O Maus Hábitos passou de experimental a indispensável em dez anos
Esta é a história de um espaço que teve a programação e a criação cultural como matriz, mas cujo bar acabou por ser precursor da movida da Baixa do Porto. João Fernandes, director do Museu de Serralves, e Miguel Guedes, dos Blind Zero, elogiam a resistência do projecto
a No final dos anos 1990, os GNR de Rui Reininho ensaiavam no salão nobre do agora Maus Hábitos, ali mesmo em frente ao Coliseu do Porto. Porém, as condições cada vez mais degradadas do edifício forçaram o grupo a abandoná-lo. O fotógrafo Daniel Pires descobriu-o em Julho de 1999, quando procurava um local para montar o seu estúdio. Quase dois anos depois, abria as portas do quarto andar da Garagem Passos Manuel com um projecto alternativo, que conjugava música, artes plásticas e performativas e ateliers. O bar surgiu por acréscimo. Nesse momento, a cidade era Capital Europeia da Cultura e o agora líder solitário do Maus Hábitos reconhece que muitas expectativas saíram goradas: "Muito ingenuamente, dizia à boca cheia que o Porto, dez anos depois, seria uma grande cidade".
A "falta de massa crítica" forçou uma viragem no rumo inicial, "ultra-experimental". No entanto, a cidade beneficiou do espírito criativo que emergiu dos escombros deste antigo escritório, como reconhecem os portuenses ouvidos pelo Cidades acerca desta efeméride. Ao longo deste percurso, o Maus Hábitos acolheu mais de 1300 concertos, cerca de 160 exposições e 200 performances, para além de milhares de artistas plásticos "que eram recusados nas galerias". Alguns deles foram mesmo acolhidos em residência. "Trouxemos uma forma de fazer e de estar aberta e libertária. Penso que levámos muita gente a mostrar-se, a fazer performances nos sótãos e nas salas de estar, concertos nas caves. Percebo agora que as pessoas valorizam muito a resistência e nós conseguimos resistir", resume o fotógrafo.
Copos e cultura
Há duas maneiras de olhar para o Maus Hábitos: como um bar que chegou a ser o primeiríssimo local da moda no Porto (precursor da Baixa enquanto espaço de diversão nocturna de massas) ou como um amplo espaço de criatividade onde cabia (e ainda vai cabendo) quase tudo. E é devido a esta segunda categoria que o projecto ganhou admiradores como João Fernandes, director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves: "Notabilizou-se como um espaço de apresentação de jovens artistas portugueses, de grande generosidade, proporcionando ainda algumas plataformas de intervenção para artistas vindos de fora. Uma das lacunas do Porto era a inexistência de locais de acolhimento de projectos emergentes, de novas propostas. Para além disso, é um espaço de magnífica arquitectura, como outros fechados e desaproveitados no Porto". Miguel Guedes, vocalista dos Blind Zero, é outro habitué da casa, onde já tocou: "Penso que o facto de ter sido precursor do actual movimento nocturno foi um acaso histórico. Recordo o Maus Hábitos, essencialmente, como um lugar com muitas salas, actividades diferentes em simultâneo e que até corria o risco de se perder pelo sobredimensionamento".
O Maus Hábitos está inserido no centro de um triângulo cultural que compreende o Coliseu, o Teatro Nacional São João e um Rivoli momentaneamente sem identidade. Para além disso, existe ainda o Cinema Batalha, actualmente fechado, e o bar Passos Manuel. O proprietário deste último espaço, António Guimarães, assinala a criação de um pólo cultural do lado nascente da Avenida dos Aliados, diferente da "socialeca" e dos "copos" da zona dos Clérigos: "O Maus Hábitos foi importante na cidade e único, ao lado do Passos Manuel, na sua preocupação social, especialmente nos primeiros cinco, seis anos. Aqui, há mais do que cerveja para a rua a preço barato. Temos características diferentes, porque as pessoas que o gerem são diferentes, mas é bom tê-lo como vizinho".
Curiosamente, ao falar do Maus Hábitos, quer João Fernandes quer Miguel Guedes recordam o anterior projecto de António Guimarães, o Aniki Bóbó, bar localizado em plena Ribeira e que acolheu concertos, performances e outras manifestações culturais, entre meados dos anos 1980 e 2005. "Sentíamos que naquele quarto andar estava parte do património do Aniki Bóbó e do Meia Cave (bar vizinho), uma espécie de contra-cultura e afirmação da inteligência. Foram muitas noites, belos momentos, num enorme espaço de liberdade, convívio e respeito pela diferença. Tenho algumas saudades dessa loucura", recorda o músico.
João Fernandes usa a comparação para desvalorizar o papel do Maus Hábitos na reanimação nocturna da Baixa: "Nesse sentido, não me parece que tenha sido pioneiro. Não foi muito diferente do que era o Aniki Bóbó nos anos 1990 ou do que era o Frágil em Lisboa. A vida nocturna não é cultura. O Maus Hábitos e o Passos Manuel são excepções da vida cultural portuense". Ainda assim, António Guimarães julga que a explosão do número de bares que aconteceu nos Clérigos "podia muito bem ter acontecido" em volta da Praça dos Poveiros, a poucos metros.
Daniel Pires não esconde que há um "problema de sustentabilidade" no Maus Hábitos. Da Câmara do Porto, diz ter apenas recebido "26.000 euros de multas e nove anos sem resolver o problema do licenciamento". Não se importaria de abdicar do bar e apostar na criação e nas oficinas, mas a realidade fê-lo seguir em sentido inverso, com o alargamento à restauração e a criação de programas mais voltados para os turistas, de que são exemplo as noites de fado. A verdade é que, sem as receitas do bar, não haveria programação.
Para anular esta dependência, a formação será incrementada: "A sala de espectáculos tem de se tornar também numa sala de ensaios e os laboratórios vão ser mais criativos e destinados a um público mais jovem, dos sete aos 14 anos. Captámos uma geração, mas estamos com dificuldades em captar a próxima". Para além disso, serão valorizadas as parcerias e a consultadoria cultural, tirando partido do "saber fazer" acumulado. "Queremos olhar mais para fora do que para dentro, saltar para fora desta ilha", anuncia o fotógrafo. Para já, está prevista uma colaboração com Guimarães 2012 - Capital Europeia da Cultura.
A programação comemorativa do décimo aniversário, que se iniciou na quinta-feira, pretende, mais do que olhar para o passado, antever o futuro. Hoje realiza-se uma manifestação "contra e a favor de todas as causas" (14h30, na Praça dos Poveiros), uma feira de edições independentes (a partir das 15h00), uma matinée dançante e uma milonga. Pela noite dentro, há DJ. A "grande noite da interrogação" encerra as festividades com a "prata da casa", no Coliseu, na quarta-feira (21h30). Pedro Abrunhosa, Blind Zero, Rui Reininho e Paulo Praça terão a companhia de Ugia Pedreira, uma cantautora da Galiza, e Fred Martins, um compositor carioca.