Iuri Gagarindevolveu-nos a Terra

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Iuri Gagarin dentro da cápsula Vostok 1, a 12 de Abril de 1961 AFP

O primeiro homem do espaço tinha um sorriso lindo. Em 108 minutos, fez uma órbita em que viu continentes, oceanos e o horizonte entre a Terra e o resto do universo. Meio século depois Iuri Gagarin ganha uma estátua em Londres e estreia um filme que recria a sua viagem. "É como se estivéssemos com ele."

Não houve contagem decrescente para a Vostok 1. Os jactos começaram a trabalhar, Iuri Gagarin disse "aí vamos nós" e o cosmódromo de Baikonur, no Sul do Cazaquistão, que pertencia à URSS, na altura, foi ficando cada vez mais distante. Na manhã de 12 de Abril de 1961, a Terra foi pela primeira vez vista de cima, como um todo, através do olhar do cosmonauta que aos 27 anos pôs a humanidade em órbita.

A viagem foi uma conquista tecnológica, mas não só: "Foi um momento-chave para a História. Pela primeira vez, a nossa espécie deixou a Terra e deu o primeiro passo na exploração do espaço", diz-nos Chris Welch, especialista em Engenharia Espacial da Universidade Internacional do Espaço e um dos responsáveis pelo Iuri Gagarin 50 (www.Iurigagarin50.org), projecto que tem como objectivo a celebração deste aniversário.Mais do que isso: transformou para sempre a relação que a humanidade tem com o planeta.

Os anos seguintes iriam ser definidos por este momento. A viagem de Gagarin levou à missão Apolo, dos Estados Unidos, até à Lua e à primeira fotografia tirada a toda a Terra, que introduziu o conceito de Spaceship Earth - a Terra como nave espacial. Trouxe também "uma compreensão ambiental do planeta como um único corpo".

Depois da missão da Vostok 1, mais de 500 astronautas de vários países repetiram a experiência de Iuri Alekseievich Gagarin e atravessaram a atmosfera terrestre para orbitar o planeta, ir até à Lua, fazerem a manutenção do telescópio Hubble ou visitarem a Estação Espacial Internacional (ISS, sigla em ingês). Em cada viagem há risco - às vezes tragédias -, excitação e um contínuo compromisso com o futuro, a porta que o cosmonauta russo deixou aberta quando há meio séculoaterrou de pára-quedas, de regresso, e se transformou no primeiro homem do espaço.

Cidadãos do mundo

Na edição de 1 de Abril oFinancial Timesdecidiu comemorar a viagem de Gagarin com um conjunto de entrevistas a um astronauta de cada país que já enviou pessoas para o espaço. O jornal falhou o contacto com o taikonauta da China - a conversa foi proibida pela Agência Espacial Chinesa -, não conseguiu contactar com o astronauta cubano e o israelita morreu na tragédia do vaivém Columbia, que explodiu em 2003 durante a aterragem. Ficaram 35 relatos das experiências de astronautas que podem ser vistos como "uma descrição colectiva do encontro da humanidade com o vácuo que existe ao nosso redor", explicava o jornal. Uma das mais belas histórias veio da astronauta francesa Claudie Haigneré, que numa das duas visitas que fez ao espaço - uma à estação espacial russa MIR, em 1996 e outra à ISS, em 2001 -, tirou horas de sono para ficar a olhar para a Terra ao som de Maria Callas.

"Uma vez disse a mim mesma: "Vou fazer uma órbita à Terra, 90 minutos"", lembrou a astronauta. "Através do pórtico vi a Terra a girar enquanto ouvia Callas a cantar Norma, no silêncio da noite, enquanto os meus colegas dormiam. Desliguei as luzes e só tinha a luz vinda da Terra. Vi o dia, a noite, fogos nas floresta de África, o amanhecer, a Lua a crescer. Foi um momento de uma alegria extraordinária."

Há aspectos curiososnas narrativas dos homens do espaço. Para a viagem que o astronauta malaio Sheikh Muszaphar Shukor fez em 2007 à ISS, durante o Ramadão, o Conselho Nacional da Fatwa da Malásia decidiu fazer um livrete de 18 páginas onde, entre outras coisas, explicava como é que se rezava para Meca a partir de órbita.

O único homem de língua portuguesa que foi ao espaço, Marcos Pontes, nascido no Brasil, sentiu que fazia parte do Universo durante a sua estadia na ISS em 2006. "Quando se vai até lá acima sentimo-nos muito insignificantes. Mas depois vemos que não há fronteiras. Todos nós somos feitos da mesma coisa", disse o brasileiro ao Financial Times.

A grande maioria dos entrevistados teve a oportunidade de fazer as viagens através ou da NASA, que deu formação e enviou 14 dos astronautas, ou da Roscosmos (a Agência Espacial Federal da Rússia), que enviou 23. Só em 2003 é que a Agência Espacial Chinesa enviou o primeiro taikonauta.

Como Gagarin, todos estes homens e mulheres se transformaram em símbolos do seu país, e únicos no mundo - fazem palestras, são conhecidos. "Já não pertencemos a nós próprios", disse Toktar Aubakirov, do Cazaquistão. "É um pouco como a rainha de Inglaterra."

Iuri Gagarin terminou a sua viagem perto da cidade russa de Engels, na província de Saratov. Assim que agência espacial russa se assegurou que o cosmonauta estava bem, tornou a missão pública ao mundo. O jovem foi feito Herói da União Soviética, mas a sua fama e o seu feito pertenceram - e pertencem-nos - a todos.

Em Londres foi recebido como herói, almoçou com a rainha e impressionou muitas pessoas com o seu sorriso, constantemente relembrado. "O que mais me impressionou foi o seu sorriso", disse recentemente à BBC News o jornalista do Guardian Robin McKie. "Ele tinha o sorriso mais bonito - era hipnótico."

No Verão de 1961, a mãe deste futuro editor de ciência e tecnologia do jornal britânico levou o filho de 11 anosa ver a estrela russa. "Todas as histórias de ficção científica que eu lia tornaram-se verdadeiras, havia um homem no espaço", disse Mckie. "Não diria que não seria repórter de ciência se não o tivesse visto. Mas reforçou realmente a decisão."

Chris Welch, vencedor em 2009 do prémio Sir Arthur Clarck para a Educação Espacial, defende que os astronautas inspiram os jovens para o estudo da ciência e tecnologia, o que é "vital para a sociedade e para o bem-estar futuro". Mas o que Iuri Gagarin iniciou foi ainda mais forte. "A sociedade precisa dos astronautas porque precisamos de ter uma melhor compreensão do Universo,de qual a melhor forma para actuarmos nele e porque, em última instância, precisamos de encontrar outro lugar para viver. Isto é importante porque um dia não vamos poder viver mais aqui",na Terra,disse ao P2.

Ao lado de Gagarin

Quando a Vostok 1descolou, às 9h07 da manhã russa (6h07, GMT), a Guerra Fria estava no auge, e a União Soviética queria ganhar uma corrida às armas e ao espaço. O Sputnik 1, lançado a 4 de Outubro de 1957, foi a primeira das várias machadadas que os Estados Unidos levaram. O sucesso da Vostok 1, obrigou JohnF. Kennedy a dar os parabéns a Nikita Khrutchov, o seu homólogo russo, e a prometer no seu país que antes do final da década de 1960 os norte-americanos iriam pisar a Lua.

Do ponto de vista científico,a viagem de 1h48 minutos de Gagarin acrescentou pouco. O cosmonauta foi em si mesmo a principalexperiência: comeu e bebeu durante a viagem enquanto viu desfilar lá em baixo a região da Sibéria até à península de Kamchatka e o Pacífico até a ponta da Venezuela, voltando a subir pelo Atlântico, entrando em África e atravessando o Leste do Mediterrâneo até à Rússia.

A missão foi feita a uma altitude média de 248 quilómetros. Um dos receios dos cientistas russos era o efeito que a gravidade zero poderia ter no corpo humano, mas Gagarin reagiu bem. O final da jornada foi o mais complicado. Embora o cosmonauta tenha telegrafado a dizer "que estava bem", a cápsula não se separou correctamente para a aterragem e estava a girar continuamente. Mas o russo ejectou-se quando estava a sete quilómetros de altitude e poisou sem problemas.

Até agora só se podia imaginar o que Gagarin viu, mas um filme gravado a partir da ISS, que é apresentado hoje na Internet (www.firstorbit.org) recria o percurso da Vostok 1. A ideia partiu do realizador de documentários Chris Riley e foi filmado pelo astronauta italiano Paolo Nespoli.

A filmagem foi feita a partir do módulo Cupola, um dos melhores locais da ISS para ver a Terra. O filme não só segue o percurso de Gagarin como repete o horário em que ele esteve em cada sítio e pode-se ouvir a voz do cosmonauta ao longo do tempo com música de fundo.

"A combinação destas novas imagens da Terra que Gagarin viu com a voz original gravada enquanto voava por cima da atmosfera é muito emocional", diz Chris Riley ao P2. "Um homem mais idoso que viu o filme recentemente disse que sentiu que voou por cima do mundo dentro da cápsula com Iuri... Era exactamente o que eu queria criar!"

O lançamento foi programado para o aniversário da viagem de Gagarin. Há comemorações em dezenas de cidades no mundo, incluindo a inauguração de uma estátua do cosmonauta no The Mall, a via pedestre que fica no centro de Londres ao pé do Palácio de Buckingham. Mas no ano em que os vaivéns norte-americanos vão deixar de ser utilizados, sem substituição no futuro próximo, e em que só as naves russas Soiuz asseguram viagens até à ISS, o futuro dos astronautas não parece risonho. "Uma das coisas que nos definem como humanos é a exploração", diz Chris Riley. Sem a exploração espacial seriamos "menos humanos", acrescenta. E não teríamos palavras como as de Gagarin: "Vejo as nuvens. O local de aterragem... É lindo. Que lindo!"

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