Tina Fey é a dona da comédia

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Bossypants Ramona Rosales/Retna Ltd./Corbis/vmi

Bossypants é a autobiografia de Tina Fey, a mulher mais poderosa da comédia americana, lançada este mês nos EUA. Capas de revista, gravidezes, vestidos e dietas são secundários numa carreira de sucesso construída com base na inteligência - mas não parece, ao olhar para a imprensa norte-americana.

Por trás das câmaras e país fora, ecoando até ao Alasca e reverberando pelos oceanos, o mundo ouviu o doloroso estilhaçar de uma candidatura à vice-presidência dos Estados Unidos. "Eu consigo ver a Rússia da minha casa." Tina Fey terminava a sua imitação numa emissão-chave do programa de comédia ao vivo Saturday Night Live (SNL) e a mulher impreparada, populista e recém-chegada à arena política que por ela tinha acabado de ser caricaturada (Sarah Palin) praticamente deitava a toalha no ringue. O combate acabara.

Outubro de 2008. Na altura escreveu-se que é preciso muito azar para se ser fisicamente parecido com a melhor comediante feminina dos EUA. E o azar duplica quando se é Sarah Palin, inesperado trunfo republicano jogado por John McCain numa das mais observadas eleições das últimas décadas. A má sorte triplica quando a prestação enquanto candidata é limitada. Sarah Palin já era alvo de críticas e comparações venenosas com a rígida e experiente Hillary Clinton. Quando Tina Fey fez o seu boneco, houve quem acreditasse até ao fim (leia-se até ao fechar das urnas) que a governadora do Alasca tinha mesmo dito, como prova de grande conhecimento geopolítico, que via a Rússia da sua casa em Wasilla, no Alasca.

O produtor do SNL, Lorne Michaels, chamou-lhe "realidade intensificada" - porque essa sua forma de "esbater a realidade política e a fantasia cómica abriu um novo caminho da sátira", sugere Janet McCabe, investigadora de Drama Televisivo na Universidade de Londres. "E depois disso, Fey conseguiu o que toda a boa sátira política devia fazer: gerar debate."

Esse foi o momento, diz-nos Janet McCabe, em que ela se tornou num nome conhecido no Reino Unido. Foi também então que o mundo unido pela Web e obcecado pela campanha de Barack Obama soube quem era a comediante nascida de pais gregos e alemães em Upper Darby, Pensilvânia, que tinha estudado na Universidade da Virgínia e feito a travessia dos clubes de comédia da zona de Chicago, onde subiu ao palco no famoso teatro-escola de improviso, o Second City.

Elizabeth Stamatina Fey, 40 anos, uma filha e grávida de cinco meses do segundo. Comediante e argumentista na TV, mas também no cinema (escreveu Mean Girls em 2004 e tem na forja Mommy&Me com Meryl Streep), é descrita pelo crítico e historiador de cinema David Thomson como "a correspondente de email ideal de um liberal inteligente, como antes as estrelas de cinema representavam a rapariga do lado".

Tina Fey foi a primeira mulher a tornar-se a argumentista principal do emblemático SNL. Tem no currículo sete Emmys, oito prémios das Guildas dos Actores e Argumentistas, uma estrela no passeio da fama em Los Angeles e o prémio Mark Twain de Humor Americano atribuído pelo Kennedy Center - o equivalente americano "a ser ordenada dama" pela rainha de Inglaterra, enfatiza à Pública Jessica Coen, editora do site de cultura popular com ângulo feminista Jezebel. Foi a mais jovem a recebê-lo e a terceira mulher com ele distinguida (Whoopi Goldberg e Lily Tomlin foram as antecessoras).

Agora, Fey escreveu Bossypants, uma espécie de autobiografia. Porque Bossypants é a história de uma mulher, campeã da autodepreciação na sua vida pessoal e na sua comédia, que vence e se torna chefe de várias equipas. É a história pessoal, por vezes ligeiramente impessoal - a comédia e a construção de uma figura pública têm destas coisas - de Fey, sempre fiel ao retrato da mulher mais poderosa da comédia norte-americana, ao mesmo tempo que ilude as expectativas mais coscuvilheiras ou políticas.

"Não sou rapariga de símbolos de status. Andei na escola pública. Todos os meus dentes e partes faciais são de origem. Deixada à minha sorte, visto-me como se fosse a senhora que limpa o seu aquário."

É isto Tina Fey, como se pode ler no capítulo Confessions of a Juggler, o primeiro de dois a ser pré-publicado na mui reverenciada New Yorker. Lá está ela, Tina Fey-escritora na bíblia dos gliteratti. A mesma revista chamou-lhe há anos "o símbolo sexual para qualquer homem que leia sem mexer os lábios". Terá recebido cinco milhões de dólares pelo contrato com a editora.

Bossypants, entretanto associado à revelação da sua segunda gravidez e à discussão sobre a capa de uma revista em que o Photoshop a mirrou até à quase rarefacção, fez renascer velhos clichés sobre ela que evocam duas discussões intimamente ligadas - a primeira é o facto de ser mulher e se representa suficientemente bem o seu género; a segunda é o papel das mulheres na comédia. E isto já diz qualquer coisa sobre as expectativas (exa)geradas em torno de um simples livro de uma mulher sobre a sua vida e carreira.

Símbolo involuntário

Em 1997, Tina Fey foi a uma entrevista de emprego com o produtor Lorne Michaels e realizou o seu sonho - trabalhar como argumentista no SNL (passa em Portugal no canal FoxNext, que sintomaticamente estreou o programa em 2009 com a temporada de 2008 em que Fey era Palin). Nove anos depois, deixava o SNL e começava a sua série. Sua porque é autora, criadora, protagonista e argumentista.30 Rock (Rockefeller 30 no português da FoxNext e da RTP2) surge em plena era dourada da ficção televisiva norte-americana, mas é uma das poucas comédias a brilhar num período dominado pelo drama, destacando-se pela sua acidez, ligeiro surrealismo e ausência de riso enlatado.

Liz Lemon, a sua personagem, é um pouco de Tina Fey - tal como Bossypants soa, por vezes, à voz de Lemon. Autodepreciativa, mulher de carreira, inteligente, mas também solitária ligeiramente desesperada, viciada em comida e experiente na arte de lidar com argumentistas, actores e executivos de canais de televisão.

Em poucos anos, numa cultura eminentemente visual como a norte-americana, Fey tornou-se exemplo. "Acho que ela não quer ser um símbolo, ela não pediu isso", lamenta Jessica Coen. "Ela é a primeira. Ela é inevitavelmente um ícone", suspira. "Já houve muitas mulheres com piada na televisão, e muitas mulheres com piada e com sucesso na televisão, mas nunca ninguém chegou tão longe. Por isso ela vai ser um símbolo para o que as mulheres conseguem fazer no entretenimento, na comédia - simbolizando, quer seja verdade ou não, uma mudança na sociedade, uma mudança de paradigma", remata Coen.

Com os prémios, os elogios na imprensa e a veneração da crítica, também vieram coisas más - por mais que, por vezes, tenham embrulhos bonitos, apetitosos e glamorosos. Eram as críticas à sua maneira de vestir em ocasiões públicas. Eram as conversas sobre mulheres na comédia. Era a adaptação à TV. Nos bastidores do SNL, quando o produtor quis pô-la frente às câmaras, a agente Sue Mengers avisava Lorne Michaels: "Ela não tem o visual para isso." A experiente agente em Hollywood estranhou a convicção de Michaels em tornar a sua guionista chefe numa protagonista. "Pensei, bem, é bom que tenham um caso. Mas não tinham. Ele simplesmente apreciava o seu talento. E agora, de repente, ela tornou-se nesta mulher sexy, que mostra o peito e parece boa", comenta Mengers, citada pela Vanity Fair.

Em Janeiro de 2007, Christopher Hitchens, director convidado e colunista da mesma Vanity Fair, assinava Por que é que as mulheres não têm piada, um artigo de opinião com o antetítulo Provocação. Defendia uma certa falta de necessidade histórica de piada nas mulheres e falava com Fran Leibovitz e Nora Ephron (cujo nome aparece em quase todas as críticas norte-americanas a Bossypants, associado ao humor e à escrita de Fey) sobre as diferenças entre homens e mulheres no que toca a fazer e a consumir humor. Passados três anos, Tina Fey estava na capa da Vanity Fair, fotografada por Annie Leibovitz e entrevistada por Maureen Dowd, jornalista e colunista do New York Times.

Entre os dois escritos, muitas conversas decorreram sobre as mulheres na comédia. Tina Fey é, como defende ao telefone Jessica Coen, "a resposta para essas perguntas absurdas sobre se as mulheres têm piada na comédia". A própria responde a Hitchens em Bossypants: "É uma atitude impressionantemente arrogante concluir que só porque alguém não gosta de uma coisa, essa coisa empiricamente não é boa. Eu não gosto de comida chinesa, mas não escrevo artigos a tentar provar que ela não existe."

"Transformação lendária"

A mesma capa da Vanity Fair, que já fez e destruiu carreiras, mereceu à comediante um mar de "ciberdebates". Dowd garantia que a "transformação de Fey é coisa de lenda". "Mas o que é que as pessoas esperavam? Isso é exactamente o que a Vanity Fair faz, especialmente se estão a lidar com Hollywood - tudo é glamorizado, sexualizado, tudo vai ao Photoshop", irrita-se Jessica Coen, que também já foi colaboradora da Vanity Fair. Janet McCabe aponta a capa da mais recente edição da revista, um Rob Lowe impecavelmente musculado e bronzeado, para lembrar que ninguém discute apaixonadamente o uso de correcção Photoshop daquela imagem. "Em contraste, as mulheres ainda são julgadas pela sua aparência - o que usamos, como parecemos."

O escrutínio sobre Fey é, portanto, enorme. E dúplice. Por que é que um episódio de Rockefeller 30 - por exemplo, o recente TGS Hates Women, em que brincava com um site que parodiava o Jezebel, criticava uma comediante por se auto-infantilizar e sexualizar e gozava com o estereótipo das mulheres na comédia, mereceu-lhe críticas por ser ambivalente - ou uma capa de revista devem ser motivo para "falarmos de política de género"?, questiona-se Janet McCabe. "Esse tipo de crítica diz imenso sobre como as mulheres estão tão sub-representadas na paisagem cultural da comédia", explica a docente e editora da revista de Estudos Críticos Televisivos. "São tão raras que quando aparecem é-lhes atirado para cima um enorme fardo de representação." Naquele momento, as comediantes são todas as mulheres.

Exemplo: a crítica a Bossypants na Newsweek, assinada pela fundadora do Jezebel, Anna Holmes. "Como comediante, ela tem a capacidade única de explicar as políticas de género contemporâneas sem parecer abertamente política. (...) Como um ícone, o seu número de patinho feio outsider transformado numa bela e dura mulher, apesar de demasiado visto, é um canto de sereia aspiracional para muitos. (...) Como autora, Fey é tão cuidadosa em não tomar posições ou ofender a sensibilidade de alguém que parece um dos políticos que ela e os seus colegas tanto gozam."Jessica Coen, sua sucessora no cargo no Jezebel, frisa: as pessoas procuravam algo que não tinha de estar no livro; "ela é uma entertainer e nada nos deve em termos de discussões mais profundas sobre o que quer que seja".

Não é totalmente verdade que Fey não tome posições. Excertos de Bossypants:

"A verdade é que existe uma diferença entre homens que escrevem comédia e mulheres que escrevem comédia e vou revelá-la agora. Os homens fazem xixi em copos. E às vezes em frascos. (...) Nem todos os homens do SNL o faziam. Mas quatro ou cinco de 20 deles faziam, por isso os homens têm de assumir esta. Sempre que há uma má comediante stand-up algures, algum idiota de um blogueiro deduz daí que "as mulheres não têm piada". Usando a mesma fórmula matemática, deduzo que os argumentistas de comédia do sexo masculino fazem xixi em copos."

"Observei que, a partir de certa idade, e pelo menos na comédia, as mulheres são rotuladas como "malucas". (...) Conheço homens mais velhos na comédia que mal conseguem alimentar-se e lavar-se sozinhos e ainda trabalham. As mulheres, no entanto, são todas "doidas". Tenho cá uma suspeita - e ouçam bem porque esta é dura - de que a definição de "maluca" em showbusiness é uma mulher que continua a falar mesmo depois de já ninguém querer ir para a cama com ela." [Acrescenta que a excepção a esta regra é a octogenária Betty White].

"Parece-me que a solução mais rápida para esta situação de "as mulheres são doidas" é mais mulheres tornarem-se produtoras e contratarem mulheres de várias proveniências e idades. Por isso é que me sinto obrigada a ficar no mundo do espectáculo e a tentar chegar a um lugar em que possa criar oportunidades para os outros."

Se para muitos a sua imitação de Sarah Palin foi o pico da sua carreira e um momento feminista em que se mostrou como o suposto trunfo feminino-só-por-ser-feminino-e-tradicional dos republicanos em nada se comparava à preparação de Hillary Clinton ou Obama, para Fey, como revela no seu livro, "o momento mais emblemático de como as coisas mudaram para as mulheres na América foi uma Amy Poehler [a sua colega de SNL, que também imitou Palin] grávida de nove meses a rappar como Sarah Palin e a arrasar".

Comédia, género masculino

É difícil situar o género feminino na sociedade actual, defende Janet McCabe. Por isso é que, "de Sexo e a Cidade a Tina Fey, há a contenda sobre a forma como as mulheres contam piadas: é demasiado feminista, não é suficientemente feminista?" "E o que é isso de ser feminista hoje", adiciona Jessica Coen, "com tantas gerações feministas tão diferentes?"

Escasseiam mulheres nos palcos da comédia - Fey refere-se aos guionistas do SNL como um punhado de "Harvard boys", rapazes portanto. É um meio que a docente britânica Janet McCabe define como sendo "altamente competitivo, alimentado a testosterona e que se relaciona com o público-alvo por excelência, os jovens dos 18 aos 24 anos", evocando as lendárias histórias da anarquia no SNL liderado por John Belushi.

Nos EUA, Tina Fey, como Sarah Silverman, Amy Poehler, Roseanne, Ellen DeGeneres, Carol Burnett, Mary Tyler Moore, Joan Rivers ou mesmo, como evoca com razão Janet McCabe, Miss Piggy são símbolos involuntários e nem sabem bem de quê. Em Bossypants, Fey reflecte: "As mulheres que eu conheço na comédia são todas filhas extremosas, boas cidadãs, licenciadas pacatas. Talvez as mulheres gravitem em torno da comédia porque é uma forma socialmente aceitável de quebrar regras."

O New York Times acha mesmo que Fey tem "a sua marca muito especial de feminismo" - e lembre-se que o feminismo é simplesmente a defesa da igualdade de direitos entre homens e mulheres - e quer deixar a sua comédia falar por si. Mesmo que haja muito ruído à sua volta, num meio inusual.

Como escreve no capítulo Lessons from last night, "só em comédia é que uma rapariga branca e obediente dos subúrbios conta como "diversidade"".

Entretanto, a caricatura de Palin persegue-a. Há um ano, num raro momento em que a Vanity Fair não estava fascinada com a sua perda de peso e melhor corte de cabelo, questionaram a comediante sobre os seus dias como a hockey mom do Alasca e sobre os momentos que mais a surpreenderam. Fey não gostou de ter sido interpelada pela imprensa com perguntas sobre se não teria sido "pouco graciosa" para com a candidata republicana.

"O que me irritou imenso foi que me pareceu muito sexista em relação a mim e a ela. A implicação era que ela é frágil, que não é. É uma mulher forte. E depois também foi a questão de ser sexista, porque nunca se faria uma notícia sobre o facto de Dan Aykroyd ter sido mauzinho para Richard Nixon quando o imitou ou que quando Will Ferrell fez de George W. Bush foi muito mau para ele."

Sarah Palin sobreviveu à criação de Feylin, esse Frankenstein de óculos, franja e cabelo castanho sedoso. Tina Fey acha que as suas "piadas [de 2008] foram tiros justos". Agora que Barack Obama anunciou a sua recandidatura em 2012, Fey não consegue evitar sorrir ao dizer que se Palin avançar do lado republicano "vai ser divertido".

joana.cardoso@publico.pt

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