Lampedusa, Hotel África
Nunca chegaram tantos em tão pouco tempo. Desde o início dos tumultos no Norte de África, Lampedusa recebeu mais de 23 mil clandestinos. Vêm da Tunísia, da Líbia. Numa parede da ilha italiana situada entre a Tunísia e a Sicília, alguém escreveu: "A guerra veio até nós." Não traz bombas. Traz gente esperançada.
Kamel quase não acredita. Está em Itália. Provam-no aqueles faróis apontados para ele e aqueles homens que lhe dão ordens numa língua estranha. Chamar língua àquilo talvez seja demasiado. Gesticulam. Gritam: "Ei! Ei! Ei!" Até Kamel e os 51 rapazes que viajaram com ele se alinharem.
Saíram da Tunísia de madrugada. Tudo à frente deles era esperança. À noite estavam numa ponta árida da ilha de Lampedusa, mais perto do continente africano do que do continente europeu - na Europa, de qualquer modo.
Atravessar o canal da Sicília é uma aventura: num instante um barco fica preso no meio do nada ou é arrastado pela imprevisibilidade do tempo. Dá jeito ter arte para escapar às armadilhas que o mar esconde. E, dentro daquele barco, apenas jovens adultos que aprenderam a conduzir enquanto esperavam, junto ao porto de Zarzis, no sudeste da Tunísia, que a lotação se completasse.
Desde o início do ano, mais de 23 mil pessoas desembarcaram nas ilhas Pelágias - quase todas em Lampedusa, a maior das três ilhas situadas entre a Tunísia e a Sicília. Consequência das mudanças no Norte de África. Com a queda do Presidente Ben Ali, a Tunísia descuidou as fronteiras. Desponta uma nova vaga oriunda da Líbia - tampão migratório, agora em guerra civil.
Kamel desembarca a 3 de Abril de 2011, apenas com a roupa do corpo e um telemóvel enfiado num saco de plástico, a pensar em Itália como um lugar de passagem, em França como um lugar de destino. Os pais e os irmãos mais pequenos moram em Estrasburgo e é em Estrasburgo que o rapaz de 25 anos deseja construir uma vida nova. Quanto tempo demorará a chegar?
Se desembarcasse um dia antes não haveria lugar para ele no Centro de Primeiro Acolhimento, situado a um quilómetro da vila, subindo a estrada em direcção ao Monte Imbriacole. Construído para receber 350 pessoas, até 800 numa situação de emergência, chegou a acolher mais de três mil.
No fim de Março, os cinco mil residentes de Lampedusa afligiram-se com a presença de 6200 desembarcados. Uma antiga base militar, a Loran, a uns dez quilómetros da vila, excedeu muito a sua capacidade. A Igreja Católica emprestou a Casa de S. Fratello: as cadeiras foram trocadas por colchões; o auditório transformado em dormitório de menores. E sobrava gente a dormir nas ruas, no porto, na colina - nas entradas dos prédios, dentro de barcos, em tendas de fabrico artesanal.
O primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, esteve na ilha a 30 de Março. E prometeu esvaziá-la no prazo de 48 a 60 horas: "Organizámos seis navios e estamos a preparar um sétimo com um total de dez mil lugares." As condições meteorológicas atrasaram o plano. Quando Kamel desembarcou, a ilha recuperava alguma normalidade.
A uns quilómetros, num ferry-boat atracado no cais de Cale Pisana, embarcavam 1004 estrangeiros, quase todos tunisinos. Naquele dia, partira um com 1731 a bordo, outro com 471, outro com 304. Na véspera, um com 1700, outro com 500. Maurizio Brigwonem, um morador que nos últimos meses suspendeu a vida para ajudar quem chegava, dá uma volta pela vila e já não vê clandestinos.
Maurizio e uma amiga, Paola La Rosa, gostam de fazer artesanato. Falam em aproveitar os milhares de cintos e de atacadores que se amontoam nos últimos metros da estrada que conduz ao cais. Mas limitam-se a ver os rapazes chegar num autocarro azul e a formar pequenos grupos. À espera deles, polícia militarizada que os revista um a um e os despoja de tudo o que possa converter-se num objecto de violência (contra os próprios ou contra outros). Ou servir algum plano de fuga. Alguns entram de mãos a abanar, outros com um saco de plástico com algumas peças de roupa.
"Obrigado, Lampedusa"
Na segunda-feira, dia 4, novo ferry, novos embarques. "Sabes para onde vamos?", pergunta um rapaz do terceiro grupo da manhã. Para um centro na Sicília ou no continente: Mineo, Caltanissetta, Trapani, Potenza, Taranto, Caserta, Toscania, Torino? "Não falo bem italiano." Atrás dele, o sorriso discreto de Raouf.
Raouf também não sabe para onde vai. Qualquer parte do continente lhe parece melhor do que a ilha na qual desembarcou há cinco dias. O rapaz, de 29 anos, tem dois irmãos em França e um na Suíça. E é ao pé de algum deles que quer lançar amarras. "Desejo um trabalho, uma família."
Não lhe peçam para se sacrificar pelo seu país, apesar da mudança em curso. Se Itália o meter num avião rumo à Tunísia, ele meter-se-á noutro barco como aquele que o trouxe e que agora repousa num cemitério improvisado no campo de cálcio. Alguém acredita em estabilidade imediata, em progresso imediato? Quanto tempo dura a transição? "Na Tunísia, não há trabalho, não há vida decente. É um problema." Só o entristece pensar que pode nunca mais ver a mãe e o pai.
Pagou 1300 euros para chegar. Fez a viagem a rezar para dentro. Sem salva-vidas, sem muda de roupa. Nada paga para partir. E vai seguro. "Feliz." Apesar dos olhos enegrecidos pelo cansaço. "Obrigado, Lampedusa!"
Mil mundos numa ilha
À mesma hora, militares removem as provas do caos. Dentro de um barco, um cobertor em tons de rosa. Junto a outro, uma mensagem escrita no que já foi uma parede de uma caixa de cartão: "Viva a liberdade." Subindo a estrada, a chamada "colina da vergonha". Centenas dormiram ali noites e noites. Entrelaçaram tubos ou cordas e taparam-nas com cobertores e plásticos. Alinharam pedras e entre elas fizeram fogueiras e nelas encaixaram panelas ou frigideiras.
O cheiro a urina resiste. E a fezes. E a roupa suja. Fabrizio Pisanelli, porta-voz da Guardia di Finanza [força policial militarizada que combate o tráfico de droga e o contrabando], evita caminhar entre as tendas. Desde a estrada, comenta: "Havia tantos cães no porto. Desapareceram. Talvez os tenham comido."
Quantos mundos se confrontam nesta ilha de 20 quilómetros quadrados? Numa parede da vila, alguém escreveu: "A guerra veio até nós". Mas segunda-feira, no largo da igreja, não se fala em refugiados da pobreza ou da guerra. Fala-se em invasão. E, no porto, ainda esvoaça um pano: "Lampedusa diz chega".
Uma equipa do Ministério do Turismo italiano já roda um anúncio. Cabe-lhe resgatar a imagem da ilha, que o cinismo de alguns agora designa por "Hotel África". O presidente regional da Sicília, Raffaelo Lombardo, quer fazer aqui o concurso Miss Itália. E o primeiro-ministro já prometeu três anos de obras públicas para manter a vocação piscatória e turística do arquipélago, incluindo a criação de um campo de golfe.
A qualquer hora do dia ou da noite chegam barcos do outro lado do Mediterrâneo e equipas inteiras correm para o porto velho ou para o porto novo. Sulcam as águas vagarosos, a abarrotar de gente e de esperança. E quem os avista avisa: a vila só não voltará a encher-se de sem-abrigo se os ferries levarem com regularidade os recém-chegados para outras partes de Itália.
O número de embarcações muda de dia para dia, de noite para noite. "Depende do estado do tempo e do patrulhamento no país de origem", explica Michael Parzyszek, da agência europeia de controlo de fronteiras - Frontex. São detectadas horas antes do desembarque e escoltadas até um porto.
A Operação Hermes - com elementos de Portugal, Espanha, França, Bélgica e Holanda - começou a 20 de Fevereiro. Os vizinhos europeus iam estar um mês a auxiliar as autoridades italianas a controlar a fronteira marítima e a entrevistar recém-chegados; estarão pelo menos mais cinco.
Fala-se em 500 mil a um milhão e meio de subsarianos à espera de uma oportunidade para sair da Líbia, mas "ninguém sabe quantos são". "Temos de estar preparados para as diferentes probabilidades", diz Michael Parzyszek, ao telefone, a partir da sede da agência, em Varsóvia, na Polónia.
Os barcos líbios começaram a chegar em força em 2004. Os dois países assinaram vários acordos desde então. Em 2009, Itália dispôs-se a pagar milhões de euros para que a Líbia patrulhasse as suas 1250 milhas de costa e controlasse as máfias que organizam as travessias. O número de desembarcados da Rota do Mediterrâneo caiu a pique: 37 mil pessoas em 2008; 8,2 mil em 2009; 2,8 mil em 2010.
Para tentar manter os líderes europeus afastados da revolta que estoirou na Líbia em Fevereiro, Muammar Khadafi avisou: "Milhares de pessoas irão invadir a Europa através da Líbia, porque não estará ninguém a travá-las." E Itália pede socorro à União Europeia. Não há dia em que o ministro do Interior, Roberto Maroni, se esqueça de o fazer - alto e bom som.
Não é um fluxo igual ao da Tunísia, que esvazia aldeias inteiras de jovens com força para trabalhar e as deixa apenas com idosos, mulheres e crianças. É um fluxo de gente de qualquer idade que procura protecção internacional.
Na madrugada de terça, chega uma embarcação da Líbia com 335 candidatos a asilo - da Somália, da Eritreia, da Etiópia, da Nigéria, do Burkina Faso, da Gâmbia, do Bangladesh. Na quarta-feira devia chegar outra com cerca de 300, mas desembarcam apenas 51 - 48 primeiro, três depois, mais dois.
Mengistu, o apátrida
Durante a noite, o vento soprara forte de nordeste. A ondulação sacudira a embarcação, demasiado carregada para aguentar tanto balanço sem meter água. A Guarda Costeira alcançara-a a 39 milhas, ainda nas águas de Malta. E ela virara-se durante a operação de resgate.
Os sobreviventes desembarcam na Punta Favaloro, vedada com grades pintadas de cinzento e polícias vestidos de cinzento e de azul. Depressa são metidos em duas ambulâncias e no único autocarro da ilha, que os levam à antiga base militar da qual sairão na quinta-feira - na ponte aérea. Seis precisam de cuidados médicos. A grávida de oito meses apanhou uma broncopneumonia.
A tristeza de quem traz a morte nos olhos propaga-se, como uma sombra. Comove os profissionais da polícia, do serviço regional de saúde, do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), da Cruz Vermelha, dos Médicos sem Fronteiras, da Save the Children, que os esperam.
Mengistu, o mediador cultural dos Médicos sem Fronteiras, até fica atordoado. Revê-se nos olhos daqueles homens e daquelas mulheres com familiares que o mar acaba de engolir. Aos 21 anos saiu da Líbia numa embarcação precária como a que os despejara no mar alto.
Tem o sorriso sempre pronto. Só o galanteio permanente faz adivinhar carência afectiva naquele rapaz alto, magro, de cabelo entrançado. "Sacarina!", chama às raparigas a que quer agradar.
O pai é da Eritreia, a mãe da Etiópia. Não há lugar para casais assim na Eritreia e na Etiópia. Mengistu nasceu no Sudão, num campo de refugiados. Aos 13 anos, partiu à procura de um lugar seguro. Detiveram-no na Líbia. "Não tinha documentos. Puseram-me num campo de deportação, mas não me podiam deportar." Para onde? Mengistu era um apátrida. Mengistu continua a ser um apátrida.
Esteve naquele sítio nove meses. Esteve naquele sítio até que os presos arranjaram forma de moer a fechadura. Era uma criança assustada, sozinha, faminta. Um líbio comoveu-se e acolheu-o em sua casa. "Não podia ficar na Líbia. Telefonei à minha família e pedi ajuda. Venderam tudo o que tinham."
Demoraram mais de um ano a juntar os 1300 dólares de que ele precisava para a viagem. Mengistu já completara 15 anos quando se meteu num barco e atravessou o Mediterrâneo. Com ele viajavam 39 menores e 220 adultos. Mal se podiam mexer. Se alguém queria urinar ou defecar, urinava ou defecava no seu sítio. Quantos se queimam com a mistura de dejectos, gasolina, água salgada?
Foram 53 horas de viagem. Sem saber se chegaria vivo ou morto. Sem saber se seria bem ou mal recebido. "Só pensava em chegar a Itália. Não tinha uma opinião formada. Sabia que não me iam recusar estatuto de refugiado. Nasci no Sudão, mas não tenho a nacionalidade do Sudão. Também não tenho a da Eritreia nem a da Etiópia. A Eritreia não sabe que eu existo, a Etiópia também não. A Itália sabe, mas só ao fim de dez anos me deixa pedir nacionalidade. Quando tiver a minha nacionalidade, terei a minha liberdade."
Pelo seu percurso pode imaginar o que espera os menores que agora desembarcam à procura de asilo. Viveu num centro - em Bari. Prepararam-no para ser um soldador. "Aos 18 anos, disseram-me: "Agora, és maior. Tens de sair." Eu perguntei: "Como? Não tenho dinheiro!" Puseram-me na rua."
Já passara por tanto. De repente, estava outra vez destituído de tudo, à mercê de tudo. "Graças a Deus, tenho amigos que me ajudaram a organizar a minha vida. Graças a Deus estou a trabalhar."
Lavou pratos num restaurante. "Era DJ", goza. Serviu à mesa. Prestou serviço de mediador cultural ao ACNUR. E agora presta-o aos Médicos sem Fronteiras. "Enquanto durar esta vaga migratória, tenho trabalho." Um trabalho de permanente confronto com o que foi, com o que é.
Aprender a ser livre
A morte pode fazer das suas a qualquer instante. Na semana antes desta, numa embarcação vinda da Líbia, morreram sete pessoas, salvaram-se 11. Mengistu estava pronto para lhes estender a mão.
Desembarcam ainda com o coração aos pulos, a despedir o medo, a agarrar a esperança. "Não há vida para eles na Líbia. Podem ser mortos se forem vistos na rua." Para ter uma vida, arriscam perder uma não vida. Mengistu saúda a sua bravura. E lamenta nada poder fazer por eles a não ser desejar-lhes o que sempre desejou para si: "Ser livre, ser feliz." Para quem acaba de chegar, a liberdade é um estado desconhecido, inimaginável. "Têm a cabeça muito fechada."
A liberdade é uma coisa que se aprende. Paola La Rosa, com escritório de advogados em Palermo e Bed & Breakfast em Lampedusa, percebeu isso nestes dois meses em que interrompeu a sua vida para ajudar os recém-chegados. "Se um polícia lhes dizia para irem para o centro, iam imediatamente."
Há o medo. E o hábito de obedecer a quem usa farda ou fala mais alto. E o desconhecimento sobre o modo de ser do novo país.
Não aprendem liberdade nesta ilha de dez quilómetros de comprimento, dois de largura no máximo. De Lampedusa, partem para estruturas de segunda linha. Os imigrantes económicos para centros de identificação e expulsão, dos quais não podem sair. E os candidatos a asilo para centros de acolhimento de refugiados, dos quais podem sair de manhã e regressar à noite.
Com a vaga dos últimos dois meses, as estruturas de acolhimento não dão para as encomendas. Em várias partes do país, amiúde no meio de protestos, montam-se campos de tendas brancas sempre iguais. Muitos saltam as vedações - fogem. Paola conhece histórias, parece coleccioná-las: "Alguns residentes apanham-nos na estrada e dizem-lhes para entrarem no carro que os levam para trás. E eles vão!"
A morena de 44 anos, cabelo revolto, mora numa casa térrea com as janelas cheias de mar. Fixou residência na ilha por amar a tranquilidade do Inverno: "No Verão, tenho muito trabalho. No Inverno, tenho tempo para fazer o que gosto, como jantaradas com os meus amigos, pintar - gosto de pintar peixes. Este Inverno, não tive tempo. Havia tanta gente a precisar de ajuda!" O amigo Maurizio Brigwonem, da idade dela, diz o mesmo.
No início, agiam por conta própria. Depois, ofereceram os seus préstimos à igreja. "Era como se fosse um trabalho", ri-se Maurizio, a aproveitar o vagar de uma hora de almoço. De manhã, levantava dinheiro enviado pelas famílias dos rapazes em seu nome. E ajudava a organizar a fila para o duche que há na igreja, na Piazza Garibaldi: "Cada um tinha cinco minutos." Por volta das 16h, dedicava-se à alimentação. Era preciso recolher donativos, preparar refeições, distribuí-las. A distribuição oficial de comida fazia-se na zona do porto. Arriscavam ficar sem alimentos os que se tinham afastado daquele reboliço, os que se tinham refugiado num jardinzinho situado no final da Via di Roma.
Agora, episódios engraçados assaltam-lhe a cabeça. "Um dia, estava a distribuir pequenos chocolates. Alguns tinham whisky dentro. Um dos rapazes reagiu: "Oh não! Alá não quer que beba bebidas alcoólicas!"" E Maurizio sossegou-o: "Há 15 dias que estás na rua sem casa de banho, sem nada. Alá perdoa-te!"
A pequena Tunísia
Logo no início da crise, a câmara instituiu uma regra: proibido vender bebidas alcoólicas a tunisinos. Paola é uma acérrima defensora da autodeterminação, mas concordou com aquela medida discriminatória. "Não estão habituados. Num instante, ficavam embriagados. E eram tantos!"
Um polícia, óculos de sol a esconder as olheiras provocadas pelas longas jornadas laborais, adapta uma expressão ouvida noutro continente: "Nova Iorque tem uma pequena Itália [Little Italy]. Lampedusa parecia uma pequena Tunísia." As pessoas cruzavam-se nas ruas geométricas que formam o centro da vila, de casas rasteiras, quase sempre baças, e não diziam "ciao", diziam "asallam".
As ruas recuperaram alguma calma. Seriam dos moradores, não fosse a correria das organizações e das equipas de reportagem.
Na segunda-feira à noite até houve missa na praça para reconhecer o esforço dos paroquianos em prol dos estrangeiros e agradecer o descanso da sua partida. No fim da praça, num fato de macaco que gosta de usar para disfarçar a barriga, o velho D"aietti Giuseppe troca impressões com um amigo. Sente-se, de algum modo, traído. Julga que os moradores tudo deram para socorrer os tunisinos: colchões, roupas, comidas, cigarros, dinheiro. E que os tunisinos "não souberam agradecer".
A tensão instalou-se. E adensou-se. Houve quem tivesse arrombado portas ou partido janelas de casas ou apartamentos - tantas casas e apartamentos desabitados no Inverno e habitados no Verão. No fim-de-semana, as explosões saltaram para as primeiras páginas. Adultos incendiaram uma rulote estacionada no porto. E menores automutilaram-se e destruíram a Casa de S. Fratello.
Michael Prosperi, porta-voz da Save the Children, atribui aqueles actos ao desespero. Os menores, entre os 12 e os 17 anos, revoltaram-se vários dias seguidos. Agressividade só observava nuns poucos. Nos outros, apenas medo, confusão. Alguns fugiam para o porto - tentavam embarcar, como os crescidos.
O activista desdobra-se em entrevistas. E em muitas diz esperar que Itália tenha aprendido "uma lição": "Desde 10 de Fevereiro, mais de 1700 menores desembarcaram em Lampedusa. Os menores têm de ser uma prioridade. Tem de haver um plano das autoridades para lidar com os menores em primeiro lugar."
D"aietti Giuseppe espera que tenham aprendido a não adiar transferência de desembarcados da Tunísia ou de outros países africanos. "A ilha é demasiado pequena. Com tanta gente, nada chega." Os serviços rebentam pelas costuras. Faltam bens. Sobretudo cigarros. "O que se produz aqui? Vem tudo de fora! Se essa gente vem daí para cá, que se porte com humildade, e não com arrogância. "
O homem de cabelo grisalho, um pouco ondulado, até tinha medo de andar à noite nas ruas da ilha que o viu nascer, no leito materno, há 66 anos. Não era o único. Debateu o tema com os amigos que aqui moram e tirou uma conclusão: "Os mais velhos tinham mais medo, porque viveram a guerra."
Em 1986, dois mísseis da Líbia muçulmana e militarizada caíram aqui. Mal deu por eles. Pensou que eram bombas de água. Quando viu a notícia na televisão, entrou em pânico. Ele e os outros. "Eram para a base da NATO, que havia do outro lado da ilha. Desembarcaram militares para nos proteger. Até me deu vontade de rir. Como é que nos iam proteger dos mísseis? Com guarda-chuva?"
Há uma história a dançar na memória do homem que já cantou com Domenico Modugno. Em 1911, a Itália invadiu a Líbia. Os líbios recuperaram grande parte do território durante a Primeira Guerra Mundial, mas os italianos reconquistaram-no e só o perderam na Segunda Guerra. E D"aietti sente-se outra vez às portas de uma guerra, só que desta vez a guerra e a pobreza mandam gente.
Um paraíso quase falido
Os que vêm da Líbia dizem que a Líbia é o inferno. Ao pé desses, os que vêm da Tunísia só podem falar em purgatório. Uns e outros encaram a ilha do velho D"aietti - de nome artístico Pino Di Lampedusa - como uma porta para o paraíso. Deve D"aietti dizer-lhes que "o paraíso faliu"?
Maurizio abriu até as portas da sua casa. Uns dormiam lá. Um foi para um centro de identificação e expulsão em Nápoles e escapou - está com um primo em França. Outro foi para um centro de identificação e expulsão em Crotone e ainda lá está. Mandam-lhe notícias por telemóvel. Um deles promete voltar um dia a Lampedusa, "de limusina". Maurizio ouvia-o verbalizar sonhos de luxo enquanto usava o seu chuveiro e gozava-o: "Estou a ajudar um capitalista de merda!"
Kamel também nos vai dando notícias por sms, desde o centro de primeiro acolhimento, que antes tinha os portões abertos e agora nem deixa sair desembarcados nem deixa entrar jornalistas. Segunda-feira de tarde: "Desculpa, fiquei sem bateria. Estou preso aqui dentro." Terça-feira de manhã: "Ajuda-me. Estamos em muito más condições." Terça-feira de tarde: "Isto é uma miséria. Talvez hoje nos passem para outro centro." Quarta-feira de manhã: "Sem roupa, sem cigarros, sem dinheiro." Quarta-feira à noite: "Parece que nos vão dar uma autorização de seis meses que permite entrar em qualquer país da União Europeia. Sabes alguma coisa sobre isto?"
Reconhecendo que o fluxo não é um assunto de Itália, é um assunto da União, a Comissão Europeia lançara a ideia na segunda-feira. Para grande irritação de França, na quarta-feira, Itália aprova-a: autorizações temporárias para o Espaço Schengen. Entretanto, o ministro Roberto Maroni anuncia um novo acordo com a Tunísia, país de origem de 21.519 dos desembarcados no arquipélago entre 1 de Janeiro e 6 de Abril de 2011.
Na ilha, na quinta-feira, o debate na câmara de deputados é seguido com atenção pelos televisores. Maroni acha que a oferta de material e o reforço da cooperação entre forças policiais ajudará a "fechar a torneira". Espera que os tunisinos que desembarcarem a partir de agora possam ser repatriados de forma simplificada. Para os já desembarcados, dois destinos: quem tem cadastro fica detido até ser repatriado; quem tem ficha limpa e deseja alcançar outro país da União será libertado.
Quem conhece africanos que há pouco fizeram uma destas arriscadas viagens que custam entre 1000 e 1500 euros entretém-se agora a traçar cenários. Kamel poderá reunir-se aos pais e aos irmãos mais novos, em Estrasburgo. Raouf poderá procurar um dos dois irmãos, em Paris. Walia talvez não consiga juntar-se aos filhos, em Londres.
Walia chegou segunda-feira à noite ao porto velho de Lampedusa. Viajou num barco de pesca com outras 62 pessoas, incluindo três raparigas. Minutos antes atracara um com 52 pessoas, incluindo três menores. Tem 32 anos e uma vontade enorme de abraçar os filhos que não vê há três anos. Não diz o que fez. Diz que cometeu um crime e que foi expulso de Inglaterra, onde vivia desde 1997.
O rapaz alto e encorpado fala inglês com um sotaque muito britânico. "Não queria vir desta maneira, mas não tinha outra hipótese de voltar para a minha família." Tem um filho de 11 anos, outro de nove. As autoridades tunisinas não o preocupam: "Eles vêem os barcos a sair e não fazem nada." O que o preocupa é o cruzamento de dados. Itália fotografa e tira impressões digitais a cada um. E as polícias da União Europeia "estão todas feitas umas com as outras".
Os que tinham medo de aparecer podem começar a sair dos esconderijos. Como o rapaz que desembarcou há 20 dias e se refugiou numa casa particular. Vítima de violência brutal, não quis arriscar ser repatriado. E o italiano que o acolheu dava voltas à cabeça sem descobrir uma forma de regularizar a sua estadia. Teria de entrar legalmente no país, a pedido de alguém que lhe desse um contrato de trabalho, mas já ali estava, sem contrato, sem bilhete de identidade, sem passaporte.
Quinta-feira, 7 de Abril, Lampedusa amanhece com 1100 clandestinos fechados no centro de acolhimento ou na antiga base militar. Quantos terá ao anoitecer? Quantos terá no sábado, quando o primeiro-ministro aqui regressar? Amanhã logo se vê. Depois de amanhã logo se vê. Hoje, Kamel ainda pergunta: "Há alguma novidade?" Bem-vindo a Lampedusa. Um dia de cada vez.
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