"Irrita-me que em Portugal as histórias sejam postas de parte"

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David Machado, economista de formação, tornou-se escritor a tempo inteiro depois de ter ficado sem emprego: "De certa forma, foi a melhor coisa que me aconteceu" RUI GAUDÊNCIO

"Deixem Falar as Pedras", o segundo romance de David Machado, é talvez o momento mais conseguido de uma nova geração de escritores portugueses que confia fortemente no poder de uma boa história. Depois de termos sido um país de poetas, teremos perdido o medo de ser um país de narradores?

Não se deve subestimar o poder do tempo e da mudança. Há dois anos, quando David Machado lançou o seu segundo livro para adultos e primeiro de contos, confessava que se via mais como escritor de histórias curtas e precisas, mas que era complicado convencer uma editora a apostar nesse género. Se for preciso um exemplo para corroborar esta ideia, o escritor e crítico Pedro Mexia, com quem falámos sobre a nova vaga de narradores portugueses, oferece-a de bom grado: "Olha-se para a obra do João Aguiar, que escreve romances históricos e escreveu um livro de contos, e vemos nas cintas publicitárias "segunda edição, terceira edição, quarta edição". Depois chega o livro de contos e diz só "livro de contos", porque nunca foi reeditado. Ninguém compra".

Aparentemente, por cá, aquilo a que os americanos chamam "short story", e que serve de preâmbulo a empreitadas maiores, não parece ter cultores.

Pelo que acaba por fazer sentido que, ao terceiro livro, Machado diga, entre goles de chá e uma gripe mal curada, que gosta "muito de escrever contos", mas o romance "tem uma exigência em termos de estrutura que é muito desafiante": perante o inevitável (ter de escrever romances), nada melhor do que olhar para a tarefa como um desafio.

Por estes dias, Machado tem dois livros para defender e não podiam estar mais afastados entre si: "A Mala Voadora" é o seu quinto livro para crianças, "Deixem Falar as Pedras" é o seu segundo romance.

A violência do romance não encontra - obviamente - eco no livro infantil. Machado - que mais mês menos mês irá ser pai pela segunda vez - convive há muito com esta dicotomia entre a escrita para miúdos e para graúdos e não menoriza minimamente a primeira. "Tem coisas extremamente recompensadoras", diz este economista de formação que começou a escrever a tempo inteiro quando perdeu o emprego: "De certa forma, foi a melhor coisa que me aconteceu, porque me permitiu concentrar-me exclusivamente na escrita".

José Riço Direitinho, extraordinário escritor português cujo regresso à edição começa a assumir proporções sebastiânicas e que fez o prefácio ao livro de contos de Machado, confirma esse lado laborioso, intenso, do trabalho de Machado: "O David é escritor a sério. Ele fica de manhã à noite a escrever e reescrever, todos os dias. É isso que um escritor faz".

É pelo menos isso que permite que David, sem grandes mecanismos publicitários ao seu redor, sobreviva praticamente só da escrita ou dos seus, chamemos-lhe, derivados: além dos livros dá aulas de escrita criativa de Literatura Infantil numa escola chamada Escrever Escrever, traduz e faz idas a escolas, escreve para crianças.

"Com as idas a escolas acontecem coisas extraordinárias", como "ir a Abrantes, falar para 700 miúdos que põem perguntas e no fim dar 150 autógrafos", conta. "Isto nunca aconteceria com os meus livros para adultos. Quando muito estariam quatro pessoas na sala", diz, assumindo sem peias que há, na alegria da miudagem, uma massagem ao ego do escritor que lhe é benéfica.

A massagem ao ego tem, além disso, uma vantagem para a carteira: "Pagam-me 250 euros por ida. Não é nada mau, pois não? Eu não acho mau", continua, com um à vontade que é raro nas letras portuguesas: ele é um daqueles casos que surgem apenas muito de vez em quando e em que não se sente pose, em que cada palavras dita parece corresponder exclusivamente ao que quer dizer em vez de obedecer a um guião. O que lhe permite dizer coisas como: "O que acho mais interessante na literatura é que podemos contar uma história de infinitas maneiras" com um maravilhamento expectável num principiante, mas não em alguém que já acumulou um certo repertório.

Com a mesma abertura explica-nos ainda como funciona o mundo da edição infantil - os seus quatro livros infantis anteriores venderam 20 mil exemplares, mas o que retira deles é menos do que o que retira dos romances, porque tem de dividir os direitos com o ilustrador. E - acrescenta - o preço de capa é bastante menor. "Se o preço por unidade fosse o mesmo eu ficaria bastante satisfeito", assume.

Um salto e a maturidade

Talvez fosse a isto, a este não-estar-com-merdas, que Riço Direitinho se referia quando falava em seriedade - uma seriedade que é certamente responsável pelo salto admirável em termos de maturidade que encontramos em "Deixem Falar as Pedras", quando comparado com "O Fabuloso Teatro do Gigante" com que se estreou na ficção para maiores de 12 anos, ou mesmo quando comparado com "Histórias Possíveis", a acima mencionada colectânea de 16 histórias curtas que publicou no início de 2009.

A maturação visível que Machado alcança com "Deixem Falar as Pedras" não é um caso insólito, mas é talvez - dependerá da opinião de cada um - o momento mais conseguido de uma geração de escritores que confia fortemente na narração, uma geração que teve em José Luís Peixoto o seu primeiro ícone e que desde então viu surgir nomes tão díspares como João Tordo, Hugo Gonçalves, Vasco Luís Curado, Francisco Camacho ou valter hugo mãe, este mais dado a lirismo.

No caso de Machado, essa maturidade vem a par de uma ligeira mudança tonal: onde antes havia uma espécie de véu reminiscente do fantástico, agora encontramo-lo bem mais atreito ao real. "Eu gosto do fantástico", diz, como que a esclarecer que o autor de "Histórias Possíveis" não desapareceu, "mas no sentido em que faz parte da nossa metáfora colectiva: as lendas, os mitos, etc".

Curiosamente, "Deixem Falar as Pedras" também tem o seu quê de lendas e mitos, ainda que abordadas de outra forma: em vez de lendas e mitos colectivos, temos um homem cuja vida é lendária, vida cujos factos foram mitificados (por ele e pelos outros outros).

"Deixem Falar as Pedras" é a rocambolesca história de Nicolau Manuel, um homem que, no dia do seu casamento, foi tomado como cúmplice de um agrupamento de guerrilheiros espanhóis e injustamente preso - após o que é desterrado, torturado, ensurdecido a tiro de pistola, provando todos os pães que o diabo conseguia amassar neste território chamado Portugal no tempo da outra senhora.

É curioso que o livro narre a história de um homem que é surdo, pormenor quase humorístico mas que, diz Machado, "dá mais profundidade e verosimilhança à personagem". Entre outras razões, pelo menos justifica o facto de o velho estar sempre a berrar, para sofrimento da família. "Quando se define alguém com algo muito específico", diz, "dá-se-lhe credibilidade. Quando as qualidades são pouco definidas, o leitor assimila-as mas elas não marcam. Assim tornam-se reais".

Mas o que torna o livro raro é o facto de a história ser narrada pelo neto de Nicolau Manuel, num diário em que escreve não só as memórias do avô como o processo que o leva a contar essas memórias à noiva que ele perdeu. As memórias, verdadeiras ou falsas, que o avô lhe transmite (e que mais ninguém quis ouvir) fazem eco na solidão de Valdemar, um rapaz anafado, perdido de amores pela vizinha anoréctica, que recorre não raras vezes à violência para resolver os seus problemas. Em certo sentido, Valdemar herda a dor do avô - como adolescente revê-se nesse homem idoso que é uma espécie de marginal.

O que chega ao leitor já não é a verdadeira história de Nicolau Manuel, mas essa história filtrada pela memória de Nicolau e pelas eventuais distorções de Valdemar - o que torna "Deixem Falar as Pedras" num trabalho sobre a memória e a identidade.

"A memória é falível, permeável, sofre acrescentos e subtracções", vai dizendo Machado. "Nunca é a verdade".

Contrapor passado e presente

É essa ambiguidade da memória, na impossibilidade que temos de viver sem ela mas também na impossibilidade que temos de não a alterar, que explica o nascimento da personagem do neto adolescente: "Não é importante saber se o que o puto conta é verdade ou não", diz Machado. O que importa é que "o facto de ser o neto a contar a história enfatiza o poder da memória", que é, de certo modo, a personagem central do romance.

"O miúdo", vai dizendo Machado, "tem uma série de conflitos e só tem uma relação aberta com o avô". A voz deste rapaz foi o grande desafio do romance, "a coisa mais difícil de conseguir". "Foi difícil não cair em clichés", assume, até porque a verosimilhança da personagem era essencial para contar a história como Machado queria: "O livro tinha de ser narrado por alguém que não tivesse muita consciência do passado, tinha de ser alguém que ainda acreditasse que o passado pode ser vasculhado e que com isso algo pode mudar".

Desde que lhe surgiu a ideia para o romance que havia um objectivo principal: "Contrapor passado e presente", através do jogo entre o avô e o neto, o campo e a cidade.

Este é um dos aspectos centrais de "Deixem Falar as Pedras", porque permite contrapor dois países, um país rural sob o jugo do fascismo e outro país urbano afectado por múltiplas maleitas de nomes menos grandiosos do que "fascismo", mas ainda assim tendentes a um "mal de vivre" simbolizado pela anorexia da miúda, pela disfunção da família, pela gordura e pela violência de Valdemar.

O país rural do romance situa-se em Lagares, lugar imaginário que já tinha servido como cenário ao primeiro romance. É inspirado em Ruivães, "a aldeia de onde vem a família do lado da mãe", mas não surge por vontade de criar um território só seu (não há nada de Faulkner em Machado), nem por obsessão de um escritor urbano com a província, muito menos por estilização, antes pela mais simples das razões: era uma forma de resolver um problema. "Usei Lagares porque havia um grupo de guerrilheiros espanhóis, e tinha de ter um lugar bem definido para eles".

O grupo de guerrilheiros espanhóis - que pode ou não ser um grupo de guerrilheiros espanhóis - é um dos achados e uma muito bem conseguida incursão na (por assim dizer) história paralela da violência em território nacional. Essa parte do livro passa-se quando Nicolau Manuel está noivo e vai casar e nos arrabaldes da aldeia acampam uns espanhóis que se diz andarem fugidos da Guerra Civil de Espanha.

David não só apanha bem esse lado português do diz-que-andem-fugidos, como o usa para iniciar a tremenda queda de Nicolau Manuel: ele é apontado à polícia como apoiante da causa terrorista, numa confusão identitária com o seu irmão. Um truque literário que lembra Adolfo Bioy Casares, que David Machado aliás traduziu.

Quando se dá o 25 de Abril, Nicolau Manuel continua a ser perseguido. "Achei tremendamente divertida essa ideia", diz Machado - e ficamos a pensar que Bioy Casares também acharia.

Toda a parte "espanhola" do livro, antes da saga de torturas infernais a que Nicolau Manuel é sujeito, tem simultaneamente um lado revelador (a já mencionada relação escondida que a nação tem com a violência) e lúdico. O curioso é que o autor não reclama nenhuma portugalidade na criação dessas cenas específicas. Antes pelo contrário: "Isto basicamente são histórias de índios e cowboys na serra".

Apesar do valor que atribui ao trabalho duro de escrita, Machado diz não ter precisado de falar com ninguém que tenha presenciado histórias semelhantes: "Não ouvi estas histórias a ninguém. Vi filmes americanos suficientes para ser capaz de escrever estas cenas. Documentei-me com livros e o resto inventei. Tive de me documentar porque a história passa-se numa época que não vivi. Mas isto não é um romance histórico. Não era importante contar uma história tal como aconteceu durante a ditadura".

A saga de uma obsessão

Para um livro sobre as consecutivas desgraças de um homem que sofre tudo, contado por um neto que sofre bastante, não deixa de ser curioso que nada disso tenha sido o que surgiu primeiro. "O que surgiu primeiro foi o alfaiate, que se quer matar sem morrer". O alfaiate é o homem que denuncia Nicolau, o homem que almeja ficar-lhe com a noiva. "Comecei a construir a história do avô a partir daí". O que se segue é uma saga: não a de Nicolau mas a de David, a procurar o próprio livro.

"Escrevi o primeiro capítulo 18 ou 19 ou 20 vezes", confessa, sem que pareça haver no seu discurso qualquer resquício daqueles lobo-antunismos literários ("ai, a mão", "ai, o trabalho", "ai, a mão que trabalha"): "Comecei a contar do ponto de vista do alfaiate, do ponto de vista do avô, do ponto de vista do miúdo".

O primeiro capítulo era - como muitas vezes é, na literatura, como um primeiro plano o é no cinema, ou uma primeira canção na música popular - uma espécie de obsessão, não apenas porque marca do encontro do leitor com as páginas mas também porque "de alguma forma o primeiro capítulo é o último capítulo, o livro é circular, o último encerra elementos do primeiro".

As 18 versões do primeiro capítulo demoraram-lhe "nove meses". "O resto demorou um ano". Um ano de tentativa e erro, mas não um ano estrito de escrita diária: "Acabo hoje uma versão e fico frustrado, pelo que só duas semanas depois é que me apetece voltar a pegar naquilo", confessa. "Mas a frustração é importante, é o que faz voltar lá e tentar outra vez".

Machado, que só se senta para escrever quando tem "uma série de momentos chave para [se] orientar", é um sujeito notoriamente metódico: no seu livro anterior todos os contos tinham o mesmo exacto número de páginas. Neste também é preciso: "todos os capítulos têm, mais coisa menos coisa, 25 páginas".

E o mesmo se pode dizer do seu método de trabalho, pelo menos nas alturas em que está a escrever diariamente: "Acordo de manhã cedo, leio qualquer coisa e escrevo até às seis horas".

Mas desta feita ele tinha alguém a quem se reportar, um eco que lhe devolvia uma visão menos engajada do progresso do romance: Maria do Rosário Pedreira, conhecida por ser a editora portuguesa mais próxima do que os anglo-saxónicos chamam "editor": alguém que, de facto, edita.

Rosário Pedreira não teve de correr atrás de Machado para trabalhar com ele. Bastou-lhe dizer o que pensava da sua escrita numa rádio.

"No programa do Carlos Vaz Marques, ele perguntou à Maria do Rosário Pedreira se havia algum escritor que lhe tivesse escapado e ela disse o meu nome. Fui ao Facebook, encontrei-a e mandei-lhe uma mensagem. Nessa altura já tinha o romance bem encaminhado".

O que descobriu depois foi que Rosário Pedreira "edita mesmo", o que para ele foi uma alegria: "Sempre achei que um livro devia ser trabalhado assim". "Ela não resolve problemas, põe-te a pensar sobre eles. Pergunta "O que é que pretendes com isto?". E eu é que tenho de resolver o problema. E nunca diz "Este final não pode ser". Se eu achar que uma coisa tem mesmo de ficar assim, fica assim".

Talvez o acima mencionado salto de maturidade na escrita de Machado venha um pouco dessa companhia, desse olhar de fora que pergunta "Para que é que isto serve?". Ou então é o simples crescimento de um escritor que acredita em contar histórias: "Irrita-me que em Portugal as histórias sejam postas de parte".

E que em vez de chorar sobre o leite derramado, foi à procura da teta da vaca.

Ver crítica de livros na pág. 48 e segs.

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