Não é preciso muito tempo, bastam dois ou três planos (até que o boi amarrado se solte e se aventure por uma floresta filmada em "noite americana", ou que assim parece) para se ter a sensação, muito clara, muito nítida, mas também, como dizer, muito calma, de que "O Tio Boonmee que se Lembra das suas Vidas Anteriores" é uma espécie de janela que alguém abriu, uma corrente de ar fresco soprada sobre a tristíssima avalanche de entulho que semanalmente se abate sobre o chamado "circuito comercial".
É um filme extraordinário, em todos os sentidos da palavra, um filme que devolve o cinema à sua (quase) esquecida vocação demiúrgica. É verdadeiramente um filme de "criação", de criação de um "mundo". E se com isto evocamos o que Godard escreveu, há muitos anos, sobre o "Índia" de Rossellini (que se tratava do "filme da criação do mundo"), fazemo-lo porque "O Tio Boonmee", no seu trabalho sobre o folclore, a mitologia, a história, empregues como maneira de "dobrar" a realidade sobre a sua própria fantasia (ou vice-versa), tem momentos em que nos traz o filme de Rossellini à cabeça - e evidentemente não apenas por, também aqui, os animais falarem (coisa que provavelmente desde o filme de Rossellini eles não faziam tão bem).
Lembra-nos mais coisas: Disney (o Disney genuíno), Powell / Pressburger, o "Brigadoon" de Minnelli, e claro, os indianos, certas coisas de Satyajit Ray ou Ritwik Ghatak, influência maior do cinema tailandês que talvez Apichatpong Weerasethakul nunca tivesse denunciado desta maneira. É assim tão especial, como são especiais os momentos, cada vez mais raros, em que sentimos o cinema a reencontrar-se consigo próprio. De resto, Apichatpong disse que "O Tio Boonmee" era a sua "pequena lamentação" pelo cinema. Voltaremos a ela, porque parece condensar-se no derradeiro plano.
O observador distante totalmente alheado do folclore e das tradições tailandesas, em vez de lamentar que a sua ignorância o condene a ver "O Tio Boonmee" como um objecto hermético, deve congratular-se por isso mesmo: está em óptima posição para remeter tudo o que não percebe para o "folclore e as tradições tailandesas" e limitar-se a apreciar o que vê. É mais misterioso, e se calhar ainda mais belo, assim. E no entanto, perfeitamente claro: é como dizia Jean Douchet nos anos 50, não precisamos de "aprender japonês" para perceber Mizoguchi, basta que "aprendamos Mizoguchi". Precisaremos, de facto, de saber alguma coisa da Tailândia para perceber o fabuloso intróito da princesa desfigurada à procura da sua imagem "redimida" pelo reflexo nas águas do lago? Ou por que razão foi o Tio Boonmee, numa vida anterior, um peixe-gato? Ou porque é que os homens-macacos de olhos que brilham no escuro confraternizaram e tiraram fotografias com os soldados que andavam pela floresta a matar comunistas? Claro que não, basta que saibamos "aprender Apichatpong".
E o "Apichatpong", aqui, é um cinema funde todas as ordens de realidade, o vivido e o sonhado, a experiência e a imaginação, a profundidade e a ligeireza, a metafísica e o aparte anedótico (a não negligenciar, o seu sentido de humor, que já conhecíamos pelo menos desde "Síndromas e um Século), com uma graça, uma delicadeza e um equilíbrio pouco menos que perfeitos. O Tio Boonmee, que está moribundo (mal dos rins), evidentemente não morre; ou por outra, a morte entrega-o ao que foi a sua vida, aos seus fantasmas, aos seus remorsos, aos seus desejos, às suas memórias, que se materializam por acção combinada do cinema e da natureza. É isto "O Tio Boonmee", é isto "o Apichatpong". E os que ficam depois dele, pobres diabos, ficam especados em frente a um minúsculo ecran de televisão. É o derradeiro plano.