Sedimentação e depuração: com estas duas palavras se sintetizava, há uma década, um dos espectáculos mais conceptualmente brilhantes de Caetano Veloso, “Noites do Norte”, estreado em Portugal menos de um mês após o choque do 11 de Setembro. As mesmas palavras podem ser aplicadas, com total justiça, a “O Micróbio do Samba”, de Adriana Calcanhotto, que depois de se estrear no CCB chega dia 9 à Casa da Música, no Porto.
E por razões algo simétricas: se Caetano, enegrecendo roupas e cenário, procurava então acentuar a negritude presente na sua obra, num tempo particularmente negro da história, Adriana recorre também ao negro (cenário, roupas) mas para acentuar a luz que emana das raízes e traços do samba, mesmo quando a sua rítmica e balanço naturais são mais sugeridos, numa tensão minimalista vigorosa e densa, do que fiéis a qualquer tradição. É isso, aliás, que torna o espectáculo ainda mais estimulante, desde logo pela forma como Adriana Calcanhotto acentua ou afaga as palavras, como em “Eu vivo a sorrir” (logo no início, tal como no disco) ou “Você disse não lembrar”, já no encerramento oficial. Ou ainda como, em pequenos pormenores, as teatraliza: o estilo “marioneta-requebrável” em “Já reparô”? (estilo que Caetano usou também pontualmente em “Livro” e “Noites do Norte”); o microfone “retro”, agarrado com as duas mãos, ao cantar Lupicínio Rodrigues (uma versão notável de “Esses moços”); a guitarra portuguesa tocada por Davi Moraes como se fosse um violão em “Dor de cotovelo” (que Caetano compôs e Elza Soares transformou em ferida aberta); o secador de cabelo usado como “pistola” a varrer para o chão dezenas de pautas da estante do guitarrista em “Pode se remoer”; as pequenas estrelas coloridas e brilhantes lançadas continuamente sobre a sua cabeça, como confetis, em “Tão chic” (o que levou a Sapucaí ao CCB dispensando pandeiros ou passistas); a bandeja metálica com porcelanas tocada como instrumento em “Deixa, gueixa”; ou o megafone electrónico em “Argumento”, de Paulinho da Viola, que embora pudesse soar a ironia no contexto (“Tá legal, eu aceito o argumento/ mas não me altere o samba tanto assim”), acabou por ser uma bela homenagem à essência que o samba eternizou.
Inteligente, sedutor, brilhante nas soluções musicais e plásticas (a mesa com pequenos sintetizadores e outros objectos que Adriana vai tocando, como o secador ou uma caixa de fósforos, parece uma herança “adulta” de Partimpim), o espectáculo que Adriana Calcanhotto apresenta com um trio de grande nível (Davi Moraes nas cordas, Alberto Continentino no contrabaixo, Domenico Lancellotti na bateria e percussões) tem ainda outro aliciante: Portugal é, por enquanto, o único país a vê-lo ao vivo. Há uma razão acrescida para isso: impedida de tocar violão devido a uma lesão no punho direito, que conta curar entretanto, Adriana só mais tarde porá em marcha a digressão oficial.
Em Lisboa, com a “mão emprestada” de Davi Moraes, Adriana alinhou quinze canções muito aplaudidas (todas as do novo disco, os temas alheios já citados e ainda “Dos prazeres, das canções”, um auto-retrato do samba criado por Péricles Cavalcanti e já gravado por ele há duas décadas) e, no encore, depois de deixar Domenico Lancellotti cantar, neste trio, o apropriado “Te convidei pro samba” (do reportório do seu trio, o +2), despediu-se com duas canções: “Tá na minha hora” (que fecha o disco) e o seu velho êxito “Vambora”, onde ela própria atirou estrelas-confeti à plateia, deixando depois a ribalta onde indiscutivelmente brilhou.