Mahler, cem anos depois

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Se o terceiro andamento da Décima Sinfonia, o brevíssimo "Purgatorio", terá sido o último que Mahler completou, então o profetismo é ainda mais perturbante. 0 "purgatório" enquanto compositor foi bem longo de 50 anos. Foi no entanto o disco que resgatou Mahler: veio então a "Ressurreição".

"O meu tempo virá" - Gustav Mahler

Depois de décadas de escuta assídua e de dezenas de milhares de discos ouvidos, continuo a pensar que na história da gravação sonora não há nada de mais comovente que o final do último andamento de "Das Lied von der Erde

A Canção da Terra" de Mahler, e sobretudo o verso final "Ewig...ewig.../ Eternamente...eternamente...", cantado por Kathleen Ferrier, sob a direcção de Bruno Walter.

Essa nem será globalmente a gravação da obra que mais destacaria: prefiro a de Klemperer, com Christa Ludwig e Fritz Wunderlich e a de Fritz Reiner, com Maureen Forrester e Richard Lewis. Mas há na interpretação de Ferrier uma intensidade e uma comoção absolutamente únicas - e como Mahler dizia a sua música era "vivida".

A história interpretativa de Gustav Mahler (1860-1911) é caso singular. Maestro de grande reputação, que poderia ser hoje considerado de "objectivo" pelo seu respeito escrupuloso pela letra das partituras, pode ser considerado, como nenhum outro, um compositor "subjectivo", que foi construindo uma espécie de "autobiografia" musical, com um sentido ímpar da "narração", como enfatiza Boulez, "música definida como romance" escreveu Adorno, convicto de que "a sinfonia deve abraçar o mundo".

"Ó Viena, cidade dos meus sonhos!" exclamou ele. Ficou lendária a sua década como director da Ópera de Viena, 1897-1907. Todavia nem só uma das suas sinfonias foi estreada na capital do Império Austro-Húngaro, e de resto só três, as mais monumentais, as Segunda, Terceira e sobretudo a Oitava, foram aclamadas. "Sou três vezes apátrida! Enquanto nativo da Boémia na Áustria, enquanto austríaco na Alemanha e enquanto judeu em todo o mundo", assim se definia.

Se o terceiro andamento da Décima Sinfonia, o brevíssimo "Purgatorio", terá sido o último que Mahler completou, então o profetismo é ainda mais perturbante. Apesar de Willem Mengelberg o ter convidado para Amesterdão e ter feito da Concertgebow a primeira orquestra de tradição mahleriana, da dedicação sobretudo os discípulos directos Bruno Walter e Otto Klemperer, ou ainda Charles Adler, Jascha Horenstein, Fritz Reiner, Dimitri Mitropoulos ou o modernista Herman Scherchen, o "purgatório" de Mahler enquanto compositor foi bem longo de cinquenta anos.

Mengelberg organizou em 1920 em Amesterdão o primeiro Festival Mahler, com a integral das sinfonias, mas sobretudo houve resistências ou até desprezo. Mesmo o discípulo mais próximo, Bruno Walter, que estreou postumamente "A Canção da Terra" e a Nona Sinfonia, sempre recusou dirigir a Sexta.

A invenção e sobretudo a consolidação do registo fonográfico ocorreu em simultâneo com o colapso, nas duas primeiras décadas do século XX, da tonalidade funcional em que assentara a música erudita europeia durante três séculos. O disco contribuiu assim decisivamente para a constituição de um reportório canónico, feito de obras do passado. Caso raro, e em particular credor de reflexão, foi no entanto o disco, já na era do "long playing" e da estereofonia, que resgatou Mahler e lhe construiu a "aura": depois desses 50 anos de purgatório veio então a "Ressurreição" - e "Ressurreição" se designa a Segunda Sinfonia de Mahler.

Hoje até podemos possuir os rolos de piano mecânico "Welte Mignon" que Mahler registou em 1905, e que de resto têm opções surpreendentes. Podemos mesmo traçar toda uma história interpretativa do compositor. Se muito do que gravaram os pioneiros permanece do maior relevo, a história da "ressurreição" fez-se com as integrais dos anos 60.

Quando deixou a Ópera de Viena, Mahler partiu para os EUA, onde durante dois anos dirigiu o Met, passando depois para maestro director da recém-criada Filarmónica de Nova Iorque, mas quem implantou a tradição mahleriana naquela orquestra foi sim Mitropoulos, que aliás morreu de um ataque fulminante durante ensaios da Terceira Sinfonia, em 1957. Pierre Boulez, que depois de Mitropoulos e de Leonard Bernstein, foi o terceiro eminente mahleriano consecutivo a dirigir aquela Filarmónica, relatou: "Lembro-me do antigo primeiro trompista da Filarmónica de Nova Iorque, que contava que nos anos 50, na época em que Dimitri Mitropoulos era o director da orquestra, bastava que se apresentasse uma sinfonia de Mahler para que a sala se esvaziasse desde o primeiro andamento, e a hemorragia não parava até ao fim do concerto".

Por um acaso incrível, Bernstein dirigiu pela primeira vez a Filarmónica de Nova Iorque, em 1943, substituindo à última hora Bruno Walter. Quatro anos depois começou a dirigir regularmente Mahler e foi de facto quando foi nomeado para suceder a Mitropoulos que a recepção de Mahler se começou a alterar.

A "Ressurreição", o "Mahler revival", ocorreu então nos anos 60, inclusive com as diversas editoras disputando-se, cada uma delas com uma integral, a de Bernstein (CBS, hoje Sony), Georg Solti (Decca), Bernard Haitink (Philips) e Rafael Kubelik (Deutsche Grammophon). Ao longo das décadas sucessivas continuaram a haver novas integrais e numerosíssimas outras gravações, têm sido editadas outras conservadas nos arquivos radiofónicos, tanto que o guia de referência, "Mahler Discography" de Peter Fülöp, regista mais de 2.500!

Também em Portugal houve uma integral, com a então Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, em 1972-74. Mas houve ainda outro facto: em Maio de 72, Luciano Berio dirigiu na Gulbenkian a sua "Sinfonia". O extraordinário terceiro andamento é uma "viagem a bordo" do "Scherzo" da Segunda Sinfonia de Mahler. É também uma homenagem a Bernstein e a uma particular interpretação sua daquela sinfonia, com Jennie Tourel e Lee Venora. Em paralelo há um disco. Foi o meu primeiro LP de Mahler, e depois não mais parei na minha dedicação - estou seguro que é o compositor sobre o qual mais escrevi.

Depois da integral das Sinfonias com várias orquestras quando de Lisboa-94, Capital Cultural Europeia, está-se agora noutra situação mahleriana, com os 150 do nascimento e sobretudo os 100 anos da morte. Um momento muito alto ocorreu este fim-de-semana na Gulbenkian, com Thomas Hampson e a Orquesta Juvenil Gustav Mahler sob a direcção de Philippe Jordan.

Foi sob a égide de Mahler que Claudio Abbado fundou em 1986 uma orquestra reunindo jovens de Oeste e de Leste, numa Europa ainda dividida. O patamar de excelência desta orquestra, em que os membros vão mudando todos os anos, é deveras espantoso. Já tive a felicidade de lhes ouvir grandes concertos, mas escutar Mahler pelos Mahler é sempre uma emoção muito particular.

O barítono americano Thomas Hampson foi um "protegido" de Bernstein, mormente gravando os ciclos de canções de Mahler. É também um "scholar": a ele, e a Renate Hilmar-Voit, se deve a edição crítica para voz e piano das canções da colectânea "Des Knaben Wunderhorn" - de resto, tem também um disco com canções baseadas na colectânea de poemas populares coligidos por Achim von Arnim e Clemens Brentano, não só de Mahler mas também de Weber, Schumann, Mendelssohn, Brahms, Loewe, Strauss, Schönberg e Zemlinsky.

Em 1995, 75 anos depois da integral das sinfonias dirigida por Mengelberg, houve um novo Festival Mahler em Amesterdão, desta vez também com as canções. Foi extraordinário ouvir em poucos dias as três maiores orquestras europeias, a Concertgebow e as Filarmónicas de Berlim e Viena, e maestros como Haitink, Abbado, Chailly ou Rattle. No entanto uma das minhas mais fortes memórias foram os recitais com Hampson.

No concerto de sábado na Gulbenkian o barítono foi assombroso em seis canções de "Des Knaben", mais outra em extra, "Wer hat dies Liedlein erdacht?", sublime mesmo na segunda parte da primeira estrofe de "Ging"heut morgen übers Feld", com as exclamações de "O mundo está a tornar-se belo" e "Como me agrada o mundo". Foi muitíssimo bem acompanhado, com Jordan a definir muito bem os planos e os ataques, e admiráveis contributos dos sopros, como a trompa com surdina ou o clarinete.

Todavia a direcção de Jordan pareceu-me algo brusca, na Sinfonia nº1, bem como, no dia seguinte, no "Adagio" da Décima. Mas as atenções no domingo estavam voltadas para "A Canção da Terra", na versão com barítono e não "mezzo" ou contralto. Há sempre um contraste de cores que se perde, e exceptuando Fischer-Dieskau com Bernstein, não conhecia até agora uma interpretação convincente - e estou a incluir Hampson nas suas duas gravações da obra e, em concerto, no festival de Amesterdão.

Eis que o milagre sucedeu. Apesar de um tenor pouco subtil, Burkhard Fritz, e de alguma desatenção de Jordan, ocasionalmente deixando a orquestra tapar as vozes, Hampson confirmou-se como o maior cantor mahleriano da actualidade, por vezes forçando um pouco a voz é certo, no 2º andamento, mas resplandescente na parte central do 4º, e absolutamente sublime na "Despedida" final - "Eternamente...Eternamente...".

Foi um momento grande da história interpretativa de Mahler em Portugal, memorável.

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