O paradoxo Bill Callahan

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Bill Callahan a fazer de James Brown? "Não se pode imitá-lo muitas vezes, porque se não o espírito dele volta à terra e dá-nos um pontapé no rabo"

Dois anos depois de "Sometimes I Wish We Were an Eagle", o seu disco mais acessível, Bill Callahan regressa com "Apocalypse", nova escavadela no interior da mente, nova escavadela no folclore americano. E pelo meio imita James Brown (mas não muito). João Bonifácio

Lá pelos anos 90, uma típica entrevista com Bill Callahan, que então editava sob a denominação Smog, tinha bastas hipóteses de acabar com o misterioso rapaz a livrar-se do atarantado jornalista com um seco "Eu só quero que me deixem em paz".

Era o tempo em que a imprensa descrevia canções como "River guard", "Prince alone in the studio" ou "Battysphere" como sufocantes, misóginas ou, na melhor das hipóteses, promotoras de uma visão errada e distópica do mundo. Não havia saída: para a imprensa, Callahan e as suas canções eram um só corpo, hostil ao mundo, e o mundo é que tinha razão.

Mas 19 anos após a estreia em longa-duração com "Forgotten Foundation", pode afirmar-se que Bill Callahan consumou uma das maiores transformações pessoais e musicais da história da música popular: de pioneiro do lo-fi a desenhador de exímias harmonias, de vocalista monocórdico a homem capaz de usar a voz com segurança e humor, de vanguardista a profundo conhecedor de folclore, de tipo que tinha prazer em mourejar nas vísceras a distribuidor de beleza, de criador de canções fracturadas a criador de canções perfeitas.

Não há exagero no adjectivo "perfeito", porventura o termo o mais usado para descrever o disco de há dois anos, "Sometimes I Wish We Were an Eagle": assente em delicados dedilhados de guitarra, elegantemente ornado com cordas com a subtileza de um espião e a candura de uma virgem, o álbum mostrava um Callahan muito longe daquele que durante anos parecia propositadamente sabotar as suas canções - um Callahan cujos processos mentais pareciam tão labirínticos quanto um processo num tribunal português.

A unanimidade em redor do disco foi de tal ordem que se previu o pior: que a recém-descoberta beleza acabasse por redundar em lamechice sebosa, que o cuidado com os arranjos se tornasse em novo-riquismo de produção, que o abandono de uma visão verrinosa do mundo o aproximasse de uma qualquer teologia new age.

Muito possivelmente, Callahan estaria consciente dos receios da sua cada vez mais crescente legião de fãs quando resolveu chamar ao seu mais recente disco "Apocalypse": era como que um sinal a dizer "Calma, amigos, ainda não sou feliz, está tudo bem". "Há um pouco de humor na escolha do título, tenho de admitir", diz ele, ao telefone desde Houston - e podíamos jurar que há um tom de garoto maroto na voz.

O apocalipse não se refere a nenhuma revolução sonora, a nenhum regresso ao ruído de outrora: "Apocalypse" é antes o tipo de disco que já não se faz, em que um grande compositor junta uma data de amigos, põe o gravador a funcionar e dispara em todas as direcções, varrendo o folclore mais obscuro da música americana - em mais uma demonstração inequívoca do conhecimento musical de Callahan. É um disco mais difícil do que o anterior, composto por sete longas canções em que a banda vai por ali fora, como se os instrumentos - flautas, violinos et al - andassem a brincar às escondidas. Abre com uma canção de dois acordes, há momentos mais pastorais, outros mais bluesy, e aqui e ali vai-se à soul. À parte a minuciosa construção de cada canção e a gestão dos tempos e das tensões (cada vez mais lapidar), essa presença soul é a grande surpresa de "Apocalypse": Bill Callahan, homem branco, tímido e cerebral, fez um disco com leves indícios de paixão pela soul.

Aventamos a hipótese de nada disto ser verdade mas apenas loucura nossa. "Não, não está louco", diz, rindo-se. O homem ri-se, o que vai contra todas as descrições que alguma vez lemos - e faz -nos pensar pela enésima vez que nunca se deve confiar na imprensa. "Andei a ouvir muito os discos do Curtis Mayfield, é muito possível que de alguma forma eles tenham acabado por entrar neste disco", explica. Faz uma pequena pausa e continua: "Gosto muito desse período dos anos 70 em que os discos eram muito eclécticos e as influências surgiam no som por todo o lado. Os discos soul podiam ser psicadélicos, cabia tudo lá dentro".

Como nesses discos dos anos 70, há uma peça política, chamada "America", em que Callahan - que, ao contrário dos seus compatriotas, sempre disse não ter paciência para o fado choradinho do "gostam mais de mim na Europa do que nos EUA" - olha com um sarcasmo implacável para o seu país: "America, I watched David Letterman in Australia / oh America you are so grand and golden", canta ele, antes de a faixa afunkalhar um pouco.

Demora-se à conversa nessa coisa de ser americano, no que ser americano representa hoje para ele, e as suas palavras ecoam JFK: "Neste momento sinto que a minha relação com a América mudou. Antes achava que a América tinha de tomar conta de mim, agora sinto que tenho de tomar conta dela. Sinto que a América está a afundar-se um pouco, como um cão que tivesse sido vibrante e orgulhoso, mas que envelheceu e agora está deitado o tempo todo".

Um clássico

"America", esclarece, "não é a peça central do disco", mas "ser americano é sem dúvida uma parte essencial" de "Apocalypse", um álbum sobre "o ego e a percepção que temos dele, os papéis que desempenha". Callahan, que supostamente detesta analisar as suas canções, guia-nos pelo disco faixa a faixa: "Há um movimento no disco, se reparares bem. "Drover", a primeira canção, é exclusivamente sobre o ego. "Baby"s breath", a segunda, é sobre o ego e "o outro". "America", a terceira, é sobre o ego e pertencer a um país. Há um sair para o mundo à medida que se passa de canção em canção".

"Baby"s breath", em que um homem olha para o seu jardim e diz "It was not a weed / it was a flower", parece ser alvo de um particular amor da parte de Callahan. "É uma espécie de carta de amor a alguém com quem se está casado há muito tempo. Quando chegamos ao ponto de poder ver os defeitos e aceitá-los, ama-se mais".

Que relação há entre este homem e aquele que cantava, como a encarnação viva do ressabiamento, "I"m gonna get so drunk at your wedding" ou, como a encarnação morta da perversão, "Dress sexy at my funeral"?

Callahan admite que há canções suas "que aparentemente nada têm em comum mas que se ligam". Essa ligação dá pelo nome "paradoxo". "O paradoxo é a maior das verdades e é o que mais me interessa: duas coisas poderem ser opostas e verdadeiras ao mesmo tempo. Sempre que encontro um paradoxo, isso encontra um lugar dentro de mim".

Tudo isto é dito num tom quase de menino: a voz doce, cada sílaba colocada, aqui e ali uma ligeira paragem no discurso à procura da palavra exacta. Durante anos lemos descrições tenebrosas sobre a total incapacidade de empatia entre Callahan e a imprensa, coisa de respostas monossilábicas, a raiar a má-educação. Mas o que nos surge é antes um homem que gosta de pensar antes de falar, que procura ser preciso - e que depois de ficar à vontade é capaz de dizer boutades como "neste disco tentei aqui e ali fazer de conta que era o James Brown, mas não se pode imitá-lo muitas vezes porque se não o espírito dele volta à terra e dá-nos um pontapé no rabo".

Isto é Callahan já liberto, a brincar com a ideia de agora estar mais solto com a voz e a arriscar mais. E o que se segue é Callahan transparente, a fazer uma confissão que deixaria os mais acérrimos defensores da sua fase lo-fi à beira de uma apoplexia: "Não me sentiria minimamente ofendido se alguém, depois de ouvir este disco, me chamasse compositor clássico. Não sei se faria muitos amigos [na Tin Pan Alley, mítica empresa de escrita de canções], mas para ser honesto acho uma afirmação dessas um elogio. As minhas canções tendem a ser muito fracturadas. Isso não me é difícil de fazer. Mas compor uma canção com princípio, meio e fim, ser-se bom numa forma clássica, isso é muito mais difícil".

Ser bom de uma forma clássica parece ser a demanda de Callahan desde que abandonou o nome Smog e começou a assinar em nome próprio. Uma procura que parecia ter acabado com a absoluta unanimidade em torno de "Sometimes I Wish We Were an Eagle", álbum de tal forma bem recebido que deixava no ar uma questão: que podia Callahan fazer depois de disco assim?

Para Callahan não existem noites em branco a pensar no futuro criativo. As respostas simplesmente surgem: "Eu limito-me a fazer". No caso de "Apocalypse", a chave para veio dos concertos de promoção a "Sometimes I Wish We Were an Eagle". "O último disco era muito orquestrado e quando o levei em digressão notei que os arranjos faziam muito parte das canções. As canções perdiam muito sem as cordas - mas, como nunca toco um disco na íntegra, não fazia sentido andar com violinos e violoncelos atrás só para tocar três ou quatro canções. Por isso agora queria um disco que pudesse ser transposto para a digressão sem que as canções perdessem com a mudança de formato. Não há nada de mágico nisto".

A verdade está na música

Que Callahan minimize o acto criador é o que esperamos dele. Chega a dizer que "qualquer pessoa oferece ao mundo o que tem a oferecer", isto com a voz macerada de quem, mais do que fingir humildade, aprendeu da forma mais difícil os custos da arrogância. "Todos os meus amigos têm algo só deles e que eu não consigo oferecer aos outros. O que sinto é uma espécie de gratidão por ter descoberto o que queria fazer e poder viver disso. Isso é que ainda me espanta todos os dias - ainda penso "Não era suposto eu poder fazer isto". Sinto-me como um garoto que roubou um doce e se safou sem castigo".

Mas depois, e como amante de paradoxos que é, o mesmo tipo que diminui o acto criador põe num altar o acto de tocar ao vivo - coisa estranha em quem, nos concertos, não troca mais de duas palavras com o público e que, sejamos sinceros, à excepção de uma patética imitação de Elvis que tende a fazer de vez em quando, não dança.

"Não acho que haja uma gratificação narcísica em estar no palco. Só tentar tocar direito e cantar ao mesmo tempo ocupa 90 por cento do espaço mental. Não dá para pensar em mais nada. Se eu pudesse esconder a cara escondia, mas aí ia falar-se mais disso, por isso o melhor é eu simplesmente aparecer e cantar. Se quer que eu seja absolutamente honesto, a razão por que actuo é simples: acredito que um concerto pode ser um acontecimento transcendente".

(Neste exacto instante começamos a ter medo: imaginamos Callahan de camisa púrpura, sandálias, ganza na mão, a citar um qualquer guru da meditação. Mas não, nada disso.)

"Quando estamos num palco estamos na mesma situação em que o James Brown esteve. Estamos no mesmo espaço mental. Pertencemos todos ao mesmo mundo. Somos todos pessoas que fazem esta coisa e, de cada vez que pegamos num instrumento, ressuscitamos de novo o espírito da música".

Em todas estas afirmações ecoa uma serenidade quase zen (ao fim e ao cabo ele é um leitor de Salinger). Podíamos jurar que há uma dezena de anos a simples menção da palavra "serenidade" valer-nos-ia um desligar do telefone na cara. Mas hoje não, ele não tem problema nenhum em raciocinar sobre o assunto: "Bem, nos últimos tempos, desde há quatro ou cinco discos, tento chegar nas canções a uma verdade que não se relacione com a minha vida ou a vida diária. Uma qualquer verdade universal. As minhas actividades diárias não chegam para as minhas canções e eu não sou muito interessante".

Isto é uma coisa estranha: um tipo avisado como Callahan a usar a palavra "verdade". Resquícios do antigo herético? "Para ser sincero", diz (e pela primeira vez parece genuinamente atrapalhado), "eu detesto a palavra "verdade" e sinto que sou a pessoa menos qualificada para falar de "verdade". Uso-a por falta de solução. E quando a uso sinto-me o maior dos mentirosos".

Faz uma das suas inúmeras pausas. É sempre difícil perceber se já acabou de falar ou se está a parar para pensar e vai voltar à carga. No caso estava a ruminar sobre o assunto: "Talvez seja uma intuição, qualquer coisa que não possa ser dita na nossa existência diária e só faça sentido em canção. Talvez seja por isso que as pessoas gostam de música: a música fala uma língua que não existe numa conversa".

Ver crítica de discos na pág. 34 e segs.

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