À saída de uma projecção de "48" a que assistimos chegou-nos ao ouvido o queixume de alguém que lamentava que o filme, sim senhor, tal e tal, mas podia ser "mais cinematográfico". A conversa não era connosco, se fosse teríamos retorquido que é justamente ao contrário: é por não ser "mais cinematográfico", no exacto sentido que a expressão pretende sugerir, que "48", sim senhor, tal e tal, é um filme notável. Era pedir-lhe que deixasse de ser o que é para ser uma coisa qualquer (por exemplo, cruzes canhoto, um programa de televisão. "cinematográfico" q.b.).
Toda a força de "48" vem da maneira como se encerra dentro do seu modelo, obstinando-se em não deixar entrar "ar" lá dentro. Um plano que fosse que só lá estivesse para descomprimir, para arejar, arruinava o filme. Fala-se de tortura, de situações de extrema violência física e psicológica. Nenhum filme, e nenhuma experiência fílmica, poderá alguma vez ser comparável (fora ocasionais forças de expressão) com uma sessão de tortura real. Mas não há razão para que o espectador que vai ver um filme onde se fala de tortura não possa estar totalmente disponível, sem precisar de pancadinhas nas costas. O filme não as dá - é a sua maneira de estar à altura, e de ajudar o espectador a estar à altura, do que nele se diz e se mostra.
É fácil descrevê-lo sumariamente. Faz-se apenas de fotografias ("mugshots") de pessoas que foram presas pela PIDE, enquanto na banda de som ouvimos o depoimento dessas mesmas pessoas quando, muitos anos depois, voltam a ter à frente as imagens dos seus rostos encarcerados. As fotografias correspondem a momento diferentes do seu tempo de prisão (meses, anos), e montadas em sequência criam uma espécie de "morphing" sem "morphing", como se cada rosto se fosse tornando numa versão alterada de si próprio. Os cientistas (ou "cientistas") do século XIX que se dedicaram ao estudo das tipologias fisionómicas podiam encontrar aqui uma categoria menos fantasiosa do que aquelas por que se interessaram: a fisionomia do preso político. E a banda de imagem de "48" podia servir-lhes de documentação para estudar o efeito que o encarceramento e a tortura operam sobre o rosto dos seres humanos.
Mas há também a banda de som, e é no trabalho sobre ela que "48" se perfaz plenamente como filme que, de facto, não é uma coisa qualquer. Há o interesse intrínseco dos depoimentos, claro, onde se aprende alguma coisa sobre a vida nas mãos da PIDE (e também sobre a tristeza que isto era cá fora), e se percebe, nos vários depoimentos femininos, a que ponto se praticava uma tortura "de género", em perfeita noção de que há maneiras específicas de fazer sofrer as mulheres que não se aplicam aos homens. Mas mais ainda, há uma extraordinária "mise en forme" desses depoimentos. Que conservam hesitações e silêncios, blocos sólidos de conversa (ou montados de forma a que o parecem) em vez de "momentos escolhidos". E não surgem "limpos", quer dizer, percebe-se que Susana de Sousa Dias não levou as pessoas para um estúdio para lhes gravar as palavras num ambiente de total isolamento sonoro. Pelo contrário, nenhum depoimento é impermeável aos ruidos do exterior: buzinadelas na rua, britadeiras, etc. Nunca é ostensivo, nunca se sobrepõe às vozes, mas esse ruido está lá. O que esse ruído é é simples de dizer: é a vida a penetrar no filme, a vida de todos os dias, nossa contemporânea. É a maneira de lá estarmos todos, todos os que podíamos ser os autores das buzinadelas captadas pelo microfone de Susana de Sousa Dias. Cansados de ler os proverbiais "colunistas de direita" semana sim semana não a lembrarem que nasceram depois do 25 de Abril como se isso os desimplicasse de alguma coisa, "48" é o filme da implicação absoluta, independentemente da data de nascimento. E fá-la (ou fala-a, sem a "dizer") apenas através de um minucioso trabalho sobre as suas formas e sobre os seus materiais. Se isto não é "mais cinematográfico", o que raio será.