Uma grande salada russa

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The Broken Jug Lucinao Rossetti/Phocus Agency

Ao fim de uma semana de espectáculos, vieram ao de cima os jogos políticos e económicos e o Prémio Europa voltou a ser questionado

Problemas de coordenação entre a organização italiana e os anfitriões russos, escolhas do júri questionadas e muitas discussões em torno das pressões políticas que norteiam o Prémio Europa. Tudo a vir ao de cima, depois de uma semana, em São Petersburgo, para a entrega da mais importante distinção de teatro europeu.

Sendo impossível perceber de que forma o evento tomou conta de uma cidade com mais de 200 museus, 100 teatros, duas mil livrarias, 50 galerias de arte e cerca de 100 festivais e competições, certo é que as sessões de espectáculos estiveram praticamente ocupadas pelos cerca de 400 profissionais que chegaram à cidade para celebrar o trabalho de encenadores como o alemão Peter Stein (Prémio Europa), que apresentou uma extraordinário encenação de The Broken Jug, de Kleist, feita pelo Berliner Ensemble, os russos Yuri Lyubimov (Prémio Especial do Júri), que mostrou por que é um dos mais inventivos encenadores europeus em Honey, a partir de um texto de Tonino Guerra, argumentista de Felinni, e Lev Dodin (Prémio Europa em 2000) que agora regressou para apresentar uma agreste e árida Três Irmãs, no Maly Drama Theater.

Para além disso, na categoria Novas Realidades Teatrais Europeias, a inglesa Katie Mitchell (que não apresentou espectáculos), os checos Farm in the Cave (os mais criticados pelas peças The Journey, compêndio do seu trabalho, e The Theatre, construção amadora de rituais paganísticos, os islandeses Vesturport Theatre, coqueluches do teatro britânico com leituras acrobáticas e vazias de conteúdo de Fausto, de Kafka, e Metamorfose, de Goethe, o finlandês Kristian Smeds, a adaptar, sem brilho, Mr. Vertigo, de Paul Auster, o russo Andrey Moguchiy, numa construção a partir de textos de Maeterlinck, a reforçar a ideia de um teatro russo consciente da palavra e do actor, e os portugueses Teatro Meridional, que, apesar da recepção algo fria a 1974, foram muito aplaudidos por Contos em Viagem: Cabo Verde.

O objectivo principal, como explicou Jack Lang, ex-ministro da Cultura francês e presidente da organização do Prémio Europa, é "combater o cepticismo, o individualismo e o egoísmo" através do teatro, "um modo de resistência contra a lógica financeira e os seus abusos".

Contudo, foi de política, de finanças e de manipulações que mais se falou ao longo do evento, sobretudo no que respeitou aos distinguidos na categoria Novas Realidades Teatrais, este ano numa lógica diferente, focando-se em países, mais do que em criadores.

Não obstante as diferenças entre os trabalhos, e a importância que cada companhia tem no seu respectivo país, as discussões trouxeram para cima da mesa comparações entre os vencedores deste ano e outros nomeados, há anos indicados, como Stéphane Braunshweig, Emma Dante, os Forced Entertainment, Declan Donnellan, Anne Teresa de Keersmaeker, Lars Noren, Luk Perceval, Spiro Scimone, Stanislas Nordey, Dea Loher, Frank Castorf, Jérôme Bel, Joel Pommerat, Rene Pollesch ou Jan Fabre. O próprio papel do Prémio Europa como legitimador de um patamar referencial (e da própria ideia de teatro na Europa) foi questionado e o novo modelo de atribuição alvo de críticas.

Espelho do sistema

Ou seja, as discussões andaram à volta do sistema que criou um apparatchik, termo apropriadamente russo, que define um funcionário do sistema, usado abundantemente nas conversas de corredor para falar dos nomes que há anos fazem a cena europeia, indiferenciando os contextos específicos e as realidades culturais de cada país.

É o espelho de um sistema feito de redes de programação, porta-vozes oficiosos e instituições alegadamente artísticas mas, na verdade, administrativas. No fundo, e como em todos os anos, as discussões no Prémio Europa são um sintoma de um sistema estabelecido, auto-sustentado e autofágico.

Todos reconhecendo a dificuldade do júri - que inclui representantes da União dos Teatros da Europa, da Associação Internacional de Críticos de Teatro (IACT), do Instituto Internacional do Teatro/UNESCO e da Associação Internacional de Festivais Europeus, bem como personalidades, escolhidas a cada dois anos, e, este ano, contando com a presença de Maria João Brilhante, presidente do conselho de administração do Teatro Nacional D. Maria II -, não deixaram de se ouvir, contudo, permanentes referências ao modo como estas escolhas reflectem a aporia do sistema teatral europeu.

Anne-Marie Wrange, da revista sueca Dans, manifestava-se "muito céptica" em relação à "total liberdade do júri para escolher", e Ivan Medenica, da revista sérvia Vreme, ia mais longe, sugerindo a "criação de um grupo de protesto pelas escolhas". Mas Margareta Sorenson, membro do júri e crítica do jornal sueco Expressen, sublinhava a necessidade de "responder a um conjunto largo de critérios que nem sempre são visíveis nos trabalhos apresentados".

Se é verdade que há um oceano de diferenças entre os trabalhos, e os discursos de figuras como Peter Stein, Yuri Lyubimov ou Lev Dodin, também é verdade que as condições nas quais as peças foram apresentadas não ajudaram à sua melhor recepção. Foram frequentes as queixas à organização sobre a incapacidade de dialogar com as equipas russas que, não falando inglês, na sua maioria, atrasaram as montagens, forçando as companhias a uma corrida contra o tempo, e a organização a uma ginástica logística complexa, entre autocarros para os teatros, serviço de legendagem e tradução deficiente, quando não mesmo inexistente, e programas paralelos (entre eles um showcase de teatro contemporâneo russo) a mais para tanta programação oficial (12 espectáculos e 12 conferências em seis dias que começavam às nove e terminavam depois da uma da manhã). Isto numa cidade enorme e difícil de atravessar.

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