A cidade onde Pina Bausch nunca existiu

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O Schwebebahn, o monocarril que liga Wuppertal, é uma presença mais omnipresente na cidade do que Pina Bausch, que dali partiu várias vezes para fazer peças no estrangeiro (como esta "Água", que teve estreia no Brasil)

Pina Bausch (1940-2009) regressa a Portugal em duas peças no Teatro Nacional S. João ("Bamboo Blues", hoje e amanhã, e "Sweet Mambo", dias 11 a 13), e em dois filmes ("Sonhos Dançados", sobre o seu trabalho com adolescentes, e "Pina", a homenagem que Wim Wenders lhe fez, a três dimensões). Mas na cidade onde sempre viveu há menos Pina do que nas suas peças. O estúdio era o único lugar onde ela realmente existia. Tiago Bartolomeu Costa, em Wuppertal

Não há em Wuppertal mulheres em longos vestidos estampados, nem homens a cantar por gestos canções de amor. Não há cabelos esvoaçantes nem sapatos aprumados, nem ruas feitas de cravos, nem caudas de baleia numa esquina. Não há rochedos nos passeios nem hipopótamos nos riachos. Não há escarpas verdejantes, nem fios de microfone sem fim, nem homens e mulheres quase suspensos, quase a voar. Não há pessoas que se dirijam a nós para nos levarem a dançar, ou para nos erguerem em braços pelo palco. Não se ouve Alfredo Marceneiro, nem K.D. Lang, nem Purcell, nem Caetano Veloso. Ouve-se o vento. E, muitas vezes, o Schwebebahn, o monocarril que liga a cidade.

Olhamos à volta e o que vemos é uma cidade cinzenta, encravada num vale, perdida no mapa e esquecida pela História. Há fábricas que já não produzem nada por causa das deslocalizações para a China e outras que do ferro passaram para os acabamentos das roupas. Há igrejas luteranas que têm as suas portas fechadas. E há adolescentes que caem bêbados na rua ainda a tarde vai a meio. Há longas avenidas de lojas fechadas e gente que anda nas ruas como em qualquer cidade, sem destino. Só porque é o único sítio onde se pode andar. Há um teatro encerrado há um ano porque morreu a sua coreógrafa e deixou de haver razão para o manter. E uma companhia que continua a percorrer o mundo, com um calendário apertado, contra o tempo, em risco de desaparecer. Nos próximos dias, em vez de desaparecer, aparece no Porto, para apresentar duas peças de Pina Bausch no festival Odisseia - Teatro do Mundo: "Bamboo Blues", hoje e amanhã, e "Sweet Mambo", dias 11 a 13, ambas no Teatro Nacional S. João.

Não há qualquer poesia em Wuppertal. E, no entanto, foi sempre isso que interessou a Pina Bausch: "uma cidade do dia-a-dia" e não "uma cidade de domingo". "O meu mundo está aqui. Não tenho tempo. Quando estou a fazer uma peça nunca tenho tempo", afirmou numa entrevista à jornalista e realizadora Anne Linsel, em 2006. Não admira que Federico Fellini lhe tenha entregado o papel da princesa cega no filme "O Navio". Pina não via o que nós sempre quisemos ver nas suas peças. Por isso, quando solicitada a explicar, caía num silêncio algo incomodado, como se lhe perguntassem porque vivia. "Nunca soube explicar o que fazia. Não tenho uma música, uma ideia, um cenário ou movimento para começar. As ideias vão surgindo, e sendo montadas como um puzzle. E antes da estreia posso mudar tudo. Quem sou eu para dizer o que as pessoas devem ver? Não gostaria que vissem apenas o que eu quero que vejam. É muito mais livre se virem o que quiserem", disse na mesma entrevista. A frase que faz o subtítulo do filme de Wenders ("Pina", a homenagem em 3D que chega às salas portuguesas na próxima quinta-feira, dia 12), e que ouvimos Pina a dizer no fim, foi-lhe dita por uma criança: "Dancem, dancem, caso contrario estão perdidos". Era isso que a movia: "É assustador. Há uma data-limite e o tempo de trabalho é muito curto. Mas se eu pensasse na estreia sentir-me-ia bloqueada. Não conseguiria trabalhar".

"Tinha uma relação quase mística com o trabalho", diz-nos Anne Linsel. "Era obcecada e para ela nada mais importava. E não tinha respostas, só perguntas. Mas nos dias de estreia era como se ninguém existisse. Ela passava por nós, acenava e desaparecia". Foi Anne que realizou "Sonhos Dançados", documentário sobre o processo de "Kontakthof para adolescentes" pensado por Pina "para que o seu trabalho continuasse a ser visto". Tal como o filme-sensação de Wenders, chega a Portugal na quinta-feira.

Pina sempre quis fazer um filme sobre as suas peças, mas um filme que ela controlasse. "Não podia ter nada que escapasse ao seu controlo", diz-nos Anne. Cortou relações com quem saiu da sua companhia, não deixou qualquer tipo de indicação sobre o que poderia ser feito depois da sua morte, refazia as peças até ao último momento. O filme que Wenders assinou tinha sido oferecido a Pedro Almodóvar, mas o realizador espanhol nunca encontrou espaço na agenda para o fazer. Pina concordara com a inclusão de sequências de "Café Müller" (1978) e "Masurca Fogo" (1998) no filme "Fala com Ela". E ela própria tinha realizado um filme, "O Lamento da Imperatriz" (1989), expressamente para cumprir o contrato de duas estreias por ano. Ao levar a companhia para as ruas, numa composição em tudo semelhante às peças que a tornaram uma referência, fez exactamente o contrário de Wenders, que procurou uma estética construtiva nas ruas impossíveis de poetizar de Wuppertal. Não por acaso, o filme de Anne Linsel nunca sai do estúdio. Apesar das suas frequentes visitas às cidades do mundo, era o único lugar onde Pina existia.

Caril caseiro

"Bamboo Blues" (2007) e "Sweet Mambo" (2008), os primeiros espectáculos de Pina Bausch que chegam a Portugal desde que ela morreu, são representativos da última vaga de peças da coreógrafa, e prolongam a série que dedicou às cidades. Feita depois de uma residência em Calcutá e Kerala, na Índia, "Bamboo Blues" repisa o esquema tradicional (panejamentos, vestidos compridos, cores garridas), recusando a figuração "geográfica" que Pina sempre evitou: não é a peça em que a coreógrafa nos mostra a Índia, tal como "Nefés" (2003) não era a peça em que nos mostrava Lisboa e Istambul, "Ten Chi" (2004) não era a peça em que nos mostrava o Japão, "Tanzabend II" (1991) não era a peça em que nos mostrava Madrid, "Viktor" (1986) não era a peça em que nos mostrava Roma e "Palermo Palermo" (1989) não era a peça em que nos mostrava a Sicília. Em todos os casos, interessaram-lhe menos as cidades do que o que fez com elas. A Índia de "Bamboo Blues" é apenas caril caseiro: imagens breves, apontamentos, cumprindo uma ideia de um "cosmopolitismo difuso", como lhe chamou Jean-Marc Adolphe, da "Mouvement", num texto de apresentação da peça antes da sua estreia em Paris.

Por isso, quando vemos "Bamboo Blues" a par de "Sweet Mambo", a peça que fez a seguir, "em casa", é forçoso não apenas estabelecer laços directos - e muitos deles retóricos - entre os dois espectáculos, como também afirmar que a fragilidade de ambos vem da sua indistinção (a mesma que era frequentemente apontada às suas últimas peças): a dengosidade nos corpos que contrasta, depois, com um movimento crescente em uníssono; a concentração nos mesmos corpos de diferentes discursos; uma lógica de estrutura musical, resvalando, por vezes para um "easy-listening" duvidoso; uma composição sequencial de solos, em que homens e mulheres insistem em demonstrações de poder, por vezes só provocadoras, a espaços certeiras, e remetendo para séculos de tradição, oriental ou ocidental.

Dir-se-á que estas duas peças (como as da última década, cujo ponto alto, ou baixo, é "Água", a peça brasileira de 2001) fazem parte de um período mais solar da coreógrafa, um período em que é mais fácil (demasiado fácil?) entrar e em que ficaram de lado questões e reflexões mais densas sobre, precisamente, o jogo social, político e cultural que distingue homens e mulheres em espaços urbanos (e que era a linha de força em peças como "Kontakthof", de 1978, "Bandoneon", de 1981, ou mesmo "Wiesenland", de 2000, feita em Budapeste).

Talvez se aprenda mais sobre Pina Bausch nas ruas de Wuppertal do que nestas peças - ou do que nos quilométricos textos cheios de interpretações acerca do trabalho dela.

Em guerra com Wuppertal

Arash, 37 anos, o taxista nos encontrou na estação de comboios, foi duas vezes ver peças suas ("Nelken", 1982, e "Barba-Azul", de 1977)": "Nunca mais precisei de ver dança. Ainda hoje as sei de cor". Também colaborou na montagem das luzes no teatro. "Ninguém diria que era uma estrela. Só nos lembrávamos disso quando nas noites de estreia a cidade era invadida por estrangeiros".

Conta-nos Michael Zeller, escritor e companheiro de Anne Linsel, que "as noites de estreia eram eventos onde todos se reuniam" e em que "a cidade recebia uma série de convidados estrangeiros que aplaudiam de pé". Mas nem sempre foi assim. Quando chegou a Wuppertal para dirigir a companhia de ballet, em 1973, por insistência do produtor Arno Wüstenhöfer, Pina foi vaiada. "Na estreia de "Macbeth", a Jo-Ann Endicott [uma das bailarinas principais da companhia] teve de interromper o espectáculo e pedir às pessoas para saírem ou deixarem-nos continuar", recorda Anne Linsel. "Eram guerras a sério. Foram anos muito duros. As pessoas acharam que eu estava a provocá-las, mas eu estava longe de o querer fazer. De alguma forma eu sentia que era esse o caminho que se devia seguir", diria a coreógrafa em entrevista.

Pina foi sempre figura de culto fora da Alemanha, mas ainda há três anos, em Munique, uma apresentação de "Nelken" foi vaiada. E circulou sempre muito pouco no seu país. "A presença da Pina nos outros países deve-se ao intenso apoio do Goethe Institut. Na Alemanha não é muito reconhecida", frisa Anne. Na cidade onde sempre viveu também não.

Perguntamos à volta do teatro e são mais as pessoas que nunca foram ver as suas peças, mas que sabem que ali vivia uma coreógrafa, do que aquelas que entravam. "As salas nem sempre estão cheias", diz Anne. Mas a presença da companhia em Wuppertal continua a obrigar à apresentação regular das peças em repertório. A morte da coreógrafa determinou o fecho do teatro onde se apresentava. Fala-se da possibilidade de instalar a fundação com o seu nome nesse mesmo teatro, mas tudo vai depender de apoios estrangeiros. A câmara municipal já optou pela manutenção da ópera, em detrimento de um apoio continuado à companhia. O sucesso do filme de Wim Wenders é entendido por todos como fundamental para a atracção de novos financiamentos, assim como a operação que vai levar 12 peças da companhia aos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012.

Elena, 47 anos, bibliotecária, viu apenas uma peça de Pina, não se lembra de qual. À saída do filme de Wenders, em exibição num multiplex ao lado do teatro onde a companhia se apresentava, diz que não sabe "falar das peças dela", mas que é como se Pina falasse das suas relações.

Pina disse sempre que não falava de nada. "Nunca teve relações próximas", diz Anne Linsel, que a conheceu bem. Entrevistou-a várias vezes, ensinou-lhe ginástica pós-parto, acompanhou-a em "tournées" e escreveu textos para livros e programas. Quando lhe perguntamos se eram amigas, atira os olhos para o ar e demora a responder: "A sua morte representa a morte de parte da minha geração".

É também isso que sente Iris, 54 anos, enfermeira. "A primeira vez que vi "Kontakthof", ah, era tudo o que as mulheres da minha geração queriam fazer. Era uma libertação". "Kontakthof", que significa lugar de afectos, é uma das peças filmadas por Wenders e passa-se num salão de baile onde vários homens e mulheres se encontram para dançar, seduzir e se entregar. Pina optou, em 2000, por fazer uma versão para seniores e, em 2008, outra para adolescentes. "Nunca quis ver a versão para seniores", diz Anne. "Eu também sou velha, é o meu corpo, não quero confrontar-me".

Em cinzas

Percebemos que Pina não existia para além do seu trabalho quando fazemos o caminho de sua casa até ao estúdio. Morava no segundo andar de um prédio de apartamentos na esquina da Fingscheidstrasse, uma rua íngreme. Hoje é lá que fica a fundação entretanto criada. É lá que se decide o futuro da companha. Uma casa não muito grande, cheia de papéis, cadernos e cinzeiros. Chega-se até lá por um caminho cinzento, plenamente urbano, sem qualquer identidade.

O seu escritório, bem como o de toda a produção, ficava num segundo andar de um prédio banal, umas portas abaixo do estúdio, um antigo cinema nos anos 50, que hoje tem um MacDonald"s no rés-do-chão e fica paredes-meias com um "peep-show", o Bea Erlenesteinskino. Chegava todos os dias de manhã cedo, sempre de táxi. Não havia livros nem quadros nem discos. Só uma mesa de madeira comprida, garrafas de água, um cinzeiro sempre cheio, um rádio que ela punha a tocar e uma televisão pela qual seguia os noticiários. Pina não lia livros, não via filmes, não ia a exposições, não saía. Deixava o estúdio, de táxi, pelas 11 da noite e chegava a casa sem se preocupar se tinha ou não comido. "O Ronald tinha sempre algo pronto. Eu esquecia-me de comer. Às vezes só uma sandes".

Era uma entrega, concordam todos. "Não havia espaço para mais nada", diz Anne. Marion Cito, que desde sempre fez os figurinos, diz que não sabe onde ia Pina "buscar tanta energia". De cada vez que Pina chegava a casa depois de uma estreia, "era como se fosse um monte de cinzas, vinha desfeita". No documentário, Pina diz que nunca soube o que a movia e que muitas vezes perguntou porque não parava. Anne acha que ela não saberia parar.

Quando a viu na noite de estreia da última peça, "...Como el musguito en la piedra, ay si, si, si...", feita em Santiago do Chile, Anne chegou a casa e disse a Michael: "Nunca a vi tão mal. Acredito que vá morrer brevemente". Michael disse-lhe que "era sempre assim, para não fazer caso". Mas uma semana e meia depois Pina morreu por causa de um cancro tardiamente diagnosticado nos pulmões. Um ano antes, em Londres, tinha desmaiado durante um ensaio. Os médicos não encontraram nada. E Pina voltou ao trabalho. Tal como voltou ao trabalho depois do diagnóstico. Quis saber como estavam a correr as alterações que tinha dado no fim da estreia.

No dia do seu funeral, no início de Junho de 2009, vários jornalistas e fotógrafos foram destacados para diferentes cemitérios da região. Ninguém sabia onde ia decorrer a cerimónia. Uns tempos depois o cemitério encheu-se de placas que indicavam o caminho até à sua campa. Hoje já não existem. A campa fica em frente a um lago, e a família comprou o terreno à volta para que ninguém o ocupasse. As ervas daninhas crescem à vontade junto das plantas que ali foram colocadas. Há presentes de crianças, flores de plástico e uma pena presa junto ao seu nome. E um homem sentado, que se diz amigo dela, com uma série de sacos.

Podia ser um amigo, efectivamente, mas parece uma das suas figuras silenciosas e sonâmbulas que se colocam no centro do palco fazendo coisas que só o seu mundo privado explica. Ficou ali sentado o tempo todo e no fim despediu-se cordialmente.

Sentamo-nos também e esperamos pela resposta. Porque é que ela se veio esconder aqui? Nem os filmes nem as peças que vamos poder ver nos próximos dias o explicam.

O Ípsilon viajou a convite da Midas Filmes e com o apoio da hoteis.com

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