Juliano tinha o guião da sua morte escrito na cabeça

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Homenagem a Juliano Mer-Khamis no dia da sua morte, à porta do Teatro Liberdade SAIF DAHLAH/AFP

Faz amanhã um mês. Activista, actor, realizador, símbolo da luta da causa palestiniana, Juliano Mer-Khamis morreu assassinado à porta do seu Teatro Liberdade, em Jenin, na Cisjordânia ocupada. Filho de mãe judia israelita e de pai cristão palestiniano, o sangue que lhe corria nas veias era demasiado explosivo num território disputado por dois povos. Defendia uma intifada cultural: sem armas, sem balas, sem mártires. Uma das suas vontades será cumprida em Guimarães, num projecto chamado Jerusalém.

Juliano Mer-Khamis pressentia que tinha a vida a prazo, que algures havia um plano a ser traçado para o calar para sempre, que seria baleado. O guião do filme da sua morte morava-lhe na cabeça, mudava-lhe apenas os locais do corpo onde seria atingido e os autores dos disparos - ora palestinianos, ora israelitas. "Um dia vou a sair de casa e pum!", dizia aos seus companheiros do Teatro da Liberdade, situado no campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia ocupada por Israel. Esse dia chegou há precisamente um mês, a 4 de Abril.

A actriz portuguesa Micaela Miranda, de Santa Maria da Feira, professora de teatro, encenadora e responsável pelas relações internacionais do Teatro da Liberdade, está em Jenin há quase quatro anos e ouviu aquela frase várias vezes. "Ele sabia que isso ia acontecer", conta ao P2, numa conversa ao telefone, a partir da Cisjordânia. Mas nada fazia prever que seria no seu regresso a Jenin, depois de ter estado fora 12 dias em Ramallah, nem à porta do seu teatro que, no fundo, era a sua casa.

Juliano foi morto à queima-roupa por homens de cara tapada com cinco tiros no peito. Tinha 52 anos. Estava dentro do seu carro vermelho, com o filho de 11 meses no colo. Jenin vestiu-se de luto para chorar a morte do activista, actor, realizador, símbolo da luta da causa palestiniana. O assassínio está a ser investigado, mas ainda ninguém foi preso.

O teatro suspendeu a sua actividade durante um mês, mas o núcleo duro continua a trabalhar, enquanto a mulher de Juliano, grávida de gémeos, aguarda pelo nascimento de dois rapazes, previsto para o final de Junho. Em Maio do próximo ano, o primeiro projecto de teatro de rua do Liberdade é apresentado em Guimarães, no programa da Capital Europeia da Cultura. As ideias amadurecidas durante quase dois anos serão concretizadas em Portugal, na Palestina e possivelmente em outros países. Um dos desejos de Juliano tornar-se-á assim realidade.

A morte andava por perto. A sua voz incomodava. O seu olhar crítico abria feridas. Em 2007, num vídeo de divulgação do trabalho do seu teatro, Juliano encenou a própria morte. Insistiu para que o filme terminasse com ele vestido de palhaço, em cima do palco, a morrer com um tiro no peito. Alguns responsáveis pelo teatro mostraram alguma resistência a um último acto tão triste, mas acabaram por ceder. "E assim ficou. Como era possível ter essa ideia na cabeça? Agora, quando revemos o vídeo, vemos que faz todo o sentido", desabafa Micaela Miranda.

Na cela com Darwish

Juliano nasceu a 15 de Maio de 1958 em Nazaré, no Norte de Israel, fruto de uma ligação considerada impossível, entre uma judia israelita e um cristão palestiniano. Tinha cidadania israelita e por isso teve de cumprir o serviço militar obrigatório. Integrou as forças especiais dos pára-quedistas do Exército de Israel, até ao dia em que a sua vontade o pôs atrás das grades. Teimou em desobedecer à ordem do comandante, ao tentar deixar passar parentes palestiniaos do seu pai por um posto de controlo militar israelita. A discussão aqueceu, acabou por bater com o cabo da arma na cara do comandante. Ficou preso durante dois anos. Chegou a partilhar a cela com o mais célebre poeta palestiniano, Mahmoud Darwish. Despiu para sempre o uniforme militar, tornou-se "combatente pela liberdade", actor, realizador.

Participou em vários filmes, entre os quais Little Drummer Girl, com Diane Keaton, e mais recentemente Miral, sobre o conflito palestiniano, do cineasta norte-americano Julian Schnabel.

Arna Mer, a mãe de Juliano, era judia israelita e uma defensora acérrima da causa palestiniana. Criou o Teatro da Liberdade na década de 1980, que viria a ser destruído em 2002, na segunda intifada, para ser recuperado em 2006 pelo próprio Juliano. O seu pai, Saliba Khamis, foi líder do partido comunista em Israel.

Há uma frase que resume a vida do filho de Arna e Saliba: "Sou 100 por cento palestiniano, 100 por cento judeu, 100 por cento Juliano". Viveu algum tempo em Moscovo, para onde a família se mudou, para escapar a pressões políticas. "Eu era um judeu sujo em Moscovo e um árabe sujo em Israel", disse Juliano, resumindo a sua infância. Ao lado da mãe, tornou-se um homem cativante, franco, irónico, subversivo, revolucionário.

Depois de ter recuperado o Teatro da Liberdade, palco de diversas expressões artísticas, um instrumento de mudança social e de aumento de auto-estima de crianças e jovens habituados ao som dos disparos, foi ameaçado de morte em folhetos que teve nas mãos, distribuídos por islamistas radicais. Papéis que anunciavam o recurso à "linguagem das balas". Mas essa não era a sua língua. Disse ele numa entrevista ao jornal espanhol El Mundo: "Seria muito triste se, depois de tudo o que fiz pelos jovens do campo de refugiados de Jenin, fosse morto por uma bala palestiniana".

Em Jenin, vida e morte misturam-se. Há rostos dos jovens suicidas, mártires como alguns lhes chamam, colados nas fachadas de casas. Num dos muros do cemitério da cidade há uma frase que lembra que os corpos são armas. O corpo de Juliano está enterrado ao lado do da sua mãe num kibutz (comuna) em Israel.

A sua voz não será silenciada. "As pessoas estão em choque, tristes, mas o sentimento é comum: toda a gente quer continuar ainda com mais força", garante Micaela Miranda. E foi precisamente essa a mensagem que foi vincada no funeral de Juliano. O seu corpo foi autopsiado em Haifa e antes de seguir para Israel passou por Jenin para que os palestinianos, sem autorização para sair aquele pedaço de terra, pudessem despedir-se numa cerimónia curta, 10 minutos.

Juliano era um exímio contador de histórias e gostava de repetir uma frase que a mãe não se cansava de dizer: "Em vez de chorarem, fiquem zangados".

"Era um homem fantástico, de uma grande honestidade, uma pessoa muito subversiva que não conseguia ficar calada", recorda a actriz. Juliano levou a filha adolescente e Micaela ao cinema em Haifa para verem o filme Avatar. No final, comentou em voz alta: "Isto foi o que os israelitas fizeram aos palestinianos".

Abrir caminhos

Na adaptação que fez de O Triunfo dos Porcos, de George Orwell, colocou o homem que regressa à quinta a tentar convencer os animais a fazerem negócio, a falarem hebraico. O porco é um animal impuro, segundo o islão - e alguns integristas não gostaram da sua ousadia. A última peça que levou ao palco do Liberdade foi uma adaptação de Alice no País das Maravilhas, representação muito física com acrobacias e circo.

No seu teatro, Juliano deu voz e palco a meninos e meninas, a rapazes e raparigas. Acreditava na arte como um meio para mudar destinos, para libertar crianças e jovens de soldados e pais abusivos, para alertar consciências. Viveu a abrir caminhos criativos para os seus alunos sobreviverem a um traumático conflito. Já são quase uma centena, dos cinco aos 27 anos, diariamente expostos a um discurso de louvor à liberdade, de apreço pela arte, música, dança, fotografia, teatro.

Adversários de Juliano tentaram incendiar o seu teatro duas vezes, mas não conseguiram destruí-lo. "Acreditamos que a terceira intifada será cultural, com poesia, música, teatro, câmaras", dizia ele.

O seu documentário Arna"s Children (As crianças de Arna) conta histórias dos meninos do teatro - as que se fizeram explodir, as que foram mortas mas também as que resistiram. É uma homenagem a Arna, a sua mãe, e ao seu projecto cultural. O filme foi rodado entre 1988 e 2002 e considerado um dos mais emotivos testemunhos do conflito israelo-palestiniano, silenciado durante algum tempo em Israel.

Arna, com um cancro terminal, quase sem cabelo, surge como uma força indestrutível, que não se deixa abalar nem no dia em que Juliano a vai buscar ao hospital para se despedir do Teatro Liberdade. Ela acreditava em milagres.

Em 2002, Juliano voltou a Jenin para terminar as filmagens, carregado de dor por vários dos seus alunos do teatro se terem tornado parte da resistência armada e participado em missões suicidas em Israel. No grupo, havia poucos sobreviventes, entre eles, Zakaria Zubeidi, ex-líder das Brigadas dos Mártires Al-Aqsa (milícia outrora ligada à Fatah, no poder na Cisjordânia). Zubeidi tornou-se num dos elementos fundamentais da sua equipa.

O Teatro Liberdade vai continuar a funcionar, mas depois do assassínio de Juliano as crianças e jovens saíram temporariamente de Jenin para frequentarem alguns workshops noutra cidade. Hão-de voltar para dar continuidade ao trabalho do seu mentor. Ainda este ano, um novo teatro, em construção, irá abrir em Jenin. A casa-mãe não fechará as portas. Funcionará, ao que tudo indica, como um centro de formação e centro comunitário.

Liberdade em Guimarães

"A morte de Juliano foi uma grande perda", garante Micaela. "Entretanto, criou-se um grande movimento entre os artistas e toda a gente se disponibilizou para ajudar o teatro a continuar."

O trabalho continua e o projecto Jerusalém, que anda a ser planeado há cerca de dois anos pelo Centro de Criação de Teatro e Artes de Rua (CCTAR), de Santa Maria da Feira, e o Teatro Liberdade, não foi suspenso. Depois de muitos emails trocados, muitas conversas via Skype, e algumas viagens a Jenin, a colaboração foi colocada no papel num protocolo assinado em Outubro do ano passado.

"Juliano estava muito entusiasmado com o projecto, é uma grande oportunidade ter artistas profissionais e com muita experiência em Jenin", diz Micaela Miranda. O projecto prevê a abertura, em Outubro, de um curso de teatro de rua no Liberdade (com professores de várias partes do mundo que ficarão alojados em casas de famílias de Jenin), e a realização do primeiro festival de teatro de rua da Palestina, com momentos protagonizados por professores e alunos em Outubro de 2012.

Antes disso, será montado um espectáculo de teatro de rua para apresentar em Maio do próximo ano, em Guimarães, integrado na programação da Capital Europeia da Cultura, e mais tarde em Jenin. Este momento inclui uma residência artística na cidade portuguesa, durante cerca de mês e meio, com a comunidade local e alguns jovens do Freedom.

Renzo Barsotti, director do CCTAR, revela como tudo aconteceu. "Interessa-nos trabalhar naquele território pelas razões que, longamente, discuti com Juliano. O teatro é um instrumento de libertação em resposta a um poder que prevarica a consciência dos jovens e que Juliano, dando continuidade ao trabalho da mãe, tentou resgatar", refere. A utilização do espaço público foi assim olhada como um meio para amplificar a mensagem. "Um artista que escolhe a rua não o faz apenas por razões estéticas, mas por uma opção claramente social e política."

O realizador português Marco Martins estará envolvido neste projecto baptizado de Jerusalém e que se baseia na cruzada das crianças. Uma história que remonta ao século XIII, e embora alguns pormenores sejam ainda discutidos por historiadores, centra-se na figura de um rapaz francês ou alemão que garantiu ter sido chamado por Jesus para liderar uma nova cruzada. Essa implicava ir para Jerusalém, com o mar Mediterrâneo a abrir-se, tal como aconteceu com Moisés, para que as crianças pudessem passar. O mar não se abriu e muitos mercadores ofereceram os seus barcos para levarem as crianças: muitas morreram em naufrágios, outras foram vendidas como escravas.

Há ainda uma versão de que muitas nem sequer chegaram ao Mediterrâneo, tendo morrido pelo caminho de fome ou exaustão. A partir desta parte da história, ainda que não consensual, o objectivo é fazer pensar. "Juliano acreditava que este projecto seria uma mais-valia para os objectivos que se propunha, ou seja, de, através do teatro, amadurecer a consciência das pessoas e libertá-las da instrumentalização de todos os poderes", sublinha.

Renzo Barsotti guarda no seu computador fotos e vídeos do Teatro Liberdade, de Jenin. Juliano "era uma pessoa que sentia profundamente todo o clima dos dois povos e todo o desejo de superar as instrumentalizações recíprocas por uma convivência pacífica". Conversou com ele sobre o projecto, sobre a vida na Palestina, seguiu o seu carro vermelho quando o foi buscar a Telavive para conhecer o Liberdade. Em Jenin, teve uma sensação única. "Há uma vida imensa ali. Crianças, confusão, barulho. Toca-se a vida e, ao mesmo tempo, vida e morte estão separadas por um instante. Nunca senti isso em mais lado nenhum."

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