A arte portuguesa ainda não descobriu o fim do Império
Como vão as relações da arte portuguesa com o passado colonial de Portugal? "Carlos Cardoso - directo ao assunto", a exposição de Ângela Ferreira na Galeria Filomena Soares, reaviva uma velha discussão muito bem-vinda numa altura em que o país suspira de novo pela sua Europa. José Marmeleira
Ângela Ferreira (Maputo, 1958) tem na Galeria Filomena Soares uma exposição magnífica que retoma a reflexão sobre o colonialismo e o pós-colonialismo iniciada pela artista no final dos anos 80. Cinco esculturas, uma instalação, duas fotografias e uma imagem e um texto reproduzidos de um jornal sul-africano fazem a ponte aérea entre Portugal e Moçambique (onde nasceu), África e a Europa.
"Carlos Cardoso - directo ao assunto" centra-se na figura do homem que lhe dá o título, jornalista moçambicano assassinado há 11 anos na cidade de Maputo em circunstâncias misteriosas (investigava os negócios da banca moçambicana e um caso de corrupção). Foi a sua biografia que suscitou as obras que ocupam a sala principal da galeria lisboeta. "Ele era um mito já em vida, um homem extremamente activo, com um papel muito importante, simbólica e politicamente. Nunca o conheci pessoalmente, mas lembro-me do choque quando soube do assassinato", conta a artista. O clique aconteceu no final do ano passado, na África do Sul. "Li um artigo que fazia dele um retrato muito complexo. Eu conhecia o jornalista militante, activista político, defensor dos direitos humano e da liberdade de imprensa. Mas não o artista plástico, poeta, pai, actor de peças radiofónicas. [Percebi que era] uma pessoa muito inventiva e criativa. E nesse momento assustei-me. Moçambique é um país pequeno em termos de produção cultural, com poucos recursos humanos. Tinha de fazer qualquer coisa".
Fez. Apropriou-se do texto assinado pela repórter Julie Frederikse para o semanário sul-africano "Mail & Guardian" e colocou-o na parede para que todos o possam ler. "Gostei muito da sensibilidade com que ela trabalhou a figura do Carlos Cardoso. E achei muito interessante a escolha da fotografia para ilustrar o artigo. Normalmente, os activistas políticos não são representados assim, de tronco nu". Da vulnerabilidade de Carlos Cardoso (segura o filho nos braços) chegamos à sua inventividade. As cinco esculturas remetem para o "mediaFAX", o diário fundado em 1992 pelo jornalista e um grupo de intelectuais moçambicanos para difundir notícias e artigos. A escolha do meio de difusão não era inocente: a ideia era tornear a censura do Governo de Maputo e fazer chegar um jornalismo analítico e de investigação a um público interessado. "Por vezes, em situações de grande dureza e dificuldade, as pessoas conseguem resolver problemas de uma forma extremamente inventiva. Ele foi uma dessas pessoas. Foi vítima da censura do partido que apoiava, mas continuou a fazer notícias. E deu a volta ao problema, tocando numa nervura muito importante, que é a disseminação da informação através do fax [com o "mediaFAX"] e do e-mail [anos depois com a criação de um novo diário, o "Metical"]".
Entre África e a Europa
No chão da Galeria Filomena Soares há rolos e papel em cujas superfícies é possível ler, serigrafadas, as primeiras páginas de algumas edições do "mediaFAX". Transformados em esculturas, os objectos partilham a exposição com uma miniatura de uma torre de rádio encimada por um megafone. Ouve-se a voz de Carlos Cardoso, qual fantasma, na locução de duas peças radiofónicas, uma sobre a escravatura, a outra sobre os interrogatórios da PIDE. E, numa parede, vemos uma fotografia do local onde foi assinado, que assinala o monumento entretanto erigido em sua memória.Ângela Ferreira traz as múltiplas identidades de Carlos Cardoso (que, recordamos, também foi um artista, um pintor) ao espaço público da arte (e quem sabe a outros espaços públicos), confrontando o espectador com os limites e as possibilidades da liberdade de expressão, a história política de um país e a energia que aproxima a criação artística do activismo. Pode, deve a arte estimular confrontos assim? "A arte será o que os artistas quiserem," responde. "Para mim, continua a ser uma forma de pensar, de despoletar pensamentos. Se calhar a questão central do meu trabalho ("Qual é a relação entre África e a Europa?") ainda vale, talvez por razões autobiográficas. E encontra-se subliminarmente neste trabalho sobre o Carlos Cardoso. Mas o ponto de partida continua a ser a ideia, o pensamento. Há uma hibridez em termos de metodologia".
A artista não está sozinha na abordagem aos temas e aos traumas do colonialismo e do pós-colonialis. Também Francisco Vidal, Vasco Araújo (com "Debret", patente no ano passado no Museu da Cidade, por exemplo) e Manuel Botelho (com fotografia e desenho em torno da Guerra Colonial) têm trabalhado em cima dessa história recente. Ou os artistas angolanos Yonamine e Kiluanje Kia Henda. Em projectos com vários anos, sobre as identidades cultuais ou a memória, Mónica de Miranda e José Maia (que comissaria na Galeria Quadrum uma mostra subordinada às migrações). Há ainda o caso singular de Daniel Barroca e, a caminho do cinema, com motivações e fins distintos, Gabriel Abrantes, Catarina Simão e Filipa César (que apresentou recentemente, em Berlim, um trabalho sobre a influência de Amílcar Cabral na cultura cinemática da Guiné-Bissau). Finalmente, na sala escura, a luz dos filmes de Pedro Costa e os documentários de Kiluanje Liberdade. E não é de somenos lembrar o labor de Marta Lança e Marta Mestre no projecto on-line de divulgação da cultura africana contemporânea "Buala").
Fomos colonizadores
O panorama parece amplo e plural, mas Fernandes Dias, antropólogo, professor na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e director do África.cont, revela um cepticismo moderado. "Têm surgido coisas interessantes na literatura e no cinema, mas o mundo da arte portuguesa continua a entender o colonialismo e o pós-colonialismo como assuntos difíceis. Continua preocupado em manter a autonomia da arte. Sempre foi muito difícil abordar na arte contemporânea portuguesa temas que tivessem a ver com identidades de género, sexuais, raciais ou o feminismo. Não fazem parte do nosso "mainstream"".As razões dessa teimosa timidez devem ser procuradas na História de Portugal da segunda metade do século XX, argumenta o investigador: "Perdido o Império, virámo-nos para a Europa, procurando uma filiação ou pertença. Isso impediu-nos de pensar que o que nós somos é inseparável da nossa história colonial". E aponta mais dois factores: "A descolonização foi feita a par da democratização em Portugal. Ao mesmo tempo que nos libertávamos, também as ex-colónias o faziam. Fomos como que cúmplices. Resolveu-se não discutir esse período. O outro factor tem a ver com a ausência de um olhar mais reflexivo sobre a história colonial e pós-colonial, provocado pela leitura pouco crítica que a esquerda portuguesa fez a seguir ao 25 de Abril do luso-tropicalismo do Gilberto Freyre".
Só no fim dos anos 90, diz Fernandes Dias, as coisas se alteraram um pouco na arte portuguesa, e precisamente com o aparecimento de Ângela Ferreira: "É caso muito excepcional. Nasce em Moçambique, faz-se adulta na África do Sul num ambiente hiper-politizado do qual esteve muito próxima e que lhe dá uma consciência política que não teria se tivesse vivido sempre em Moçambique. Dada a sua biografia, pode falar a partir de várias posições. Enquanto portuguesa de Portugal, como acontece no "Amnésia" [instalação de 1997 que reunia porcelanas de Rafael Baordalo Pinheiro, um vídeo com imagens de Moçambique dos anos 60 e 70, e mobília familiar], ou como moçambicana, neste trabalho na Filomena Soares. Aborda o racismo em "Double Sided" [1996-1997]. E, de forma mais genérica, a colonização europeia em "Maison Tropicale" [2007]".
Actualmente, a obra de Ângela Ferreira está representada nas principais colecções nacionais e circula internacionalmente. "Maison Tropicale" chegou a ser objecto de um artigo na americana "October" ("Maison Tropicale: A Conversation with Manthia Diawara") uma das mais prestigiadas publicações de ensaios de arte. "Mas ainda não é considerada sexy ", contrapõe numa gargalhada a artista, antes de admitir: "Tenho sido uma privilegiada. Tive a sorte de estar na Bienal de Veneza, em 2007, e tive alguma aceitação internacional. O que fez com que algumas pessoas no meio nacional olhassem de outra forma para o meu trabalho, que com o tempo foi ganhando força e consistência".
A relação da arte portuguesa com o fim do Império, diz-nos, avançou "imenso desde os anos 90, mas ainda há muito a fazer": "Não temos um discurso pós-colonial. Temos poucas pessoas a pensar isso e não há grandes diálogos. Mas devíamos ter esse discurso, para não termos a necessidade de o importar. Portugal foi um país colonizador".