Descoberto mecanismo que dá resistência humana à malária

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Miguel Soares acredita que a descoberta pode abrir a porta a uma nova terapia contra a malária Nuno Ferreira Santos (arquivo)

Esta anemia é conhecida há mais de um século, mas só em 1949 é que se percebeu que era provocada por um erro na cadeia de aminoácidos da hemoglobina, a proteína que transporta o oxigénio nestas células. Os cientistas identificaram a mutação no gene da hemoglobina, verificaram que na África subsariana havia uma enorme quantidade de pessoas com esta doença - 30 por cento em algumas populações - e fez-se a ligação da sua prevalência com a existência da malária, sem saberem porquê.

A malária aparece quando o mosquito Anopheles injecta um parasita do género Plasmodium nas pessoas. O parasita primeiro multiplica-se no fígado e depois nos glóbulos vermelhos. Os casos de malária mais graves são causados pelo Plasmodium falciparum. As pessoas sofrem febres horríveis devido ao rebentamento dos glóbulos vermelhos, dores no corpo e podem morrer de malária cerebral. Mas os indivíduos com esta mutação no sangue não são afectados pela forma grave da doença.

"A melhor adaptação do genoma humano contra a malária é isto", disse ao PÚBLICO o investigador. Em várias populações separadas, onde a malária existe de forma endémica, ocorreu algum tipo de mutação na hemoglobina que acabou sempre por vingar.

Estas mutações não acontecem sem um custo. Cada pessoa recebe um gene da hemoglobina da mãe e outro do pai. Se ambos os genes forem mutados, os glóbulos vermelhos vão todos estar deformados e a pessoa morre com problemas de circulação. Quem não tem nenhum gene mutado facilmente morre de malária cerebral, principalmente as crianças (a doença ainda mata cerca de um milhão de pessoas por ano). Mas quem só tem um gene da hemoglobina mutado consegue sobreviver à malária cerebral.

Em 2007, um trabalho que envolveu a equipa de Soares concluiu em ratinhos que se a enzima heme-oxigenase estivesse activa antes de estes animais serem infectados pelo Plasmodium, apesar de os parasitas continuarem a multiplicar-se, os mamíferos não morriam de malária cerebral.

Unir as peças do puzzle

"O que este novo artigo faz é unir as peças do puzzle", disse ao PÚBLICO Maria Mota, especialista em malária e líder de um grupo do Instituto de Medicina Molecular, que foi uma das responsáveis do trabalho de 2007 mas que não integrou a nova investigação. A heme-oxigenase é uma enzima que degrada o grupo heme da hemoglobina, quando ela sai dos glóbulos vermelhos. Isto não acontece numa pessoa saudável, mas num episódio de malária é um processo brutal.

"Há muitas doenças infecciosas que não conseguimos curar, como a malária, a sepsia ou a tuberculose, em que o que está a faltar é os tecidos terem uma tolerância à infecção", diz Miguel Soares. Estes grupos heme provocam a malária cerebral: a barreira entre o sangue e o sistema nervoso, que evita a passagem de sangue e micróbios, entra em colapso, acabando por matar a pessoa. No artigo da Cell, em que a primeira autora é Ana Ferreira, a equipa percebeu que em ratinhos com uma mutação do sangue equivalente à anemia falciforme havia uma produção de heme-oxigenase ao longo do tempo e estes ratinhos, quando infectados pelos parasitas, não sofriam malária cerebral.

Segundo Miguel Soares, a malária pode ser vista como "uma doença da hemoglobina". Para o cientista, se se ensinar os "ratinhos" a lidarem com o grupo heme, evita-se os malefícios da infecção. É o que acontece naturalmente nas pessoas com anemia falciforme. Daqui pode nascer a ideia para uma terapia que "impeça o grupo heme de sair da hemoglobina".

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