Dez anos a comer Soopa
Começou como um grupo de improvisação, mas transformou-se num organismo onde cabem múltiplos projectos - do dub a uma fanfarra de música popular improvisada. Em dez anos, a Soopa ajudou a pôr o Porto no roteiro experimental. Pedro Rios
"Há aquela história dos seis graus de separação: nós vamos queimando esses graus". Os dez anos de história da Soopa confirmam a teoria de Filipe Silva: gente tão diferente como José Cid e Adolfo Luxúria Canibal já colaboraram com os múltiplos projectos de Filipe e Jonathan Saldanha, os dois membros do colectivo.
A diversidade tem uma explicação: "a forma não é o assunto", diz Jonathan, num documentário sobre o colectivo, exibido há duas semanas no Maus Hábitos, no Porto, na noite do décimo aniversário da Soopa. A noite festiva demonstrou isso mesmo: houve objectos e pratos de bateria tocados com arcos de violinos (Most People Have Been Trained to Be Bored), dub negro em progressão lenta com sopros diabólicos (HHY & The Macumbas) e a música popular portuguesa em regime avant-garde da F.R.I.C.S. (Fanfarra Recreativa Improvisada Colher de Sopa) com um convidado especial, o músico-xamã Arrington de Dionyso. Uma amostra do que, como músicos ou promotores de concertos, os Soopa fizeram, sobretudo no Porto: dezenas e dezenas de concertos e uns quantos discos pelo meio que ajudaram a pôr a cidade no mapa da música exploratória mundial.
"O que nos interessa é uma certa intenção, uma busca, uma ideia de arrebatamento psicadélico, algo que sentes que é muito grande e que se está a manifestar através daqueles sons. A forma não nos preocupa muito", concretiza Filipe. "As formas são formas, são maneiras de concretizar uma intenção que é universal. Um concerto da F.R.I.C.S. ou de baixos quase no limite do subgrave têm a mesma intenção de impacto do som sobre o corpo, sobre a psique".
A aventura enquanto Soopa começou oficialmente em 2001, mas a ligação de Jonathan e Filipe começou algures em 1998, no Porto. Filipe, que estudava audiovisual, começou a fazer aquilo a que chama "experimentalismo inocente" aos 13 anos, com bandas. "Cheguei às mesmas conclusões que outras pessoas também chegaram. Usávamos brinquedos, "samples" em cassetes, fazíamos colagens. É aquela idade em que se pensa que somos os únicos a fazê-lo", conta. Depois, passou para o rock mais hipnótico (Velvet Underground à cabeça) e, quando conheceu Jonathan, estudante de Escultura, e soube que ele fazia parte de um "ensemble" de música clássica indiana, quis logo trabalhar com ele.
Algumas das sessões de improvisação desses tempos - com Jonathan na tabla, Ex-peão dos Dealema na voz e Filipe na guitarra mergulhada em delay - já "prenunciavam a Soopa de agora", conta Filipe. Ainda assim, Jonathan e Filipe estavam longe de imaginar o que se seguiria: concertos de duas horas com Steve Mackay, saxofonista no infernal "Fun House" dos Stooges; uma "big band" experimental com José Cid e Manel Cruz (ex-Ornatos Violeta); um concerto com Arthur Doyle, lenda free jazz; a F.R.I.C.S. com José Mário Branco na "okupa" Casa Viva; a organização de um concerto de cantos Hare Krishna no Passos Manuel (Filipe: "o auge da nossa carreira"); e outros eventos de múltiplos géneros. Definitivamente, a forma não é o assunto.
O noise e a Páscoa
O que é, então, a Soopa? De um grupo de improvisação passou a algo muito maior. "A ideia foi-se expandindo até se transformar em algo mais cósmico, no sentido de inclusivo, de algo que contém em si muita coisa. Não é um colectivo de improvisação. Tornou-se uma coisa que se manifesta de várias formas: é uma editora discográfica, tem um trabalho de organização de concertos, que começou aqui nos Maus Hábitos, tentando criar uma rede de música exploratória internacional que passasse pelo Porto...", adianta Filipe.A ideia expandiu-se ao ponto de Filipe, Jonathan e alguns dos cúmplices habituais da Soopa formarem F.R.I.C.S., uma (espécie de) fanfarra, aparentemente a quilómetros de distância dos códigos e práticas comuns da música experimental. A fanfarra "surgiu de um certo desencanto com a exclusividade da ideia do experimental", explica Filipe Silva. "Não nos interessa fazer só "beats", "drones" e "noise". Para ser experimental, a música tinha de ser distópica, pouco comunicativa - ficámos bastante frustrados com isso. Com o passar do tempo, pensámos em fazer algo popular, não no sentido de vender mais discos, mas de comunicar", afirma. Nada de novo, no fundo: "A música foi, desde sempre, uma forma de comunicar - com os deuses, com as outras pessoas".
"A F.R.I.C.S. surgiu como um projecto de experiência: os mesmos músicos que faziam "ensembles" infernais de duas horas com Steve Mackay ou o Massimo [Pupillo], dos Zu [italianos que misturam jazz, metal e noise], iam tocar com camisas coloridas, em coretos", explica Jonathan. Mantinha-se a "violência" e a deriva improvisadora (as peças começam num tom de fanfarra, mas rapidamente se transformam em coisa livre, tão próxima de Sun Ra como do grupo musical da terrinha), mas o público era outro: "De repente, tínhamos uma equipa de velhotes a ver-nos porque estávamos a usar instrumentos que eles conheciam - o bombardino, o trombone...".
Jonathan lembra-se de um concerto na Via Sacra, no dia de Páscoa, em Braga, em que um grupo de senhoras seguiu a pé a F.R.I.C.S., acreditando que se tratava do Compasso. "Este tipo de engano e de sugestão agrada-nos muito. Queremos testar as coisas e também aliviar-nos. O que tocamos comunica com aquelas pessoas que não têm nenhum "background" de [John] Cage ou John Zorn. Isso deu-nos um alívio: não tens de vir de um contexto de música violenta para ouvir certas coisas".