Um apartamento para Tchékhov

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Irina (Sara Carinhas) é a mais nova das três irmãs, e a última a sucumbir à perda de todas as ilusões

Foi escrita há 100 anos, mas é de hoje porque fala de pessoas, das coisas que as elevam e as derrubam, do amor e da perda, do que fica depois de todas as ilusões. Nuno Cardoso põe fim à sua trilogia de Tchékhov com "As Três Irmãs", um texto que o deixou inquieto. Tem estreia na quinta-feira, no D. Maria II. Lucinda Canelas

O mundo delas acabou. E isso aconteceu há 11 anos, quando foram obrigadas a trocar Moscovo por aquela capital de província desinteressante e longe de tudo, onde agora fazem uma festa para Irina, a mais nova das três irmãs. Olga tenta parecer alegre, mas Macha nem se esforça. Naquele universo em perda tudo soa a falso, menos o que une aquelas três mulheres que Anton Tchékhov criou em 1901 depois de ter prometido que nunca mais escreveria para teatro.

Nuno Cardoso, o encenador que assina a versão de "As Três Irmãs" com estreia esta quinta-feira no D. Maria II, em Lisboa, acredita que o dramaturgo russo escreveu a peça com uma inesperada sensação de liberdade e que isso explica, em parte, o caos aparente em que vivem todas estas personagens que o Ípsilon foi encontrar num ensaio na cave do teatro, quando alguns dos actores andavam ainda à procura de uma voz para lhes dar.

Com "As Três Irmãs", Nuno Cardoso põe fim à sua trilogia de Tchékhov - um projecto que a princípio julgava impossível de concretizar - que começou com "Platónov" e passou depois para o palco inundado de "A Gaivota", um espectáculo feliz. ""Platónov" e as suas microcenas foram o tubo de ensaio de tudo", diz o encenador. Nessa peça, em que o protagonista é confrontado com o seu próprio falhanço, Cardoso encontra muitos paralelos com a sua própria geração, a que hoje tem 30 e tal anos e muita coisa ainda por definir. ""A Gaivota" traz outro Tchékhov, numa reflexão sobre as potencialidades de transcendência do teatro. É optimista e luminosa, como se fosse feita de recomeços. Agora tudo é mais feio, menos solar. "As Três Irmãs" é sobre o fim, sobre três mulheres que me parecem fogo, sempre em tensão. Três mulheres muito diferentes, como as Três Graças, mas que às vezes funcionam como uma personagem colectiva."

Olga (Maria do Céu Ribeiro), a mais velha, é professora, a cabeça da casa desde que o pai, um general, morreu. É ela que assume o papel maternal (perderam a mãe quando eram ainda pequenas), mesmo sabendo que tudo vai correr mal e que não vão regressar a Moscovo. Macha (Isabel Abreu), a única casada, "está à espera de ser salva" e deposita no tenente-coronel Verchínin, um cobarde por quem se apaixona e que não pára de lhe impingir ilusões, todas as suas esperanças de mudar de vida. Irina (Sara Carinhas) começa por representar "o viço da juventude" mas, à medida que a peça avança e os anos passam, torna-se adulta e deixa-se cair na normalidade, aceitando casar com Tuzenbakh (Luís Araújo), um barão que não ama e que acaba por morrer.

Um país em falência

É a casa destas três irmãs - e do seu irmão Andrei (Sérgio Praia), um homem brilhante que troca o sonho de uma carreira na ciência por um emprego medíocre no município, uma mesa de jogo e um casamento com Natacha (Micaela Cardoso) - que Tchékhov transforma num espelho da Rússia na viragem do século XIX para o século XX, falando do trabalho como hipótese de libertação e fazendo das relações frustradas - não há aqui nenhuma história de amor que resulte - a metáfora de uma país em falência. "Nós somos três irmãs, a nossa vida ainda não foi bela, abafou-nos como uma erva daninha... Correm-me as lágrimas... Isto não é preciso... Trabalhar é que é preciso, trabalhar", diz Irina a um Tuzenbakh que uma vez mais se confessa por ela apaixonado.

Nuno Cardoso pega no texto e constrói um universo doméstico frenético, em que muitos dos elementos que compõem a cenografia (F. Ribeiro) transitam de "Platónov" e de "A Gaivota", como memórias de um processo longo que agora termina. "Algumas cadeiras - e também alguns dos actores - vieram das outras peças. Estão aqui para me lembrar como foi fazer isto", explica. "Esta trilogia transformou-se numa espécie de apartamento alugado que eu usei durante três ou quatro anos."

Em Lisboa sente-se em trânsito, um estranho num quarto de hotel, alguém que alugou a cidade para apresentar uma peça que o desafia permanentemente e que o leva a encenar um autor que descobriu aos 16 anos na biblioteca dos Bombeiros Voluntários de Canas de Senhorim. "Já passou muito tempo, mas há coisas em Tchékhov que continuo a não perceber. Ainda acho que ele é um gajo porreiro que sabia olhar para as coisas, mas sinto que os meus recursos são muito limitados para lidar com os textos que ele escreveu." Foi assim com "As Três Irmãs", uma obra que Nuno Cardoso diz compreender em termos emocionais, e "A Gaivota", muito mais estruturada: "São dois textos muito diferentes. "As Três Irmãs..." é muito violento, sujo, confuso. "A Gaivota" é depuradinha, mais formal."

Fim de ciclo

Apesar de terem naturezas distintas, seguiu a mesma estratégia na abordagem do texto - criar condições para contar no palco de um teatro uma história que se passou há 100 anos, a partir de uma reflexão sobre o presente. "Nunca fiz Tchékhov a pensar noutra coisa que não fosse em Portugal. Não sei se é por causa da vaidade, mas tudo o que fazemos em teatro é sobre nós." Nuno Cardoso parece com isto dizer que todos conhecemos cobardes como Verchínin, fanfarrões como Solióni (Vítor d"Andrade), mulheres bonitas (Irina) e mulheres perdidas (Macha), solitários como o doutor Tchebutíkhin (João Grosso), homens fracos como Andrei ou infinitamente nobres como Tuzenbakh. Também nós - e Portugal - parecemos em fim de ciclo, com a crise política, económica, ética.

"Olga, Irina e Macha funcionam como objecto de experiência e os outros que por ali gravitam são como catalisadores - deitam-se na substância para ver como elas reagem até ao fim." E, no fim, as irmãs acabam por ceder. Já não há nelas qualquer ilusão de regresso a Moscovo. A cidade está deserta - o regimento militar foi deslocado, e com ele todos os alferes, capitães, e até Tchebutíkhin, a referência paternal de que elas abdicam a custo. As três cedem, é verdade, mas não deixam por isso de acreditar que o futuro ainda lhes pertence. "Oh, queridas irmãs, a nossa vida ainda não acabou", diz Olga. "Havemos de viver! A música toca tão alegremente, tão animada, e parece que daqui por pouco tempo saberemos porque é que vivemos, porque é que sofremos... Se a gente soubesse, se a gente soubesse!"

Nuno Cardoso vê neste final "um grito de liberdade", não de resignação. "Não tinha consciência de que a peça era tão angustiada", acrescenta. "Com este texto nunca tive uma sensação de controlo, nunca pude relaxar. Ele desassossegou-me. E isso acontece-me muito em Tchékhov - nunca se pode baixar a guarda. Se baixamos alguma coisa é a crista. Ele ensina-nos que é importante chegar às pessoas e que, nesse processo, a inocência faz mais falta do que a arrogância."

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