Torne-se perito

O túmulo emparedado volta à luz do dia

Foto
O túmulo de Fernão Telles de Menezes demorou pouco a ser desvendado fotos Nuno Ferreira Santos

Há 50 anos, um túmulo raro do séc. XVII foi escondido atrás de uma parede em terrenos da Universidade de Lisboa. Poucos tinham ouvido falar dele. Até agora

A parede é fraca, pouco mais que um tapume, e o serrote avança sem problemas. Não é preciso muito tempo para os dois trabalhadores tirarem uma primeira placa, deixando a descoberto um imponente elefante de mármore preto, sólido mas elegante, apesar do pó e teias de aranha acumulados nos quase 60 anos em que viveu emparedado.

Perante o olhar atento de cerca de uma dúzia de pessoas - entre as quais o reitor da Universidade de Lisboa (UL), António Nóvoa, e o historiador de arte Fernando António Baptista Pereira - que se amontoavam numa das divisões da modesta casa onde viveu um funcionário da Faculdade de Ciências da UL (onde são hoje os Museus da Politécnica), os dois homens continuam a sua tarefa e, em poucos minutos, retiram mais uma parte da parede.

É então que aparece, em todo o seu esplendor, o túmulo de Fernão Telles de Menezes. O monumento em mármore rosa, do século XVII, surge também coberto de pó e teias de aranha e ainda com barrotes de madeira apoiados nele, à vista de todos, abandonando por fim o seu esconderijo escuro. Junto à base, perfeitamente legível, o epitáfio anuncia: "Aqui jaz Fernão Telez de Meneses, filho de Brás Telez de Menezes..."

Falta apenas um terço da parede e, quando este finalmente sai, fica visível o elemento que faltava, o segundo dos dois elefantes que serviam de base de apoio ao túmulo e que tinham sido colocados ao lado deste.

"Poucos o terão visto"

Resgatado do esquecimento ao qual tinha sido condenado, o túmulo de Fernão Telles de Menezes (e da sua mulher, Maria de Noronha) irá muito em breve regressar ao local para o qual foi inicialmente concebido: a antiga Igreja do Noviciado da Cotovia, fundada pelos jesuítas no século XVII, e que é hoje o hall de entrada dos Museus da Politécnica.

Fernando António Baptista Pereira traz na mão fotocópias que mostram um desenho do túmulo feito por Gustavo de Matos Sequeira (1880-1962). "O túmulo era conhecido por desenhos, mas desde o século XIX poucos o terão visto realmente. E, que se saiba, nunca foi fotografado", explica o historiador, ainda antes de a parede ser derrubada. Aliás, no desenho que lhe serve de referência, os elefantes parecem mais pequenos e a proporção entre estes e a parte de cima do túmulo (que Baptista Pereira calcula que tenha no total cerca de seis metros) parece não corresponder à realidade.

"Sabe-se", prossegue o historiador, "que é um grande túmulo maneirista, semelhante aos de D. Manuel I e D. João III que estão nos Jerónimos, e também aos túmulos dos Castros, que estão em São Domingos de Benfica, na capela que pertence aos Pupilos do Exército".

Marta Lourenço, do Museu de Ciência da UL e organizadora dos passeios pelos 100 locais da memória da universidade que estão a decorrer para assinalar o centenário da instituição (o passeio de ontem era precisamente aos Museus da Politécnica e já incluía o túmulo, que pouco tempo antes acabara de ser desemparedado), sabia há algum tempo que o monumento estava naquele local. Mas antes da retirada oficial da parede, ontem, Marta Lourenço e outros responsáveis da UL tinham-no vislumbrado apenas por dois buracos entretanto abertos na parede.

O funcionário que ali viveu escrevera à direcção da faculdade, pedindo encarecidamente que lhe tirassem o túmulo de dentro de casa, porque a mulher não conseguia dormir bem com o monumento fúnebre ali ao lado. Não tendo resposta a estes pedidos, acabou por pedir autorização para emparedá-lo. Calcula-se que a parede tenha sido construída em 1954, porque agora que foi retirada encontraram-se nela pedaços de jornais com essa data.

As casas de função da faculdade são, na realidade, uns casinhotos junto ao antigo Picadeiro do Colégio dos Nobres (fundado no século XVIII e o sucessor do Noviciado da Cotovia). Casas baixinhas, com pequenos quintais cultivados pelos moradores, pareciam o local mais improvável para guardar um túmulo. Mas para se perceber como foi ele ali parar será melhor contar a história do início.

Fernão Telles de Menezes, que chegou a ser governador da Índia e do Algarve, era proprietário da Quinta da Cotovia, no Monte Olivete, que em 1589 ofereceu em doação aos jesuítas para estes aí criarem o Noviciado da Cotovia. A doação tinha como condição que o nobre ficasse sepultado na Igreja do Noviciado. E foi, de facto, o que aconteceu. Fernão Telles de Menezes morreu em 1605 e os jesuítas cumpriram a promessa, colocando o túmulo na igreja.

A partir daí os dados começam a ser mais vagos, mas calcula-se que tenha sido no século XIX, já no tempo da Escola Politécnica (1837-1911), e após o incêndio que em 1843 destruiu o edifício original, que foi transportado para as antigas cavalariças do Picadeiro, entretanto transformadas em casas de habitação para os funcionários. Terá sido então que começou a assombrar as noites da mulher do funcionário que aí vivia, o que acabaria por conduzi-lo a um destino menos nobre: o emparedamento, do qual só ontem se libertou.

Sugerir correcção