"Que gritassem, pelo menos que gritassem"Na primeira pessoa
Manuel Rocha é director do Conservatório de Coimbra, músico na Brigada Victor Jara, militante activo do PCP e candidato a deputado, mas da última vez que apareceu nos jornais foi por ter sido espancado. Coisas que fazem pensar, como explica, na primeira pessoa
Desde que se me partiu uma perna que passei a ver as coisas de outra maneira. Não por causa da perna, mas do que soube depois. Começou no hospital. Veio um amigo e contou uma história, outro e fez uma confidência, depois veio um conhecido e falou-me do assunto, a seguir um colega e até um médico - cada um com um caso novo, uma perspectiva diferente. De tal forma que, agora, quando começo a falar disto, vejo que preciso de um discurso também ele novo, que enforme o que descobri, que me ajude a localizar as novas realidades que estavam aí e eu não via.
Pronto. Gosto de pensar alto, do vaivém do raciocínio no diálogo com os outros, e era importante dizer isto - que há um antes e um depois, mas que o depois não tem propriamente a ver com o que aconteceu naquela noite. Bandidos são bandidos, só isso, bandidos. Foi isso que eu disse, escrevi e repeti nos dias a seguir àquela noite, foi isso que eu disse ao meu filho no dia seguinte e é isso que eu digo agora.
Vamos, então, aos factos. Fui à Estação de Coimbra B buscar um amigo, um maestro mexicano, que vinha de Lisboa, seriam umas 22h00 do dia 24 de Janeiro, uma segunda-feira. Parei o carro mesmo em frente à estação da CP, junto dos táxis. Quando voltávamos, um homem de 30, 40 anos, pediu-me lume. Disse-lhe que não fumava e ele mandou uma boca. Só me apercebi de que a coisa era mais séria depois de entrar no carro: ele colocou-se entre mim e a porta e impediu-me de a fechar.
Devo andar a ver filmes de mais: saí e cresci para ele, a protestar. Apanhei o primeiro pontapé. Dei-lhe um murro (nunca tinha dado um murro na minha vida) e, quando ele respondeu, caímos os dois, agarrados. Vieram outros. De repente, eram várias pessoas a bater-me, a pontapear-me. O primeiro pôs as mãos à volta do meu pescoço e tentou estrangular-me - uma sensação esquisita, muito esquisita.... Para me proteger virei-me de barriga para baixo. O resto foi o meu amigo que me contou: havia mulheres e crianças a bater-me e foi uma mulher que quebrou a minha perna. Agarrou-a com as duas mãos, torceu-a e quebrou-a: tlac!
De repente, tal como tinha começado, tudo parou. O meu amigo puxou-me, eu voltei para o carro (a porta continuava aberta), tranquei as portas e comecei à procura do telemóvel. Não o encontrei. Tinha caído, na confusão. Abri a janela e pedi às pessoas que chamassem a polícia. Tal como antes, ninguém chamou, ninguém fez seja o que for, ninguém disse nada. Os agressores continuavam ali - não fugiram, olhavam-me nos olhos, insolentes. O meu amigo pediu-me que arrancasse e foi o que eu fiz. Conduzi até ao hospital.
Costumo contar isto com umas brincadeiras pelo meio, para não parecer tão dramático. Mas foi. Um bocadinho. Por causa da violência gratuita, da brutalidade e da perna, claro - fui operado duas vezes e vou transportar durante cerca de um ano a régua e os sete parafusos que me endireitam o perónio. Mas, acreditem, também - e muito - por causa das pessoas que assistiram e não fizeram nada. Apresentei duas queixas contra desconhecidos, uma por agressão, outra por omissão de auxílio. As pessoas tinham razão para ter medo? Se calhar tinham. Mas que gritassem. Pelo menos, que gritassem.
Não disse que os agressores eram ciganos? Pensei que tinha dito. Ou que já sabiam. Não, não estou a omitir, não faço de propósito. Ou faço. Não sei. Quando o meu filho, de 14 anos, me foi ver ao hospital, eu disse-lhe que quem me atacou foram ciganos, mas frisei bem que não o fizeram por serem ciganos, mas por serem bandidos - e bandidos são bandidos, sejam ou não ciganos. Mas, ao mesmo tempo, sei que há coisas nesta agressão que são particulares: o ataque em grupo, o facto de participarem as mulheres e as crianças, o sentimento de impunidade... Quer dizer, não é normal os bandidos atacarem com crianças, quanto mais não seja para fugirem mais depressa; e também não é normal não fugirem.
Este é um tema complicado. Até que ponto levámos o politicamente correcto, que se tornou tão difícil assumirmos e dizermos publicamente que um bandido cigano deve ser reprimido sem piedade - nós, que o diríamos, sem pudor, se se tratasse de um bandido não cigano?
Devemos respeitar as questões culturais. Claro. Aqui, no Conservatório, temos crianças com determinadas religiões que, após o cair do sol de sexta-feira, não podem ter actividades lectivas e é sem qualquer hesitação que adaptamos os nossos horários. Os ciganos têm a tradição de estar perto do familiar que está no hospital? Muito bem, tiremos espaço à rua e criemos condições para a sua instalação temporária nas imediações.
Mas, por favor, não se admita que acampem nas rotundas dos hospitais. Se ninguém pode fazê-lo, por que podem eles? Não se aceite como sendo normal que, como me contou um médico, uma família de ciganos destrua a sala de espera das urgências porque, tal como acontece com todos os outros cidadãos, foi impedida de acompanhar a matriarca dentro do serviço.
Antes, a minha experiência com ciganos não era diferente da da maior parte das pessoas. Uma vez, fui júri de um concurso de dança, música e teatro, em que participavam crianças e jovens ciganos. Na plateia estava a família toda. E, de repente, colocou-se a questão: "Eles não vão ganhar e isto vai ser uma inquietação!" Depois, reflectimos, discutimos e chegámos à conclusão de que eles não poderiam dizer que não ganhavam por serem ciganos, porque tinham vencido no ano anterior. E, a verdade, é que não se passou nada. Por que é que isto é significativo, então? Porque a questão colocou-se, porque tivemos medo. O que é injusto para a maior parte da comunidade cigana que está integrada na sociedade e da qual, por isso mesmo, não damos conta nem tomamos como uma ameaça.
E, agora, sim, vamos ao que aprendi depois de se me ter partido a perna.
Aprendi - disse-mo uma cigana de terceira geração, uma mulher informada, que ocupa um cargo público, e também um amigo com responsabilidades políticas na área da integração social - que a tradição cigana é absolutamente repressora em relação às mulheres. Em muitas comunidades, quando entram na puberdade, as meninas continuam a ser tiradas das escolas, porque estão a cultivar-se, porque não vão ser ciganas a sério, não vão ser escravas, não vão ser miseráveis, não vão ser um repositório de filhos e, se calhar, vão querer casar por amor, o que é uma coisa terrível.
Aprendi que, em casos muito concretos, se verificou que as políticas de integração funcionaram apenas enquanto os homens estiveram na prisão. Ou seja, que as mulheres, que entretanto tinham recebido formação, tinham arranjado emprego e descoberto que podiam conduzir as suas vidas, voltaram a ser escravizadas, quando os maridos acabaram de cumprir as respectivas penas.
E nós assistimos a isto calados? Assinamos, aos milhares, as petições para salvar mulheres de todo o mundo e fechamos hipocritamente os olhos ao que se passa à nossa porta?
Foi isto que aprendi desde que se me partiu uma perna. Que o receio de sermos politicamente incorrectos alimenta a ideia de que esta etnia é uma espécie de salvo-conduto; que a preocupação de não sermos mal entendidos alimenta o crime e o silêncio medroso de todos nós, perante o crime cometido por bandidos ciganos; e que o chamado respeito pela cultura alheia é uma maneira de fecharmos os olhos à realidade incómoda das mulheres ciganas.
Aprendi que há uma questão cigana. E que devíamos falar dela. Todos nós. Sem esquecer os ciganos que, naturalmente, são os que mais sofrem por causa dos bandidos que são ciganos.
A partir de uma entrevista com Manuel Rocha