Cola e outras colas, como a Pepsi, rivalizam.
"Às vezes dou este exemplo: um grupo de amigos está numa esplanada, chega um empregado e diz: "Tenho ali umas latas de Coca-Cola, só que para vender mais barato a embalagem diz Continente. Posso trazer?" Ninguém quer", garante.
A aparente vantagem da Coca-Cola sobre as concorrentes deve-se ao facto de ser "uma marca trabalhada até à exaustão, desde o princípio, inclusivamente associada à imagem que temos do Pai Natal", refere Maria Eduarda Colares.
Segundo dados disponibilizados pela marca, 94 por cento da população mundial conhece a Coca-Cola, palavra que é a mais pronunciada no mundo depois de "OK". Maria Eduarda Colares admite: "Nunca outro refrigerante conseguiu suplantar a Coca-Cola."com J.A.C.
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