Beleza americana

Jonathan Franzen é um observador de pássaros, um ornitologista entusiasta que se dedica a estudar uma e outra espécie, tirando notas, comparando-as, classificando-as, descrevendo-as e guardando-as no seu vasto arquivador onde não há hábitos, manias e idiossincrasias que escapem. Este mesmo interesse é transposto para a construção dos romances, lugar onde a mais fina "coscuvilhice" literária parece não conhecer limites. Com o zelo de um activista, resgata certos "tipos" humanos em (possíveis) vias de extinção e acompanha-os ao longo do tempo e do espaço, através das inúmeras mutações sofridas nas três últimas décadas. Em "Liberdade" marcou os elementos da família Berglund de St Paul, Ramsey Hill - tal como aconteceu com os Lambert no anterior "Correcções" - com um "chip" identificador e entrincheirou-se no seu "laboratório" de escritor a seguir-lhes, paciente e amorosamente, a evolução no mundo. O resultado é um tratado dedicado à espécie humana (principalmente norte-americana) com tal abrangência que a comparação com "Guerra e Paz" tem-se revelado inevitável.Houve quem afirmasse que Franzen escreve como se não tivesse existido o Modernismo e o Pós-modernismo, o que não é inteiramente correcto, uma vez que os seus livros - principalmente "Liberdade" - estão cheios de referências claras a Tolstói (Walter é uma espécie de Pierre Bezúkhov) mas também a Fitzgerald, a Wharton, a Balzac, a Flaubert e, sem dúvida, a autores mais recentes como Bellow e como o seu defunto amigo David Foster Wallace cuja afirmação "a ironia e o ridículo são parte do entretenimento e muito eficazes" ele segue com firmeza, tendo o cuidado de esbater vestígios de experimentalismo, de ousadias minimalistas ou de caos narrativo. É com alívio que seguimos a sua pontuação cuidada, as frases que se desenrolam a um ritmo certo e agradável, os diálogos credíveis na sua cadência natural.

Repare-se que o início de "Liberdade" é exactamente como o de um romance de Jane Austen, onde tudo fica imediatamente definido e dito, contido numa frase retorcida cheia de negativas sibilinas. Walter Berglund surge como um advogado bem sucedido, um liberal consciencioso (vai de bicicleta para o trabalho), um democrata - está-se ainda na era Clinton, mas por pouco tempo - e o leitor fica imediatamente ciente de que este modelo de virtudes mostrará, mais tarde, o seu lado decepcionantemente negro. Há ainda a mulher, Patty, um anúncio ambulante de alegria e bem-estar, e os filhos, Jessica e Joey, a viverem numa casa restaurada numa comunidade suburbana que lembra o ambiente criado por Sam Mendes no filme "Beleza Americana" (1999) onde, tal como aqui, as fachadas primorosas e os jardins ocultam as neuroses, o tédio e a insatisfação de famílias que consideram a abundância como dado adquirido e que se habituaram à liberdade social, sexual, económica, política, amorosa e religiosa.

Walter é um homem "bom", o que em nada contribui para o tornar sexy aos olhos de Patty que ele ama com persistência, convencido, na sua inocência, que, ao dar-lhe tudo a que ela aspira - uma boa casa, filhos, paz e desafogo financeiro para ela poder "brincar" às donas-de-casa - conquistar-lhe-á o coração. No entanto, e como seria de esperar, Patty prefere Richard Katz, o maior amigo de Walter, roqueiro de profissão, rapaz rebelde que persegue uma vida de irresponsabilidade e de "liberdade". (A amizade improvável entre estes dois homens - com uma forte sugestão homoerótica - terá uma réplica posterior, a relação entre Joey e Jonathan, no ambiente carregado de testosterona de um quarto na Universidade). Patty, personagem em torno da qual a acção do livro se desenrola e que contribui para a narrativa com páginas do seu diário pessoal, escrito na terceira pessoa a conselho do seu terapeuta, trai Walter com Richard - quando se mete com ele na cama está "meio adormecida", isto é, não pode ser responsabilizada pelo acto - mas permanece num limbo de insatisfação e ansiedade que se reflecte numa frase reveladora: "parecia que tudo o que (ela) recebia como consequência das suas escolhas e de toda a sua liberdade, era sempre mais infelicidade" - uma constatação banal própria da vida de pessoas vulgares que se vêm confrontadas com um universo de infinitas possibilidades e se sentem empurradas para uma vida paralela onde nunca chegam a atingir qualquer apogeu, qualquer glória. Mas Franzen é um autor dedicado às personagens, mesmo quando elas são repelentes, como Eliza, viciada em heroína e mentirosa patológica, ou o pai de Patty, Ray, alcoólico com tendência para emitir graças inconvenientes, ou Blake, o empreiteiro que acredita na supremacia branca. Na verdade há personagens para todos os gostos: mulheres da classe média insatisfeitas, adolescentes sensuais e obedientes, homens e rapazes a transpirarem misoginia por todos os poros, dedicadas activistas políticas que assim escapam às responsabilidades familiares, activistas ambientais, judeus fundamentalistas - e uma jovem judia deslumbrante e perigosa -, escroques governamentais, vizinhos sinistros, advogados corruptos, etc. E há muito sexo, pelo telefone e ao vivo, sexo implícito e explícito e, principalmente, sexo solitário em lugares pouco convenientes.

"Liberdade" é um grande romance dramático atravessado por uma genial veia cómica onde o autor não deixa escapar a obsessão americana pelo desporto e por tudo o que gira em torno dos triunfos ou dos revezes das competições e onde a "era Bush" - um dos capítulos é marcado pela data 2004, o ano da reeleição - ocupa um lugar predominante, assombrada pelo 11 de Setembro de 2001. Num tom paciente e irónico, Franzen introduz as suas preocupações relacionadas com a agenda ecológica, o problema do excesso populacional e os escândalos ligados aos subcontratos privados levados a cabo durante a Guerra do Iraque, num exercício magistral de observação e de minuciosa descrição que é como um espelho que nos devolve as imagens patéticas, trágicas e terrivelmente vulgares de um tempo sem (grandes) qualidades. Contrariando a moda do optimismo como base para o sucesso e para a realização pessoal, Franzen realça o tema do fracasso como o grande motor que leva à acção e não se exime de trazer a guerra, o terrorismo, o "crash" económico, a violação, a vingança, as drogas, o adultério, o ciúme, as infâncias infelizes e o remorso para o seu território onde, apesar de tudo, existe uma certa aura de redenção, embora com um sabor amargo: Walter que tem dificuldade em fazer escolhas percebe tarde demais o alcance do seu amor (retribuído) por Lalitha, Joey abandona os seus mentores republicanos do género "Tea Party" e volta para Connie, a sua dócil namorada de infância, as "memórias" de Patty acabam por ter uma função importante e, no final, o mundo parece reencontrar algum equilíbrio, embora o autocolante de "Obama" no carro de Walter inspire desconfiança na comunidade hostil - um empreendimento novo, mas em crise, onde já há famílias incapazes de pagar as hipotecas - junto à sua antiga casa de campo. Com o regresso de Patty, Walter recupera o seu lugar entre os vizinhos - numa paródia distorcida do início do livro - mas não por muito tempo. Não tarda que os Berglund desapareçam novamente e, em torno do santuário tão caro a Walter, preocupado em salvar pássaros que acabam nas garras dos gatos de estimação das crianças das redondezas, ergue-se um alto muro de protecção. A liberdade é uma coisa boa mas custa muito mantê-la.

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