A fama de Jonathan Franzen é o seu serviço público

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Jonathan Franzen em Nova Iorque: "Liberdade" é o seu romance sobre a era Bush, aquela que simbolica-mente teve ali o epicentro, com os atentados do 11 de Setembro GREG MARTIN

Publicado na semana do 11 de Setembro, "As Correcções" vendeu mais de três milhões de exemplares, lançou um número equivalente de "faits-divers", e transformou o seu autor num nome incontornável da ficção contemporânea. Dez anos depois, "Liberdade", agora publicado entre nós, levou a "Time" a colar-lhe o solene rótulo de "Grande Romancista Americano". Numa conversa por email, Jonathan Franzen falou ao Ípsilon sobre famílias, fúrias, e fama. Não ofendeu ninguém.

Além dos seus múltiplos e evidentes dotes literários, Jonathan Franzen tem no reportório um dote de outro tipo, mais difícil de definir. O crítico americano James Wolcott ensaiou a seguinte proposta: "Noel Coward tinha um dom para divertir. Jonathan Franzen tem um dom para irritar". Num dos muitos perfis de que o autor foi alvo em 2001, um agente literário nova-iorquino, citado anonimamente, arriscava outra explicação: "Um talento nato para dizer a coisa errada no momento certo".

Um extenso e verificável cadastro de argoladas e escaramuças confima a reputação, mas deve salientar-se que o dom não parece consciente, nem cultivado. A geração anterior de vultos literários americanos, que fez da manchete ultrajante uma vantagem, soube aprimorar esse talento, ao ponto de conseguir micro-gerir os seus próprios escândalos. Os currículos de Norman Mailer ou Gore Vidal - para dar dois exemplos extremos - estão repletos de actividades extracurriculares: pugilato, pantomina, divórcio, difamação, campanhas eleitorais e delinquências televisionadas.

Franzen é um caso diferente. Com o seu hábito enternecedor de pensar em voz alta sobre campos minados, foi cambaleando de controvérsia em controvérsia, quase sempre inadvertidamente: um Zelig da gaffe, um Forrest Gump da polémica. O ponto alto terá sido em 2001, quando, depois de aceitar um convite de Oprah Winfrey para aparecer no seu "Clube do Livro", expressou numa entrevista "alguma ambivalência" sobre o conceito do programa e sobre o tipo de "literatura" que lá costumava aparecer. Cometera um dos pecados cardinais americanos - o elitismo -, que só recentemente conseguiu expiar (as pazes com Oprah foram seladas em Dezembro passado). Mas expressar ambivalência é uma imagem de marca de Franzen, cujos ensaios - sempre inteligentes, sempre intensamente pessoais - terminam muitas vezes com o autor a expressar ambivalência sobre a sua própria ambivalência.

O problema pode reduzir-se a uma fórmula de rabo na boca: Franzen diagnosticou a frivolidade da cultura contemporânea, demasiado assoberbada por informação para aceitar uma conversa séria (uma conversa séria, evidentemente, sobre literatura); e depois esforçou-se por interagir com essa cultura, a fim de lhe explicar de forma solene a sua própria frivolidade. E, de certa maneira, a cultura não se tem poupado a esforços para refutar os seus argumentos. Num célebre ensaio publicado na "Harper"s" em 1996, Franzen confessou dúvidas sobre a possibilidade de qualquer obra literária influenciar uma audiência popular cada vez mais fragmentada, assinando de caminho uma certidão de óbito ao "romance social". Cinco anos mais tarde, "As Correcções", um descarado "romance social" mascarado de saga familiar, vendeu três milhões de exemplares. No mesmo ensaio, lamentava o facto de a revista "Time", árbitro da tradição cultural americana, já não fazer capas com romancistas "sérios". Em Agosto de 2010, a "Time" fez o favor de o desmentir, tomando como pretexto "Liberdade", o seu aguardado quarto romance, que sai agora em Portugal, editado pela D. Quixote.

Tenta-se resistir à tentação de começar com uma pergunta sobre a capa da "Time", mas é impossível. Calculo que o assunto tenha sido mencionado em todas as entrevistas que deu desde Agosto de 2010, portanto a pergunta é qualquer coisa como: a partir de que ponto é que isso se torna uma distracção do essencial, que é o facto de o seu romance ter dado origem a uma capa da "Time"?

Uma vez que me tenho esforçado de forma muito consciente por preservar a ligação do romance à cultura popular, foi difícil não ver a capa da "Time" como uma coisa positiva. Foi bom para mim pessoalmente, claro, mas também um sinal de que a cultura ainda é capaz de demonstrar este nível de interesse por romances literários. Ser figura pública tem os seus aspectos entediantes, mas só me sinto entediado quando estou a promover activamente o livro. A pergunta sobre a capa da "Time" é colocada, eu respondo, e depois passamos à frente e começamos a falar de livros - como estou certo de que vai acontecer aqui...

E a capa em si? "Grande Romancista Americano" é quase estar a pedir uma reacção negativa.

... a não ser, claro, que se façam duas perguntas sobre a capa da "Time". Respondendo à segunda pergunta: uma reacção negativa seria sempre inevitável. Eu corri o risco de tentar promover um romance literário perante um público mais vasto; uma publicação como a "Time" correu o risco de usar uma frase com conotações fortes na capa; e as pessoas responsáveis pela reacção negativa correm o risco de parecerem nada mais do que mera reacção negativa. Mas é assim que o jogo deve ser jogado: sem timidez.

Em "Liberdade", Richard Katz diz sobre a fama que não iria gostar da ausência da coisa, mas que também não gosta da coisa em si. Isto é um resumo aproximado da sua posição?

A minha posição é muito semelhante, mas eu trabalho num meio que precisa de mais atenção do que o rock and roll, portanto para mim há um elemento adicional de serviço comunitário em qualquer fama que eu consiga alcançar. Não sinto necessidade de a repudiar de forma tão intensa como o Richard, quanto mais não seja porque tenho sentimentos menos ambivalentes sobre o romance do que o Richard tem sobre o rock and roll.

Richard também parece ilustrar algumas ansiedades - interesses comerciais vs. integridade artística, etc. - que não são totalmente estranhas a Jonathan Franzen, a julgar por alguns dos seus ensaios mais antigos. É seguro dizer que está mais descontraído em relação a estas questões?

Estou mais calejado, certamente. E a noção do acto de escrever romances como uma espécie de dádiva a uma comunidade partilhada de leitores e escritores, que desenvolvi em alguns desses ensaios, fez-me ter menos receio da popularidade. Mas continuo a ser uma pessoa à procura do ponto de equilíbrio, a tentar escrever ficção que não exclua um público literato nem um público popular, e em dias maus continuo a sentir que, em vez de não alienar nenhum desses públicos, estou a alienar ambos. A parte mais difícil de nos tornarmos tão conhecidos é que as pessoas começam a projectar em nós emoções que não são nossas. Para um certo tipo de populista, eu sou um snob arrogante. Para um certo tipo de vanguardista, eu sou um vendido. Mas essas são as ansiedades deles, não as minhas.

O circo mediático que rodeou os seus últimos dois romances é o inevitável preço a pagar por qualquer escritor que pretenda preservar essa "ligação do romance à cultura mais vasta"?

Sim. E, como já disse, pessoalmente fiquei muito mais calejado nos últimos dez anos. E o circo mediático americano também não é propriamente novo - existiu com Steinbeck, e também com Roth, Mailer e Hemingway. Até com Fitzgerald. E na verdade é bastante agradável, de uma forma puramente impessoal, confirmar que os romancistas ainda têm a capacidade para atrair esse circo.

Ao ler "Liberdade" e "As Correcções" em sucessão, fiquei com a ideia de que "Liberdade" parece menos "escrito" (se isso faz sentido). Como se em "As Correcções" houvesse uma maior atenção à superfície da prosa, uma atenção que deixou de ser prioritária. Concorda com isto?

Estive sempre agudamente consciente dessa diferença, e intermitentemente preocupado com ela.

Foi uma decisão deliberada, que precedeu a escrita, ou apenas algo que aconteceu?

Não foi uma decisão deliberada. Simplesmente não me apetecia ser tão literário desta vez - foi como se já tivesse tirado isso do sistema em "As Correcções", e não precisasse de voltar a fazê-lo. Por qualquer motivo insondável, frases excessivamente embelezadas soavam a falso no contexto do novo projecto, e apaguei muitas delas poucos dias depois de as ter escrito.

Logo na abertura de "Liberdade", é dito que os Berglund "ainda não aprenderam a viver". Muitas páginas mais tarde, Walter ainda pergunta: "como viver?". É uma pergunta muito romance-russo-do-século-XIX, e que não é muitas vezes colocada de forma explícita em romances contemporâneos.

E no entanto, cada vez mais, é a pergunta que mais vale a pena fazer, não é? Quando nos estamos a afogar num dilúvio de informação e ansiedade?

Quando Patty Berglund lê "Guerra e Paz", um romance que coloca incessantemente essa questão, você escreve que "Patty se tornou uma leitora melhor". É o que se deve pedir da grande ficção, que nos torne melhores leitores?

Bem, no caso específico da Patty, ela torna-se melhor leitora porque, pela primeira vez na sua vida, dá por si envolvida num profundo dilema moral, e à procura de histórias que a ajudem a dar algum sentido à sua situação. Normalmente é a vida que nos torna melhores leitores, a vida e bons professores. Mas é verdade que as obras de certos escritores modernistas - estou a pensar em Faulkner, Proust e Beckett, em especial - são ao mesmo tempo romances e instruções para ler romances.

O filho de Patty, Joey Berglund, tenta ler um tipo de romance diferente - "Expiação", de Ian McEwan - e não chega longe. Provavelmente não estava nas circunstâncias ideais para "longas descrições de quartos e plantas", mas tenho de perguntar: não é fã de McEwan?

O extremamente talentoso e generoso Ian McEwan assegurou-me, numa mensagem que me enviou no Outono passado, que ele próprio não estaria muito interessado em ler "Expiação", caso se encontrasse na pele de Joey naquele momento. Como é que poderia não ser fã de um homem que diz uma coisa destas?

Apesar de inegavelmente contemporâneos - por exemplo, na forma como tentam digerir volumes colossais de informação -, "As Correcções" e "Liberdade" partilham o compromisso de proporcionar ao leitor prazeres muito tradicionais. O facto de ambos serem, em parte, sagas familiares, é capaz de ter algo a ver com isto...

O que me faz regressar às famílias nos meus romances é principalmente o acidente de ter crescido como o filho mais novo numa família de personalidades fortes, que eram ao mesmo tempo muito carinhosas e muito conflituosas entre si. Aprendi desde muito cedo a observar discussões de perspectivas diferentes, a interiorizar esses conflitos, e a procurar histórias que pudessem sintetizá-los e dar-lhes algum sentido. E sinto o mesmo sobre a família da ficção em prosa: adoro os realistas do século XIX, e os modernistas do século XX, e até alguns dos pós-modernos - todos eles eram dedicados à causa da literatura, mas não deixavam de estar em conflito uns com os outros. O que eu tento fazer nos meus próprios romances é honrar essa dedicação e encontrar possíveis soluções para os seus conflitos.

Em "As Correcções", todos os elementos da família têm direito a uma longa secção narrada do seu ponto de vista. Em "Liberdade" a excepção é Jessica. Era uma personagem demasiado estável para merecer mais atenção?

Sim, exactamente. O livro acaba antes de Jessica atingir uma idade em que as suas próprias interessantes contradições pudessem ter emergido. E também havia tanto sobre Patty no livro, Patty em todas as idades, dos 17 aos 53, que precisei de reservar o espaço restante para perspectivas masculinas.

Almoços e jantares de família: "As Correcções" têm uns quantos, e o novo romance tem um particularmente desastroso, quando Walter conhece a família de Patty. É um tipo de cena que o diverte?

Escrever nunca me diverte inteiramente, porque estou sempre muito receoso de que chegue o dia em que o meu reservatório de frases vivas se esgote. Mas sim, sinto-me sempre particularmente seguro quando escrevo cenas em que posso explorar dinâmicas familiares cómicas.

Outro elo entre os dois romances é uma espécie mais tensa de dinâmica geracional. Gary, em "As Correcções", vive num pânico constante de replicar o casamento dos pais. Em "Liberdade", Walter e Patty esforçam-se por não cometerem os erros que os seus pais cometeram; e Joey acaba por se dedicar a ser tão diferente do seu pai quanto possível. Uma das passagens mais cómicas do livro ocorre quando Richard reflecte sobre esta questão: "Em vez de contrariar as ambições rockeiras do pai, ao empenhar-se na entomologia ou interessar-se em derivados financeiros, Zachary macaqueava obedientemente Jimi Hendrix. Houvera algures uma falha de imaginação". É claramente um tema que lhe interessa.

Fico muito satisfeito por ter gostado dessa passagem - é a primeira pessoa a mencioná-la. Na minha opinião, pelo menos na América, o século XX foi o grande século da família. Existem, com certeza, muitas famílias na literatura do século XIX, mas o aspecto mais saliente é a ausência de muitas das dinâmicas de autoconsciência que nos parecem hoje aspectos evidentes da vida familiar. Os adolescentes rebeldes de Turgéniev são personagens reconhecíveis, mas a sua rebeldia não assume a forma específica que me interessa: o desejo de não cometerem os mesmos erros que os pais cometeram. Creio que a combinação entre a psicanálise europeia e o sonho americano de auto-ajuda e auto-suficiência enriqueceu muito a nossa experiência familiar. E no entanto, há razões para temer que essa janela que se abriu no século XX venha a ser fechada pelo século XXI, à medida que o capitalismo consumista vai destruindo as diferenças entre gerações e encorajando as pessoas a transformarem-se em átomos narcisistas de consumo.

Acho que em "Os Buddenbrook" se notam essas dinâmicas de auto-consciência geracional pela primeira vez, ainda que sob forma incipiente. Quando li "Os Buddenbrook", pouco tempo depois de reler "As Correcções", notei muitas semelhanças - os dois patriarcas a folhearem o mesmo livro de Schopenhauer, etc. E ambos os romances parecem localizar o momento em que essa alteração ocorre: o momento em que uma geração tem tempo e dinheiro para reflectir distanciadamente sobre o seu papel dinástico, e que é consequência de uma transição económica - de uma geração que construía coisas (a de Alfred), para uma que tem o luxo de apenas especular (Gary) ou analisar o processo especulativo (Chip). "Os Buddenbrook" foram um modelo consciente para esse livro?

Não li "Os Buddenbrook" até depois da publicação de "As Correcções", quando alguém me alertou para certas semelhanças; mas é claro que adorei o livro. Tive durante muitos anos uma relação de amor-ódio com Thomas Mann, cuja origem era o meu intenso envolvimento com "A Montanha Mágica" enquanto estudante de alemão. (Se há alguma homenagem consciente a Mann em "As Correcções", é no uso de "leitmotivs"). Mas pergunto-me se a análise que Mann faz da auto-consciência familiar será suficiente. Apesar de tudo, algumas famílias ficcionais do século XIX já tinham pais que participaram nessa transição de uma economia produtiva para uma economia de investimento. Isso não é uma boa descrição da nobreza abastada em Jane Austen? Ou mesmo em Trollope ou George Eliot? Vou insistir na minha interpretação, e na importância da psicanálise para essa transição.

"Liberdade" questiona algumas das noções mais elementares sobre o conceito que dá título ao livro, nomeadamente a de que as pessoas são livres para fazer o que lhes apetece, desde que não interfiram com a liberdade de terceiros. As confusões em que as personagens do romance se envolvem sugerem que qualquer acção "livre" pode ter efeitos colaterais.

Tenho sempre alguma hesitação em interpretar o meu próprio trabalho - especialmente o conceito de "liberdade", uma vez que a palavra está ali estampada na capa do livro. Há certamente bastantes provas que sustentam a sua interpretação, mas devo dizer que estava mais a pensar num tipo de liberdade (muito pouco americana!) que, paradoxalmente, resulta de uma aceitação de limites e restrições.

Sobre o título: pode ler-se ironicamente? Uma espécie de contraponto pseudo-solene ao estatuto inflacionado, e por vezes distorcido, que a palavra assumiu no discurso político americano? Pergunto isto porque "Fúria" ou "Ira" seriam títulos talvez mais apropriados.

Sem dúvida. Aliás, o meu maior medo era de que o título não fosse lido ironicamente. Mas também receei, já agora, que fosse lido de forma excessivamente irónica.

A fúria desempenha um papel determinante no enredo, e na maioria das personagens é uma fúria com raízes políticas. Acompanhou esse crescendo de fúria e ruído na cena política americana como espectador, ou como participante?

Passei grande parte dos oito anos do mandato Bush-Cheney praticamente incapacitado pela fúria. Um dos meus projectos principais para o novo livro era descobrir uma maneira de escapar à exiguidade da minha fúria pessoal - encontrar um contexto narrativo mais abrangente para a escoar. E durante muito tempo não consegui fazê-lo, e acumulei fracassos. Suspeito que é apenas uma coincidência parcial que o dia em que me sentei e comecei a escrever páginas atrás de páginas foi, literalmente, o dia a seguir à eleição de Obama.

Se a cronologia não me falha, isso foi pouco tempo depois da morte de um amigo muito próximo [David Foster Wallace, que se suicidiu em Setembro de 2008]. Ele chegou a ler alguma parte do romance? E já leu o romance póstumo que ele deixou?

Ainda não o li, e não sei se conseguirei fazê-lo nos próximos tempos. O David também não chegou a ler nenhuma secção de "Liberdade", pois só comecei a acumular páginas viáveis depois de ele morrer. Escrevi recentemente um ensaio grande para a "New Yorker", que fala em parte sobre a minha amizade com ele. O seu suicídio forneceu-me um tipo de raiva diferente - mais pessoal, mais perecível - que só consegui ultrapassar nos últimos meses.

Uma parte substancial do romance é narrada (escrita, aliás) por Patty Berglund. Há um autêntico index do Vaticano de romances escritos por autores masculinos que foram criticados por não escreverem plausivelmente sobre mulheres. Esse receio estava presente quando decidiu escrever com a voz de Patty?

Não sei se fui bem sucedido a escrever plausivelmente com a voz dela, e talvez não seja a pessoa mais indicada para o dizer. A preocupação teria sido maior se a voz de Patty fosse a única no livro. Não consigo escrever sobre personagens de que não gosto, e confesso que geralmente tenho mais facilidade em gostar das personagens femininas do que das masculinas. O que acaba por emprestar maior urgência aos meus esforços para me apaixonar pelas minhas personagens masculinas.

Foi preciso um esforço adicional para se apaixonar por Joey Berglund? Mais do que com os outros? Tive a sensação invulgar de que o autor o achava insuportável, embora as coisas melhorem no fim do romance.

Você é um leitor perspicaz. Joey foi um problema muito dífícil de resolver. Quando finalmente encontrei uma maneira de simpatizar com ele, os últimos dois terços do livro escreveram-se praticamente sozinhos.

O principal problema que a crítica americana teve com "Liberdade" foi precisamente a voz de Patty, que muitos acharam ser demasiado próxima da narração na terceira pessoa das restantes secções, e demasiado parecida com a voz de Jonathan Franzen. Vê isso como uma falha técnica no romance?

A verdade é que há muito de mim próprio na Patty, e não havia nada que eu pudesse fazer para disfarçar isso, a não ser demorar mais um ano ou dois a tentar desenvolver uma voz menos parecida com a minha. Pode dizer-se que estava a fazer um favor aos críticos inclinados à partida a não gostarem do livro, ao fornecer-lhes algo tangível para se queixarem. Mas o que é uma falha fatal para o leitor mal intencionado é uma peculiaridade intrigante para o leitor generoso. O que para uns é convenção, para outros é intrusão. Alguns escritores e leitores acham até os indicadores de diálogo intrusivos.

Acompanha as críticas ao seu trabalho? Creio que os escritores costumam seguir um padrão: começam por ler todas, depois vão filtrando, e acabam a não ler nenhuma.

Estou entre o segundo e o terceiro estágio da progressão que você descreve. Não leio uma crítica a não ser que várias pessoas em quem confio me assegurem que é imperdível. A minha grande surpresa em relação à recepção crítica de "Liberdade" é que, tanto quanto sei, não houve crítica de James Wood, uma pessoa que frequentemente decide não ter razão nenhuma sobre livros, mas que também é capaz de tremenda perspicácia quando não está ocupado a não ter razão.

Há algum crítico a trabalhar hoje que goste particularmente de ler?

Alguns dos meus críticos favoritos são romancistas - Zadie Smith, Jonathan Dee. Os críticos profissionais são cada vez mais raros porque há cada vez menos espaço para eles escreverem; e sim, considero isto uma perda enorme, tanto para os leitores como para os escritores.

Já publicou duas compilações de não-ficção, mas ambas incluem pouca crítica. É um formato que não o atrai?

Por acaso acabei de reunir material para uma terceira colecção e fiquei bastante surpreendido ao descobrir que tinha nove ensaios críticos para incluir na última secção. (Também cheguei a fazer crítica de livros para o "Los Angeles Times", embora muito ocasionalmente). Muitos dos artigos apareceram primeiro como introduções a livros que eu sentia não estarem a receber atenção suficiente - também aqui, o amor é o melhor estímulo.

Foi esse o estímulo que deu origem às introduções aos livros de Alice Munro e Christina Stead? (Já agora, "The Man Who Loved Children" não está traduzido em Portugal: pode aproveitar a oportunidade para o promover).

Fico particularmente irritado quando suspeito que um autor está a ser negligenciado pelo facto de ser mulher. É um escândalo que Alice Munro ainda não tenha recebido o Prémio Nobel, e é um escândalo ainda maior que tão poucas pessoas tenham ouvido falar do livro de Christina Stead, "The Man Who Loved Children": para mim, e sem qualquer dúvida, um dos grandes romances do século XX.

Os seus dois últimos romances parecem encaixar, tematica e cronologicamente, em mandatos presidenciais. "As Correcções" com a era Clinton, "Liberdade" com a era Bush. O que é que podemos esperar do próximo?

Até acho que os dois primeiros romances seguiram esse padrão. Aliás, o romance que demorei menos tempo a escrever foi o segundo ["Strong Motion", sem edição portuguesa], quem sabe se por ter coincidido com a presidência de Bush I, que durou apenas quatro anos. Portanto, uma das muitas razões que tenho para desejar a reeleição de Obama é a margem de manobra que me trará: quatro anos a mais para escrever o próximo livro.

Ver crítica de livros pág. 44 e segs.

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