António Jorge Gonçalves
Sei mais sobre as mulheres desde que sou pai de uma rapariga, com a experiência de partilha da gravidez e do nascimento. Estávamos habituados a uma dinâmica sem divisão típica de género, mas o meu lado masculino e o lado feminino da Sandra [Celas] vincaram-se. Não foi uma coisa assimilada nem a necessidade de desenvolver um papel social, era uma coisa que vinha da natureza. Passei a ter um instinto desmesurado de protecção sobre ela e sobre a bebé. Há todo o cocktail hormonal, as mulheres revelam-se muito na maternidade, em todo o seu esplendor e miséria.
Eu achava que a questão do género era definida socialmente e é espantoso, porque há uma data de coisas que estão lá. Quando ela começou a andar e eu passei a ir com ela ao parque, era impressionante o contraste. Os miúdos estão com aquela energia de testosterona, desde que tenham dois carrinhos para chocar um com o outro estão contentes. As raparigas andam por ali, olham, tentam interagir. Deve ser dessa manta de retalhos que é a genética. Agora consigo ver que ela está a copiar muitas coisas, a beber muito da nossa energia, do nosso estar, mas mesmo a dormir a linguagem corporal dela é muito feminina. Não é uma projecção nossa, é qualquer coisa que está lá.
Nunca convivi muito bem e continua a aborrecer-me o baralho masculino, no fim da adolescência, cheguei a perguntar-me se não seria homossexual. Estou a falar de um estar, umas conversas, uma linguagem corporal, um tipo de humor que mesmo no meu meio artístico não é muito diferente e que se manifesta até nas pessoas mais sofisticadas e insuspeitas.
No meu trabalho Subway Life [Subway Life - Desenhando Pessoas nos Metros do Mundo, Assírio & Alvim, 2010], em que desenhei pessoas no Metro em diferentes cidades do mundo, senti muito essas diferenças. As mulheres têm menos medo do ridículo do que os homens. Há na maneira de vestir e de estar, um cultivo estético mas também um espaço para a imaginação e a efabulação. Uma mulher muito gorda pode facilmente vestir roupa justa, uma mais velha pode usar o cabelo e a roupa que usava quando era menina, e há um acto de fé, de imaginação, de acreditar "se me visto assim, sou assim". A mulher abraça a fantasia sobre si própria, o homem está mais preocupado em vestir-se como os outros para não considerarem que está a mijar fora do penico, para ser aceite, por isso gosta de fardas, de tudo o que os nivela.
No meio típico profissional em que os homens vestem fato e gravata, se um se veste de linho branco vai ser motivo de chacota, pode ser ostracizado, não é tolerado. As mulheres têm uma despreocupação maior, uma capacidade de assumir a variedade. Claro que isso tem a ver também com a indústria, ou a indústria tem a ver com a característica das mulheres.
Enquanto desenhava no Metro, havia para mim uma classe muito típica, as mulheres jovens. Elas eram sempre os melhores modelos, gostavam de ser desenhadas. Eram os momentos mais alegres. Mesmo quando fingiam que não se estava a passar nada, fechavam a cortina da bolha urbana, mas eu conseguia sentir, em pormenores como o ajeitar do cabelo ou mudar a posição das pernas. Há uma consciência muito evidente na mulher jovem acerca do que é ser-se olhado. Nas mulheres a partir de certa idade pode ser o efeito contrário - uma mulher que foi vaidosa pode sentir-se perturbada por ser observada, pode haver uma tensão de passagem, de quem ainda não abdicou de uma ideia de corpo que tinha, ainda não abraçou a ideia de velhice.
Quase todas as mulheres que conheci nas várias cidades me falaram de uma coisa que os homens fazem: abrir as pernas e deixá-las sem espaço. A maior parte dos homens não tem muito apurada a noção de ser olhado, que supõe a capacidade de nos colocarmos na posição do outro, de imaginarmos como o outro está a ver. Tal como os japoneses, tenho a crença de que o espelho é a alma, a essência da mulher. No relacionamento com o espelho, dá para compreender muito acerca do comportamento feminino. E o espelho é a devolução de um olhar simétrico. Quer passem muitas horas ao espelho quer não, essa capacidade de usarem o outro como uma câmara que lhes é exterior é intrínseca às mulheres.
Mais do que o que me atrai numa mulher, poderia falar do que invejo. As mulheres têm uma propensão mais hedonista, há um carácter soturno no mundo masculino. Eu gosto muito da figura da velha gaiteira, dessa capacidade não só de vibrar como de querer continuar a vibrar, mesmo que às vezes não me consiga sintonizar com isso, e é aí que eu invejo.
A maternidade é a inveja maior e não é só minha, é masculina. Embarco na ideia de sociólogos e psicólogos de que parte do comportamento masculino em relação à mulher é um efeito colateral dessa inveja. Há qualquer coisa de espantoso, é uma coisa estapafúrdia, de repente um ser aqui dentro, e os órgãos mexem-se todos, criar um ser até estar praticamente autónomo e pronto a sair.
anasdiasg@gmail.com
A partir de uma entrevista com o desenhador