Os LCD acabaram mas nunca falharam

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L RUI GAUDÊNCIO

Dia 2 de Abril, os LCD Soundsystem deram o seu último concerto. Despediu-se a banda mais relevante da primeira década do século XXI

Citamos de cabeça. James Murphy: "Esta é a nossa última canção." Público: "Oooooh!". James Murphy: "Deixem-me esclarecer uma coisa. Estava mesmo agora a dizer à banda que, quando dissesse isto, toda a gente ia exclamar "oh, não!". Não é assim." Pausa. "Esta é a nossa última canção." Público: "Yeeaaaah!". Semanas antes, os LCD Soundsystem tinham anunciado o seu próprio funeral (leia-se, último concerto), e quiseram fazer dele o "melhor de sempre". Aconteceu dia 2 de Abril, no Madison Square Garden, em Nova Iorque, e as palavras de James Murphy foram proféticas.

Se não foi o melhor, foi seguramente um dos mais marcantes funerais de bandas de sempre. E falamos de um grupo que não vende aos milhões e que não é estrela planetária retratada em posters de Auckland a Lisboa. Ainda assim, a transmissão online do concerto, no site Pitchfork, foi um fenómeno universal, com milhões espalhados ligados à Net durante as mais de três horas de actuação.

Quando foi anunciado, os bilhetes para os 18 mil lugares da sala esgotaram em minutos. Muitos foram comprados por candongueiros e apareceram nos dias seguintes à venda por preços que atingiram os 1500 dólares (cerca de 1040 euros). James Murphy irritou-se: "Independentemente do que façamos, não vale a pena gastar esse dinheiro para nos ver", escreveu no Twitter. E agiu: marcou quatro concertos a preços acessíveis no Terminal 5, um clube nova-iorquino, para os dias anteriores ao grand finale. Um longo funeral, portanto. Como era devido à banda que melhor definiu a primeira década do século XXI, uma época de contaminações estéticas frenéticas e de estímulos disparados a todos, vindos de todas as direcções. A banda que representou o zeitgeist pop uma vez e outra e outra - ou seja, em LCD Soundsystem, Sound Of Silver e This Is Happening, os três álbuns editados. Acabaram porque James Murphy, estrela improvável - começou nos trintas, quando as estrelas rock já são consideradas veteranas, tem agora 41 -, quer ter tempo para se dedicar à sua editora, a DFA, e às suas produções, porque quer ter tempo para coisas mais prosaicas como, ouvimo-lo no Colbert Show, "fazer café".

Nos dias anteriores ao concerto do Madison Square Garden, multiplicaram-se os artigos na imprensa: o New York Times, a Les Inrockuptibles, o Guardian, a Esquire com o título Como James Murphy mudou a música, o influente site Pitchfork publicando um catálogo com ensaios sobre cada uma das canções da banda ou o crítico da Onion, Steven Hyden, escrevendo uma carta aberta a James Murphy onde se lia: "Não nos deste outra hipótese senão amar os LCD, porque construíste a banda de uma forma que a tornou impermeável à crítica."

Como é que isto aconteceu? Como é que a banda de culto que, depois do primeiro single, o fundador Losing my edge (2002), demorou três anos a editar o álbum de estreia, conseguindo manter o sentido de urgência e erguendo-se como farol da música popular urbana, se transformou em ícone de uma década? James Murphy, o baterista de bandas indie nos anos 1990, o muito requisitado técnico de som de bandas punk, o criador que descobriu motivação para gravar música quando se deparou com o french touch dos Daft Punk, é o melómano irritado com a mediocridade à sua volta que soube como transformar a colecção de discos em motor criativo. Steven Hyden, na supracitada carta aberta: "Fizeste como Godard, criticando a arte ao fazer melhor arte."

Comunhão em Nova Iorque

Mergulhemos no concerto do Madison Square Garden. Mais de três horas de duração. Três Arcade Fire como convidados, a fazer os coros de North american scum, um comediante, Reggie Watts, a acompanhar a banda em 45:33, a peça que Murphy compôs para a Nike, e dezenas de pessoas em palco, com coro, quinteto de metais, teclistas, guitarristas, percussionistas, os Juan McLean e os Shit Robot, bandas da DFA.

Viu-se o stream na net, viram-se depois os vídeos que vários colocaram online. A gigante bola de espelhos, capa do álbum de estreia, descendo sobre o palco. O público que não parou de dançar durante três horas. James Murphy em fato de mestre-de-cerimónias cantando as suas lúcidas ironias que escalpelizam a cultura pop e o seu quotidiano, cantando as canções, como a fulgurante Yeah, que são micromanifesto punk onde a força do som dispensa a palavra.

Vejamos mais perto. Por dentro. "Aquilo que me impressionou mais na experiência toda foi o sentido de comunhão do público. As pessoas estavam ali numa lógica de devoção festiva. Absorver tudo, dançar até cair." Pedro Fradique, programador do Lux, esteve no concerto do Madison Square Garden e em dois dos concertos no Terminal 5. Foi convencido pela afilhada de 18 anos, "megafã" - e, neste exemplo particular, o padrinho de 40 anos e a afilhada de 18, espelha-se a transversalidade que a banda atingiu. De qualquer forma, Pedro Fradique tinha de ir. Por isto: "O ambiente à volta do Madison Square Garden, com todos vestidos a rigor, de branco ou de preto, como ele [James Murphy] tinha pedido, ou com fatos de panda, como no teledisco de Drunk girls. Sentia-se a excitação mesmo antes de começar." E também por isto, quando a festa começou: "Ficavas indeciso entre olhar para o palco ou para o público. Foi comovente, havia gente a chorar... Comecei atrás e acabei lá à frente. Fez-me sentir um adolescente. Eles conseguem essa proeza e isso tem um valor imenso." Porque "não é um regresso à juventude", explica. "Estamos mais velhos, mas ouvir aquela música não é um prolongamento artificial da juventude. É a reconfirmação da capacidade de a música juntar as pessoas e transcender o seu momento. Que sentido faz ir ver a tua banda preferida aos 40 anos? Faz sentido porque eram eles, porque os vimos no auge e não na digressão de reunião. É como ter visto os Rolling Stones nos anos 1960, em vez de os ver hoje."

O hiperactivo James Murphy

Em 2001, o nova-iorquino James Murphy e o inglês radicado em Nova Iorque Tim Goldsworthy fundaram a DFA Records. Pouco depois, produziram House of jealous lovers para os Rapture, canção que pegava no legado pós-punk do início da década de 1980 e o revirava com o baixo pulsante, uma sensação geral de rave e um cowbell (chocalho) que se transformaria no instrumento mais cool da nossa história recente. Nas mãos de Murphy, a canção transformou-se num sinal de futuro: não havia rock ou electrónica, não existia diferença entre suor de banda garage e suor de pista de dança. Num momento em que, como dizia James Murphy em entrevista ao Ípsilon, em 2005, não era "fácil competir com a acumulação do passado" - ainda para mais, estando todo ele acessível no mundo imenso da Net -, os LCD Soundsystem, uma ideia de Murphy, que compôs, gravou e produziu toda a música da banda, com o auxílio de amigos talentosos, tornaram-se um milagre melómano. Neles, coabitavam o rock"n"roll e o punk, a house e o techno, o kraut rock e o disco. Coabitavam Roxy Music, Can, Derrick May, Beatles, Daft Punk, The Fall, Chic ou Talking Heads.

Em tempos de sucessão de micro-revivalismos, com os Strokes iniciando um regresso à urgência das guitarras, via Velvet Underground, com os Interpol apontando ao tom soturno dos Joy Division, os LCD Soundsystem sintetizaram tudo e, ao fazê-lo, concentraram em si aquilo que eram e que são os tempos que vivemos, onde, além de uma Lady Gaga, já não há verdadeiramente estrelas de massas e planetárias ou movimentos dominantes. James Murphy, anafado trintão agora quarentão, casado, era um tipo como nós, sem nada que o distinguisse para além (pormenor imenso) de uma capacidade impressionante para transformar cada canção numa epifania pop e de, com humor, sentido de timing e atenção ao detalhe, captar em letra a "espuma dos dias": o sentimento anti-americano em North american scum, a obsessão com a higienização da vida urbana em New York I love you, but you"re bringing me down, o tédio e a glória do envelhecimento em All my friends.

Pedro Fradique, que conviveu com James Murphy aquando das suas passagens por Portugal e que esteve com ele em Nova Iorque, descreve-o como "uma das pessoas mais lúcidas, inteligentes e hiperactivas" que conhece. Fala-nos de um perfeccionista com um conhecimento impressionante, que chegou à ribalta, sem a procurar, vindo dos bastidores. "Hoje em dia, é super-solicitado, mas veio do outro lado. Viveu muito os palcos como técnico de som ou roadie antes de ser ele mesmo o centro das atenções." Talvez por isso seja, diz, tão disponível e acessível.

Sem se repetirem

Entre 2002 e 2011, os LCD Soundsystem editaram três álbuns. LCD Soundsystem (2005), Sound Of Silver (2007) e This Is Happening. Sem nunca se repetirem, sem nunca termos a sensação de que o seu tempo já passara. Precisamente o contrário: eles "eram" o seu tempo, pairando acima de todos os outros, que se "limitavam" a ser uma face entre essa multidão interminável que compõe a música popular dos nossos tempos. Faziam-no nos discos, marcos preservados para o futuro, e faziam-no em concertos que vivíamos como uma celebração frenética e inesgotável.

A ambivalência de James Murphy quanto à sua posição no meio musical foi-se diluindo com o tempo. Citamo-lo de uma entrevista ao Ípsilon, em 2007: "Muitas vezes penso: "O que estou a fazer a competir com bandas pop adolescentes?", e outras parece-me que tenho a actividade mais fascinante do mundo. Mas sinceramente já não vivo angustiado com isso." Quando anunciou, pouco após a edição de This Is Happening - título curioso para a despedida -, que aquele seria o último álbum da banda, não o fez por se sentir esgotado. Conhecedor que é da história pop, quis sair quando ainda é relevante, quis sair quando a sua banda ainda está no topo. O facto de a saída de cena ganhar a dimensão de fim de uma era é revelador da importância do seu percurso.

Dia 2 de Abril tornou-se oficial. Foi o dia do último concerto dos LCD Soundsystem. James Murphy continuará a gravar, a solo ou sob outro nome, continuará a produzir, continuará activo, mas aquela data já reservou lugar na história da pop.

Em 2005, dizia ao Ípsilon: "Voltei a fazer música de dança porque finalmente parecia haver música que tinha uma razão para ser criada. "Vou fazer as pessoas dançar com isto". Se as pessoas não dançarem, é um falhanço, se dançarem, é um sucesso."

Registe-se: os LCD Soundsystem de James Murphy nunca falharam.

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