Portugal já tem aquele jeitinho de fazer novela

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1985 miguel madeira

O tempo em que uma telenovela da Globo fazia parar Portugal já lá vai. Agora, as campeãs de audiências são as telenovelas nacionais e as capas das revistas pertencem aos actores portugueses. O que é que a novela portuguesa tem que lhe deu um Emmy e que faz a gigante Globo querer co-produzir com Portugal?

U m dos pontos nevrálgicos da indústria mundial da telenovela mundial fica na zona oeste do Rio de Janeiro. Ali, na Central de Produção Globo, o Projac, ou Projecto Jacarepaguá, construído pela rede Globo em 1995 para concentrar as operações de ficção, estão montadas 17 cidades cenográficas. Ali já esteve montado um hospital, há uma fábrica de figurinos e até um centro comercial com parque de estacionamento, construído para gravar algumas das cenas de Insensato Coração, a telenovela de horário nobre da Globo em que o português Ricardo Pereira é o vilão Henrique. São 650 mil metros quadrados e três mil funcionários que produzem ficção. A toda a hora circulam carrinhos de golfe e pequenos autocarros. O movimento alimenta o mundo de faz de conta.

"Até fico assustado a olhar para tudo isto", confessa à Pública o director do Projac, Eduardo Figueira. "Surpreendo-me com a nossa própria capacidade de nos superarmos. Só o México tem algo parecido em relação à dramaturgia. Olho todos os dias para isto e não acredito".

Mas é numa vivenda de Vialonga, arredores de Lisboa, na Plural Portugal, que se constrói o faz de conta que os telespectadores portugueses privilegiam há dez anos - basta olhar para as audiências. Ali faz-se ficção falada em português de Portugal. É de manhã e a actriz Filomena Gonçalves já grava na academia dos Morangos com Açúcar, a série que há oito anos marca a ficção infanto-juvenil em Portugal.

Como é que a ficção portuguesa e a telenovela nacional conqusitaram a preferência dos portugueses? Rui Vilhena, um dos autores de ficção nacional com mais sucessos no currículo - entre eles Olhos nos Olhos, Tempo de Viver ou Terra Mãe - recorda o ano de 2005 e um bom exemplo que ajuda a explicar este fenómeno. A TVI começava então a destacar-se como canal líder de audiências, lugar que ainda não abandonou. No último dia da telenovela Ninguém Como Tu, os repórteres da estação saíram para a rua para saber qual o palpite da população sobre um mistério que intrigava o país: quem matou António, o vilão interpretado por Nuno Homem de Sá? Nessa noite uma viatura blindada foi enviada para a TVI para transportar a cassete com o final da trama. Ninguém poderia saber que Guida (Sofia Aparício), era a autora do crime. A ficção nacional tinha vindo para ficar.

A prova do reconhecimento do género pelo público português espelha-se nas audiências nos últimos anos. Ninguém Como Tu era vista, em 2005, por uma média mensal de 1,3 milhões de espectadores, tendo chegado a atingir shares de 50 por cento - o que significa que metade do país que à noite via TV queria saber quem tinha matado António. Hoje, com a fragmentação de público televisivo protagonizada por um cabo cada vez mais forte e com a concorrência da Web, as telenovelas da TVI como Anjo Meu mantêm cerca de 1,3 milhões de espectadores agarrados ao sofá, segundo os dados da Marktest.

Rui Vilhena fala de um longo percurso traçado pela ficção nacional desde a pioneira Vila Faia (1982), até ao reconhecimento de Meu Amor com o Emmy para melhor telenovela em Novembro de 2010. António Barreira, o autor da novela premiada, que retrata uma espécie de conto da Gata Borralheira com a planície alentejana por paisagem, lembra o contributo da anterior gestão da TVI para o fenómeno. "Tudo começou com uma aposta da TVI, na pessoa de José Eduardo Moniz, em colaboração então com a NBP [Nicolau Breyner Produções]. A intenção era dar aos portugueses histórias portuguesas. Havia um hábito enraizado de ver histórias brasileiras", diz o argumentista da Casa da Criação, o ninho de ideias que alimenta a ficção da TVI. Antes de ser escritor já era telespectador de telenovelas -"um noveleiro assumido". Recorda O Astro, de Janete Clair, como uma das referências.

Também André Cerqueira, director da Plural, o braço armado da ficção da TVI, com 15 anos de experiência na Globo e há 10 a fazer ficção líder em Portugal, reconhece que é por contar histórias de portugueses ao público português que a telenovela da TVI se impôs com a força que tem hoje. E "o Brasil está a afastar-se cada vez mais do público internacional e a ficção brasileira está cada vez mais virada para o Brasil".

A Globo, uma das maiores empresas televisivas do mundo, tem um acordo de exclusividade em Portugal com a SIC desde a sua fundação, em 1994, já renovado até 2012, e que inclui co-produção de séries e novelas. "Na SIC querem o nosso jeito de fazer novela. É muito importante que mandem profissionais nossos para Portugal. A ideia é exportar esse know how, esse jeitinho de fazer novela, para todo o mundo", diz o director do Projac, referindo a vinda do argumentista brasileiro Aguinaldo Silva para rever o guião da telenovela Laços de Sangue, em exibição na SIC.

Do Projac para Angola

Sobre o que está por trás do tal "jeitinho" brasileiro de fazer novela, Eduardo Figueira pouco fala. O segredo sobre a receita de sucesso da Globo é bem guardado: "Cuidado com informação confidencial, não falar fora do Projac de projectos- cuidado com informação no computador e solta em cima da mesa". O aviso para todos os funcionários é dado logo à entrada do complexo, numa placa.

Eduardo Figueira admite que a indústria da ficção brasileira já fez o que Portugal está a fazer hoje - há muitas décadas, quando expulsou o que chamavam de "dramalhão mexicano" e deu prioridade ao sentir brasileiro. Hoje, 90 por cento da produção de ficção da Globo é nacional.

Essa aposta na cultura brasileira, com que se identifica o país que tem na TV de sinal aberto a principal fonte de informação e entretenimento, está presente hoje mais do que nunca - a grelha de 2011 da Globo privilegia as séries sobre as gentes do Rio de Janeiro, por exemplo. Duas das grandes apostas 2011 são As Cariocas, uma série de 10 episódios sobre mulheres-tipo de vários locais do Rio de Janeiro- e que conta com as mais célebres actrizes brasileiras, entre elas Sónia Braga - e Tapas e Beijos, sobre duas "encalhadas" que trabalham numa loja de vestidos de noiva em Copacabana.

Fernanda Torres, filha de Fernanda Montenegro e uma das actrizes brasileiras mais conhecidas, integra o elenco das duas novelas. N"As Cariocas ela é A Invejosa de Ipanema. "Ela é uma granfina que inveja até o que já tem", descreveu aos jornalistas em São Paulo. Em Tapas e Beijos, que se estreia no Brasil, ela e Andrea Beltrão são duas mulheres brasileiras que "trabalham tanto que resolvem a vida pessoal no trabalho".

Raphael Corrêa, director de vendas internacionais da estação brasileira, não esconde: "Os nossos criadores querem procurar uma maior identificação com o povo brasileiro, mas também rasgar fronteiras e passar a nossa mensagem". E nega que as exportações da estação, nomeadamente para Portugal, estejam em queda. Segundo Marcelo Spínola, director de distribuição internacional, a Globo cresceu cinco por cento em 2010 - "um ano difícil" - graças ao mercado americano. Os negócios com Portugal estabilizaram. "Esperamos a retomar o crescimento", afirma.

Para a Globo, a palavra de ordem para Portugal e SIC é co-produção. "A primeira experiência em Portugal com a SIC, com Laços de Sangue [novela de horário nobre da estação] é um motivo de orgulho. Temos muito respeito pelo espectador português e a Globo definiu Portugal como ponto de entrada para a Europa", frisa Spínola. Lisboa terá a sede da Globo na Europa já a partir de Maio.

O próprio director-geral da Globo, Octávio Florisbal, revela a estratégia para o "país irmão": "Portugal é a base de língua portuguesa e entrada para a Europa. Mas Angola também pode vir a sê-lo", diz sobre um mercado que já é o maior importador de ficção da Globo.

SIC e Globo com nova empresa

Raphael Corrêa não esconde que o crescimento da ficção nacional em Portugal interessa à Globo: "Nos últimos dez anos o crescimento publicitário incentivou a produção de conteúdos locais. Trata-se de um fenómeno global e também português. Mas não o encaramos como uma ameaça para nós. Encaramos isso como uma oportunidade de geração de novos negócios. O mercado português amadureceu muito, liderado pela Plural. E vai continuar a crescer, com ou sem a Globo, e temos de estar lá". E fala mesmo da possibilidade de criação de uma oficina de actores Globo/SIC.

Luís Marques, director-geral da SIC, afirma que depois da colaboração em Laços de Sangue, a co-produção com a Globo é para continuar. Para o futuro, SIC e Globo preparam a adaptação de um clássico das novelas da Globo - cujo nome não quis revelar. "E estamos a trabalhar há alguns meses na criação de uma empresa de produção que inclui formação de actores, gestão de carreiras, cenografia." Na SIC, que assumiu o desafio de conquistar a curto prazo a liderança de uma década da TVI, a aposta na telenovela é para reforçar.

Do lado da líder de audiências TVI, a telenovela como prato principal do horário nobre também é para manter. Pelo menos para já: "A TVI desenvolve a sua estratégia de grelha tendo em conta os gostos dos espectadores. Neste momento faz sentido que seja como é, o que não significa que, no futuro, não possam existir alterações", respondeu o gabinete de comunicação da estação à Pública, que questionou a direcção da estação sobre um eventual desgaste do seu modelo de horário nobre. O director-geral, João Cotrim de Figueiredo, escusou-se a responder directamente.

Na Plural, André Cerqueira nega o esgotamento do modelo: "Quem hoje defende que as novelas estão no fim ou não estudou, ou tem outras intenções. A novela é estabilidade ganha, é um produto forte, com 40 por cento de share, o que significa que mais de um terço da população portuguesa está ligada. A Globo faz o mesmo há 50 anos".

Só a RTP fica de fora da produção de telenovelas. O seu último original, Senhora das Águas, foi transmitido em 2001. Depois disso o canal público só teve o remake de Vila Faia, em 2008. O director de programas José Fragoso defende que é na ficção nacional, mas extra-telenovela, que se tem assistido às mudanças mais significativas na televisão em Portugal.

"Devemos ser dos países que produzem mais ficção própria. O que a RTP não faz é telenovela. Fomos pioneiros com a Vila Faia. Mas a telenovela é o conteúdo mais produzido em Portugal. Faz pouco sentido que a RTP seja igual à SIC ou à TVI", diz, frisando que o caminho na TV pública são as séries e o cinema. "Em séries como Pai à Força ou Maternidade temos entre 700 mil e um milhão de espectadores, o que nos incentiva a continuar neste padrão de qualidade mais exigente. O objectivo é ter uma oferta diferenciada".

Com o Emmy na mão, André Cerqueira encara o galardão recebido em 2010 como apenas mais um passo. "Com Emmy ou sem ele as audiências da TVI estão aí, as provas estão dadas".

"A mim não ensinam TV"

A história da ficção televisiva made in Portugal seguiu "um trajecto natural, mas tudo leva o seu tempo", contextualiza Rui Vilhena. "Tinha de ocorrer um processo de evolução desde a Vila Faia. E estivemos sempre em competição com a indústria brasileira, que tem um padrão de qualidade muito elevado. Para fazer frente a isso tivemos mesmo de fazer um grande esforço. A competição acabou por ser benéfica", defende o argumentista, que não acredita numa única fórmula vencedora para uma novela. "A receita de sucesso ninguém tem. Há é uma percepção daquilo que o público quer naquele momento. Ninguém consegue prever o sucesso de um produto. Tudo conta nesse sucesso, a promoção do produto, o elenco", diz.

O guionista António Barreira lembra, sobre o prémio dado a Meu Amor, que eram 120 telenovelas a concurso nos Emmys, vindas na maioria do mercado latino-americano. Mas também de França, Alemanha, entre outras partes do mundo.

"A nossa novela não fica a dever nada a determinados países e a prova disso, se ela era precisa, foi este Emmy. Mas não faço dele bandeira. É um prémio para toda a ficção nacional. Funciona como uma prova de alento. Às vezes é preciso vir alguém de fora e dizer-nos que somos capazes. O fado e a insegurança falam sempre mais alto que o nosso talento", lembra António Barreira.

José Machado, responsável pela área internacional do Canal Q (o canal das Produções Fictícias exclusivo do Meo), foi membro do júri do Emmy. "Acredito que a nossa telenovela é já um produto de exportação com potencial. Até novelas israelitas há nos certames. Nós temos todas as condições para exportar". E relembra a potencialidade do crescente mercado angolano.

A TVI já exporta. Começou com Todo o Tempo do Mundo logo em 2000. Desde então, Chile, Venezuela, México, Uruguai, Peru, Bulgária, Hungria, Angola, Moçambique e Vietname e Indonésia mostraram interesse nos produtos TVI e mantiveram negócios com a estação, informou o gabinete de comunicação da TVI. As novelas mais vendidas até hoje foram Jóia de África e Saber Amar.

"Foi mais fácil ganhar o Emmy do que fazer o país acreditar que isso era possível", vinca André Cerqueira. E refere todo um investimento feito pela TVI no talento português. "Nós não descobrimos talento, nós investimos em talento como o de António Barreira. Se importássemos ficção ou actores não estávamos a investir no futuro da TV portuguesa. Este é um processo que traçamos há dez anos", diz, dando exemplos como Morangos com Açúcar, embrião de muitos dos actores de telenovela da Plural, no ar desde 2003.

"Não se constrói nada, um país, sem se ter bases para isso. A Globo é bem-vinda, mas é aqui que temos valor. Quem tem de adaptar é porque não tem autores e nós já provamos que se investirmos vamos conseguir e que já aprendemos o que havia para aprender. A mim não me ensinam TV, vêm cá competir comigo". a

amachado@publico.pt

A Pública viajou a convite da Globo

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