Torne-se perito

1957 - 2011 Ele "odiava mais os inimigos do que amava os filhos"

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Com afegãos em 1989, ano da vitória contra os soviéticos fotos: AFP

Conseguiu ser morto por uma bala mas dificilmente deixará o legado que sonhou. Abdicou de uma vida de privilégio em nome do que acreditava ser o seu dever

Um dia, Osama bin Laden convocou uma reunião com os seus combatentes e quis que os filhos participassem. A família vivia em Kandahar, o berço do movimento taliban, no Sul do Afeganistão, numa casa sem electricidade onde a comida escasseava. "A palestra foi a respeito das alegrias do martírio, de como era a maior das honras para um muçulmano dar a vida pelo islão", conta Omar bin Laden (A minha vida com Osama bin Laden, ASA).

"Quando a reunião acabou, o meu pai chamou os filhos, incluindo os mais novos. [...] Estava, o que era raro, de bom humor. [...] Depois de nos termos sentado no chão, formando um semicírculo aos pés dele, continuou: "Ouçam, meus filhos, há um papel afixado na parede da mesquita. É para homens que sejam bons muçulmanos, homens que se ofereçam para ser bombistas suicidas." Olhou para nós com um brilho de expectativa nos olhos", descreve Omar. Primeiro, nenhum dos rapazes se mexeu. Osama repetiu o que tinha dito e Omar viu um dos irmãos mais novos sair a correr em direcção à mesquita.

Foi aí que percebeu que o pai "odiava mais os seus inimigos do que amava os filhos". "Como nos pode pedir uma coisa dessas?", perguntou-lhe. "Omar, precisas de saber isto. Não ocupas mais lugar no meu coração do que qualquer outro homem ou rapaz deste país. Isso é igual para todos os meus filhos", respondeu Osama.

O episódio relatado por Omar passa-se em 2001, antes dos atentados que levariam Osama a sair das trevas para se tornar num dos rostos mais conhecidos do mundo. Já era o "inimigo número um" dos Estados Unidos, assim declarado por Bill Clinton depois do atentado contra o World Trade Center em 1993. Mas a maioria dos milhões que passaram a ver nele a "face do mal" ou a última esperança de um líder para a umma (a nação muçulmana), capaz de resgatar a importância do islão no mundo, não sabiam sequer que ele existia quando decidiu convidar os filhos a cometer martírio.

De Hadhramaut a Medina

Os Bin Laden são originários de Hadhramaut, uma região mágica do Iémen, com deserto, oásis, penhascos e construções de alturas e localizações impossíveis. Milagres, acasos e lendas que marcam a saga da família.

Por exemplo: ameaçado de morte por causa de um empréstimo que pediu para comprar um boi e não conseguiu pagar devido à morte precoce do animal, Awahd, o avô de Bin Laden teve de mudar de planalto e recomeçar. Foi na nova casa, em Wadi Doan, que nasceu o pai de Osama, Mohamed.

Se não fosse o boi talvez a vida dos Bin Laden tivesse seguido outro caminho. E se Awahd não tivesse morrido quando Mohamed tinha onze anos, talvez este não se tivesse decidido a deixar para trás Hadhramaut e os seus penhascos e a tentar a sorte em Jidá. Mohamed e o irmão iam morrendo de fome para lá chegar: perdidos no deserto, depois de uma violenta tempestade, descobriram uma quinta e ali uma melancia que comeram, sentindo-se renascer, conta Steve Coll (Os Bin Laden). Jidá era "um porto varrido pelas doenças, sem uma rua pavimentada". Mas para Mohamed, que vira "os orgulhosos arranha-céus" de Doan, construídos por gente que fizera "fortuna em locais improváveis", era "um lugar cheio de oportunidades".

Quando Osama nasceu, em 1957, já o pai era dono de um vasto império. Uma fortuna que só o nascimento da Arábia Saudita, em 1932, e o seu petróleo tornaram possível.

O filho da escrava

Morreu aos 60 anos, deixando um dos grandes impérios de construção do mundo e 54 filhos e filhas, que viveram sabendo que dificilmente conseguiram ultrapassar os feitos do pai. Osama também. Décimo sétimo filho era um entre muitos. Menos do que isso até. Filho de uma síria, sentiu-se sempre um estrangeiro entre os sauditas - os seus outros irmãos tinham mãe saudita. A mãe, Alia, que gostava mais de vestir Chanel do que de cobrir o rosto, nunca se terá integrado no clã. Alguns membros da família garantem que era conhecida como "a escrava" e Osama como "o filho da escrava".

Osama nasceu no bairro Malazz de Riad, a capital saudita, a 10 de Março. "Depois Deus foi gracioso o suficiente para que nos mudássemos para a Medina sagrada e pelo resto da minha vida fiquei em Hejaz, movendo-me entre Jidá, Meca e Medina", descreveu numa entrevista à Al-Jazira, em 1999.

Estudou entre a Arábia Saudita e o país da mãe, a Síria, e foram esses os dois espaços em que se moveu até à juventude, demonstrando pouco interesse pelas férias de diversão que muitos dos seus irmãos passavam em Beirute ou Estocolmo. "Preferia morrer do que viver num Estado europeu", disse anos depois numa entrevista ao jornalista Abdel Bari Atwan.

Entrevistado pelo jornalista Peter Bergen, Bryan Fyfield, o seu professor de inglês, lembra um rapaz discreto e um aluno comum. Outros que se cruzaram com ele falam de um jovem tímido, bom observador, pouco carismático mas seguro de si.

Paciente e devoto

Osama perdeu o pai com a mesma idade com que Mohamed perdera o seu, aos onze anos. Sobre a sua morte diria numa entrevista a Hamid Mir: "Foram notícias muito trágicas para mim, mas ouvia-as com muita paciência". Paciência e tranquilidade, em qualquer situação, são características muito referidas para o descrever.

Osama casou pela primeira vez aos 18 anos e, segundo familiares, por amor. A sua primeira mulher, Najwah, de 14 anos, era síria. Ainda não tinha passado um ano e o casal já tinha um filho, Abdullah. Apesar de casado, Osama continuava a estudar. Ao contrário dos irmãos, que estudaram em países ocidentais, ele decidiu ficar em Jidá e estudar Administração Pública na Universidade Rei Abdul-Aziz. Já então considerado muito devoto pelos que o rodeavam, não parecia interessar-me muito por política. Mas começava, aos poucos, a contactar com as prédicas dos religiosos tradicionalistas.

Bin Laden ainda não tinha 23 anos quando a União Soviética invadiu o Afeganistão e ele partiu pouco depois para ajudar os mujahedin. Passaria os anos seguintes entre Peshawar, onde organizava a recruta de combatentes, e os campos de batalha afegãos, ao lado do seu primeiro mentor, Abdullah Azzam, o carismático palestiniano que começou por fornecer energia ideológica ao movimento. Foi nestes primeiros anos que ganhou reputação de guerreiro, ao mesmo tempo que se revelava eficaz angariador de fundos.

Osama guerreiro, garantem muitos mujahedin que o conheceram nesses anos, é mais mito do que realidade. Mas no ano em que completou 25 anos, Osama viu a morte de perto: em Nangahar, um míssil caiu sem explodir ao seu lado. Osama contou a Robert Fisk ter sentido "sequina", qualquer coisa como calma religiosa.

Terminada a jihad contra os soviéticos, em 1989, Osama tinha um exército: os milhares de muçulmanos recrutados e treinados nos campos afegãos e não tinha guerra. Mas acreditava que este exército era invencível e que tinha uma missão superior.

Quando Saddam invadiu o Kuwait e Riad ignorou a sua oferta de colocar os mujahedin a defender os locais santos do islão, convidando, em fez disso, os norte-americanos a fazê-lo, Osama considerou que era sacrilégio. Convenceu-se de que a presença dos EUA se destinava a manter os ditadores muçulmanos no poder e que era isso que impedia o estabelecimento de verdadeiros estados islâmicos.

Cada vez mais pressionado pela família real saudita, deixou o país e instalou-se em 1991 no Sudão, com as quatro mulheres que já desposara (e parte dos pelo menos onze filhos que teve), onde havia um novo regime que içara a bandeira do islão.

Em 1995, pouco depois de os Saud lhe retirarem a nacionalidade, publicou uma das suas primeiras mensagens importantes "A invasão da Arábia". Escrita em forma de diálogo, dirige-se aos "veneráveis exegetas da Arábia" e ataca a presença de americanos na Península, descrevendo-a como "uma calamidade sem precedentes" na história da comunidade.

Depois de uma fracassada tentativa para o assassinar, Osama parte para o Afeganistão, onde em 1996 um grupo de auto-proclamados "estudantes de teologia", os taliban, tentavam conquistar o país, aproveitando as lutas fratricidas entre mujahedin afegãos.

Tora Bora, Jalalabad, Kandahar, foram as novas casas de Osama, da sua família e das centenas de combatentes que sempre o acompanhavam. Por fim, um santuário. Osama continuou a viver na simplicidade que sempre impôs às mulheres e aos filhos, rezando, estudando o Corão, comendo pouco, ao mesmo tempo que recrutava cada vez mais combatentes e expandia campos de treino. O objectivo era unir todos os grupos radicais debaixo da bandeira da Al-Qaeda

Jihad aos americanos

É de 1998 a sua Declaração de Jihad contra os Americanos, texto em que afirma que matar americanos é "um dever sagrado para os muçulmanos". Nesse mesmo ano, em Agosto, duas bombas explodem nas embaixadas dos EUA em Nairobi e Dar es-Saalam, matando 224 pessoas.

Osama continuava convencido de que era pouco e que o seu objectivo de unir a umma só seria alcançado depois de um golpe grandioso contra a América. Quatro anos depois, cumpria com os atentados que chocaram o mundo e cuja dimensão em termos de perdas de vidas ele próprio confessaria tê-lo surpreendido. O Presidente Bush declarou "guerra ao terrorismo" e afirmou ao mundo que "ou estavam com os EUA ou contra". Osama proclamou quase o mesmo: "Estes acontecimentos dividiram o mundo em dois campos, o dos crentes e o campo dos infiéis. Todos os muçulmanos têm de se erguer e defender a sua religião."

Seguiu-se a guerra no Afeganistão e a oportunidade perdida de apanhar Osama, que regressou às grutas de Tora Bora antes de desaparecer algures entre a fronteira que divide com o Paquistão. Tornou-se o "homem mais procurado do mundo" e o mais difícil de encontrar. Quando fez 50 anos, em 2007, Robert Fisk escreveu no Independent: "Bin Laden criou a Al-Qaeda. O monstro nasceu. Qual é o sentido de continuar à procura de um Bin Laden de 50 anos?" Peter Bergen escrevera pouco antes que o monstro são "os mil Bin Laden" que ele criou em vida.

Numa entrevista ao jornalista paquistanês Hamir Mir, a 7 de Novembro de 2001, num esconderijo em Cabul, antes da queda da cidade, disse adorar a morte. Mir perguntou-lhe se se renderia caso fosse encurralado? "Sou uma pessoa que adora a morte. Os americanos adoram a vida. Não me renderei. Se chegar a altura, quero ser morto por uma bala", respondeu depois de uma gargalhada.

Dizia aos colaboradores próximos que a sua maior esperança era que o mundo muçulmano se erguesse em uníssono para vingar a sua morte e derrotar a nação responsável. Dez anos depois do 11 de Setembro e quatro meses depois do início das revoltas árabes que derrotaram já dois ditadores e mataram a narrativa da Al-Qaeda, segundo a qual a violência era o único caminho para atingir qualquer mudança nos países dirigidos por ditadores apoiados pelos EUA, é pouco provável que isso aconteça.

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