Quantas pessoas se indignam com a frase "não aguentava mais a velha, meti-a num lar"?
Mário, 80 anos. O filho tirou-lhe o telemóvel e os documentos para ele não conseguir voltar à aldeia onde queria viver. Claire, 76. Durante anos, o filho ignorou-a, dentro da sua própria casa. Um dia deixou-a trancada... na rua. Rosa, 80. Terá sido agredida num lar. Como castigo por ter caído e partido a cabeça. Técnicos e vítimas contaram-nos as histórias que estão por detrás de números como este: no ano passado, só à APAV, foram denunciados 1500 crimes contra pessoas com 65 ou mais anos, a esmagadora maioria de violência doméstica.
Naquela noite, o filho foi especialmente agressivo. "Fiquei desorientada. Saí de casa e meti-me no carro. Fui dar uma volta. Entrei num bar muito fino, muito sossegado. Pedi um gin tónico, bebi, fui-me embora. Quando cheguei a casa, quis abrir a porta. A porta da casa que comprei, onde vivo, mas que está no nome do meu filho. Estava trancada por dentro. Toquei à campainha, bati, chamei, gritei. Acordei os vizinhos. Nada. Era de noite e eu não sabia para onde ir." Claire, 75 anos, acabou numa esquadra de polícia a fazer o que até ali lhe parecia impensável. A pedir aos polícias que obrigassem o filho de 37 anos - o filho que adora - a abrir a porta da casa que é dela.
Claire (é por esse nome que quer ser tratada) é uma mulher de cabelos muito brancos, de voz rouca, de rosto marcado, sem maquilhagem. Gosta de ler e de pintar, mas, por estes dias, não lê nem pinta - o cavalete está abandonado num canto da sala da casa onde vive, na zona de Sintra. "Às dez da manhã, às cinco da tarde e às dez e meia da noite, saio para passear o cão. O resto do dia passo-o sentada. E faço palavras cruzadas."
É acompanhada num dos gabinetes de Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) que existem no país. Uma vez por semana, tem consulta com o psicólogo da associação. Está profundamente deprimida. Diz que a doença dela tem um nome: o nome do filho, que nesta reportagem não se revelará.
Aquela noite aconteceu há dois anos. Mas já lá regressamos. Claire precisa de tempo para contar a sua história e explicar como é que chegou aqui, a este gabinete pequenino. O abandono, os maus tratos, o desprezo, o isolamento, a violência que filhos podem ser capazes de infligir aos pais não surgem de um dia para o outro. Nem de uma noite para outra.
Abuso instalado
Um estudo financiado pela União Europeia revela taxas de abuso dos mais velhos particularmente altas em Portugal. Segundo o relatório final do projecto AVOW (Prevalence study of violence and abuse against older women, que abrange ainda a Finlândia, a Áustria, a Bélgica e a Lituânia), quatro em cada dez portuguesas com mais de 60 anos que responderam a um questionário, anónimo, por carta, disseram ter sofrido alguma forma de violência nos últimos 12 meses. A média nos cinco países foi de 28,1 por cento.
A violência emocional ou psicológica (32,9 por cento) foi a mais relatada nos questionários recolhidos entre 26 de Abril e 30 de Junho do ano passado para o estudo coordenado, em Portugal, por José Ferreira-Alves, da Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Segue-se a chamada "violência financeira" - que existe, por exemplo, quando alguém vê os seus rendimentos serem gastos sem o seu consentimento. Agressões cometidas por estranhos não foram consideradas neste projecto.
Os companheiros ou o marido, os filhos e as filhas, os genros e as noras são os agressores mais frequentes, continua o relatório. Um padrão que não diverge daquela que é a experiência da APAV. Um dos dados mais impressionantes das estatísticas fornecidas ao P2 pela associação é este: em mais de um terço dos 610 processos abertos no ano passado envolvendo homens e mulheres com 65 ou mais anos, os autores dos crime reportados eram os filhos das vítimas.
A julgar pelos relatos recolhidos, os maus tratos são, na maior parte dos casos, vividos em segredo. Mas têm consequências graves. Por exemplo: os sintomas de depressão são mais frequentes entre as mulheres que sofreram algum tipo de abuso, conclui-se no AVOW, que deverá ser publicado em breve. Os dados baseiam-se nos questionários preenchidos por 649 mulheres com mais de 60 anos - de um total de 1700 contactadas.
Mais do que as percentagens, diz Ferreira-Alves, é a tendência revelada que merece ser mais avaliada. "O abuso e a negligência, nas formas como os estudamos, de modo algum podem ser deixados sem mais estudos e sem intervenções nos domínios da saúde, social e jurídico." Afinal, continua, os dados mostram "que o abuso parece estar realmente instalado como possibilidade de acção contra as pessoas de idade".
Viver sozinha e pensar na morte
Claire foi mãe muito jovem, numa altura em que não tinha a vida minimamente organizada. Deixou o filho com os avós paternos. Não o viu crescer. Emigrou e construiu uma situação melhor do que a que tinha em Portugal, do ponto de vista material, mas pouco feliz. Outros dois filhos surgiriam mais tarde na sua vida. Foi a eles que se dedicou.
Quando tinha 51 anos, o segundo marido estava cheio de dívidas e abandonou-a. Claire viu-se obrigada a regressar a Portugal. Vendidas as mobílias, era obrigatório começar do zero. Começou. Trabalhou até aos 65, sem férias, nem tempo para procurar as amigas que muitas décadas antes deixara no país - "sabe-se lá onde andam, têm a minha idade..."
Descurou as relações sociais, porque a prioridade era ganhar dinheiro, recuperar algum conforto, comprar casa, carro, ajudar os dois filhos que viviam com ela e que iam crescendo.
A filha mais nova acabou por ir viver com um companheiro e afastar-se. O do meio foi ficando com ela, cada vez mais fechado, cada vez mais ríspido. "Chegava do trabalho, ia para o quarto, não falava. Saía do quarto para jantar, em silêncio, regressava ao quarto, às vezes dizia "vou-me deitar". Se tentava um carinho, sacudia-me. Não sei porquê." Sabe que, durante anos, foi assim.
Naquela noite, depois de ele ter gritado, depois de ela ter saído para beber um gin tónico e espairecer e de ele não a ter deixado entrar em casa, acabou na esquadra de polícia. "Perguntaram-me: "Em nome de quem está a casa?" Respondi: "No nome do meu filho. Por causa do crédito jovem..." Disseram-me: "Se está no nome do seu filho e ele não quer abrir a porta, ele está no direito dele.""
Claire entrou em pânico. O filho acabaria por abrir a porta nessa noite. Mas e se um dia não abrisse? "Foi isso que me fez vir em primeiro lugar à APAV." E nunca mais deixou de ser acompanhada. Diz que, às vezes, muitas vezes, pensa no suicídio. Porque sente uma "solidão insuportável".
O filho de Mário tirou-lhe os documentos
Dias depois de falarmos com Claire, entrámos numa outra sala pequenina, de um grande palacete. Estamos na Rua do Pau de Bandeira, em Lisboa, casa da Provedoria de Justiça.
Nesta sala de paredes brancas e uma janela pela qual entra a luz de um dia-quase-de-Verão está Paula Matos, 38 anos, a jurista que atende quem liga para a Linha do Cidadão Idoso (800 20 35 31). No ano passado, o telefone tocou 2706 vezes. Tocou por muitos motivos, alguns bastante graves, "algumas situações limite", nas palavras da também jurista na Provedoria Teresa Cadavez.
Tocou, por exemplo, por causa daquela filha que espancava os pais. "Tinha problemas mentais. Já nos têm aparecido casos assim." O que se faz nestas situações? Pede-se a intervenção do delegado de saúde, por exemplo, para apurar se é possível o internamento compulsivo do agressor.
Tocou também por causa daquele homem de 80 anos que vivia sozinho, na aldeia onde cresceu e envelheceu. "Até que, um dia, o filho resolveu preocupar-se e decidiu que o pai devia ir viver com ele, na cidade, para estar mais acompanhado. Quando o pai chegou, explicou-lhe: "Agora mando eu." E pôs o senhor num centro de dia."
Às vezes, Mário, chamemos-lhe assim, telefonava a uma irmã a chorar. "Não estava feliz, não conhecia ninguém." Queria voltar à aldeia. O filho não terá gostado de saber dessas conversas. E tirou-lhe o telemóvel. Acabaria também por lhe tirar a carteira e os documentos para travar qualquer plano de fuga que Mário tivesse na cabeça.
Quando o caso foi denunciado à linha do provedor de Justiça, foi contactada de imediato uma assistente do centro de dia, que chamou o filho. Não foi uma conversa completamente esclarecedora, mas Paula acredita que haveria motivações económicas para aquela súbida "preocupação" com o pai. Tempos depois, "o senhor acabou por voltar à terra".
Este filho nunca se terá apercebido que estava a violar um "direito fundamental" do pai, que é "o direito à autodeterminação", explica Teresa Cadavez. E Mário muito menos se terá apercebido de que estava a ser alvo de um comportamento que, à luz da lei, pode configurar um crime.
E mesmo que se tivesse apercebido... Muitas destas pessoas que recorrem à Linha do Cidadão Idoso, ou à da APAV (707 200 077), resistem até ao fim a apresentar queixa, sobretudo contra um familiar próximo.
Rita terá sido agredida. E morreu
Mas o telefone, tanto o do provedor como o da APAV, também toca, por vezes, para denunciar maus tratos em instituições. Em Maio do ano passado, seguiu para a Segurança Social o seguinte relato: Rita teria cerca de 80 anos. Vivia num lar na área metropolitana de Lisboa. Alguém denunciou que não só não cuidavam dela convenientemente - "não há cuidados com a higiene, na hora das visitas não deixam que as pessoas lá estejam até ao fim", relatou quem fez a queixa - como um dia algo de mais grave terá acontecido. "Caiu, partiu a cabeça, não a levaram ao hospital." Por ter caído, um funcionário "bateu-lhe duas vezes".
À Segurança Social a APAV pedia clarificação urgente da situação. Um mês depois, chegava a informação de que senhora tinha morrido. "Não tivemos mais feedback, não sabemos se a Segurança Social chegou a ir ao local", conta Maria de Oliveira, assessora técnica da direcção da associação.
Casos não faltam em que a APAV não sabe qual o desfecho das situações que encaminhou. Não quer dizer que não haja intervenção, acredita Maria de Oliveira. Mas, muitas vezes, a colaboração com as entidades oficiais termina depois da denúncia: "O trabalho em rede ainda tem que ser mais cultivado", defende.
Enquanto fala connosco, Maria vai folheando dezenas de folhas agrafadas. Cada molho corresponde a um processo. Desde 2008, o número de processos envolvendo pessoas com mais de 65 anos tem-se mantido estável, à média de 600 por ano.
"Na maior parte dos casos, os episódios de violência tendem a ser repetitivos", diz. E os números de 2010 espelham isso: há 600 vítimas contabilizadas, que terão sido alvo de... 1518 crimes - dos quais cerca de mil de violência doméstica pura e dura, uma dezena de sequestros, 141 crimes de ofensa à integridade física fora da esfera familiar...
Em cada processo são incluídas as denúncias, pedidos de intervenção ao Ministério Público, relatórios da Segurança Social e o que mais ajude a deslindar se uma denúncia é verdadeira.
Nestas folhas de papel, todas relativas a casos do ano passado, há alguém que suspeita que, na zona do Estoril, existe um lar ilegal a funcionar - conta que, à noite, se ouvem pessoas a chorar, mas que ninguém abre a porta. Outra pessoa assegura que, não muito longe do mesmo local, vive uma mulher de 74 anos, incontinente. Diz que passa os dias em casa porque o filho vai trabalhar e deixa-lhe uma chave "que não funciona", e que, quando ele está em casa, "lhe dá beliscões" e obriga-a a tomar "banhos de água fria".
Há ainda um processo de João, 90 anos, que pôs um anúncio no jornal a pedir uma "companheira que o ajudasse", porque ele tinha problemas de saúde - e, de facto, uma "companheira" apareceu, como que caída do céu, para lhe transformar a vida num inferno. "Ela diz que me mata", conta ele quando telefona à APAV. A polícia já foi a casa de João. "Disseram que não podem tirar a senhora de casa", conta Maria de Oliveira.
Rosa acha que a vão roubar
A fragilidade, a doença e o isolamento podem criar condições favoráveis à violência sobre os mais velhos - "pode haver circunstâncias de dependência ou de incapacidade que criam mais ocasião para que a negligência e o abuso se tornem possíveis", admite Ferreira-Alves. Mas o investigador recusa imputar apenas à idade "a forma como as pessoas idosas são tratadas, seja pelos filhos, seja pelos maridos". O seu estudo, que em breve será publicado, mostrará, de resto, que não há maior incidência de relatos de violência, à medida que se avança na escala etária dos idosos. O que há são relatos de abusos mais severos, mais frequentes, à medida que as vítimas envelhecem.
Paula Guimarães, jurista e professora de Gerontologia, acrescenta esta ideia: "Apesar de existirem muitos casos de filhos e netos que não correspondem nem retribuem o afecto e a disponibilidade que receberam por parte dos seus pais e avós, a verdade é que muitos dos idosos de hoje não souberam ou não puderam adubar adequadamente esta árvore genealógica. Não estiveram presentes, não deram amor, não transmitiram valores ou exemplos de entreajuda e de solidariedade intergeracional e, por vezes, foram pais ausentes, violentos e desatentos."
A jurista deixa um alerta inquietante, não muito diferente daquele que fez questão de deixar quando há semanas foi confrontada pelo PÚBLICO para comentar o caso da mulher que esteve nove anos morta em casa, em Rio de Mouro. "É importante percebermos que o que colhermos no final da vida é o resultado da forma como vivemos e que a velhice é o resultado de um percurso de sorte e azar, mas também de opções próprias."
Nas histórias que chegam à Linha do Cidadão Idoso nem sempre se consegue perceber quando é que tudo começou a correr mal. Mas Paula Matos não esconde o incómodo quando fala de alguns "clientes habituais da linha". É o caso de Rosa.
Tem 80 anos e passa os dias de Inverno na sua casa na Margem Sul a acarretar baldes com a água da chuva que lhe entra em casa. Vive com os cães, os gatos e os periquitos e uma reforma de menos de 400 euros. Tem duas filhas longe, com quem, de resto, se dá pessimamente. "São relações muito más." Telefona muitas vezes a explicar que precisa de ajuda.
Com o tempo e os contactos com a assistente social da zona, a jurista da Provedoria de Justiça foi percebendo o quão complexa é a situação. Rosa recusa ir para um lar ou centro de dia se não lhe arranjarem alguém que fique a tomar conta das suas coisas, na sua casa velha que deixa entrar água. Acha que a vão roubar. Também não quer apoio domiciliário porque "diz que a roubam". E esta história parece um beco sem saída.
A nora que não leva a sogra ao médico
Já outras, ainda que tão ou mais complicadas do que a de Rosa, parecem estar à beira de resolver-se. Recentemente, Paula Matos ouviu ao telefone um relato que dava conta de uma mulher de 90 anos que fracturou uma perna. Quando teve alta, a nora dispôs-se a ir viver uns tempos com ela, para ajudar. Pelo menos, foi isso que se propôs fazer: ajudar. Foi buscá-la ao hospital, o médico passou-lhe para a mão uma carta onde explicava que a doente deveria fazer fisioterapia, para recuperar da fractura. Mas, chegadas a casa, a carta do médico ficou em cima da mesa. E de lá não saiu mais.
A reforma da senhora de 90 anos, mais de 1500 euros, chegava todos os meses, mas a fisioterapia foi sendo adiada porque à nora "dava jeito o dinheiro".
Continua Paula Matos: "A senhora estava com mobilidade reduzida, não podia ir ao banco, entregou à nora as cadernetas e pediu-lhe que ela gerisse as contas." Mas, a certa altura, a nora passou a aproveitar-se da situação. "E assim chegamos ao ponto em que alguém está a fazer algo contra a vontade do idoso."
É claro que esta mulher podia pôr aquela familiar na rua. Mas não o fez, como é frequente acontecer nestes casos. Tem uma perna fracturada, está frágil, sente-se baralhada e confusa. "Comunicámos a situação à Segurança Social", diz Teresa Cadavez. "A nora percebeu que houve uma queixa, não percebeu quem foi. Mas, por vezes, já é importante que as pessoas saibam que não podem fazer tudo o que querem porque já alguém sabe o que se está a passar."
Entretanto, a Segurança Social foi chamada a intervir. A nora já terá prometido que levava a sogra ao médico.
A denúncia de situações de "abuso financeiro" é cada vez mais frequente, segundo a Provedoria. E, no estudo coordenado por José Ferreira-Alves, este tipo de violência surge logo a seguir à emocional - 16,5 por cento das mulheres que responderam ao questionário por carta relataram já ter sofrido pelo menos um episódio.
Maria foi atacada quando dormia
"Há quem acredite mesmo que as pessoas, por causa da idade, perdem direitos", continua Teresa Cadavez. "As pessoas não percebem, por exemplo, que podem ser acusadas de sequestro quando internam um familiar num lar, contra vontade", afirma João Lázaro, presidente da APAV. Não percebem, afinal, coisas óbvias.
Quantas pessoas, questiona Maria de Oliveira, simplesmente não reagem se ouvem alguém dizer: "Não aguentava mais a velha e meti-a num lar"? E quantas famílias são coniventes com a existência de lares ilegais? Só este ano, a Segurança Social já encerrou 21, entre outras razões, por falta de condições.
O stress dos cuidadores é frequentemente apontado como uma das múltiplas causas que estão por detrás da violência, um stress particularmente observável em mulheres que, nas suas famílias, prestam cuidados a diferentes gerações: aos pais, aos sogros, quando não aos avós e ao mesmo tempo aos filhos pequenos ou adolescentes. "Estes prestadores de cuidados sobrecarregados são propensos a tornar-se agressores", lê-se num manual lançado recentemente pela APAV, destinado aos profissionais de saúde e a outros que lidam com pessoas de idade.
A existência de um historial de violência na família também é apontada frequentemente como factor de risco. Os maridos/mulheres/companheiros são o segundo grande grupo de agressores identificados nas estatísticas da APAV.
Maria, 62 anos, é um caso paradigmático da violência que chega tarde. Foi durante anos muito feliz com o marido. "Era uma pessoa muito boa", conta ao P2. Tiveram três filhos, construíram uma casa, fizeram "um pé de meia". Mas, aos 42 anos, ele morreu. Durante 13 anos, viveu sozinha. Os filhos já tinham saído de casa, casado e tido filhos. "Tinham a vida deles" e ela, a certa altura, começou a pensar que não queria acabar os seus dias sem companheiro.
Quando tinha 57, decidiu tentar de novo. "Achei que tinha encontrado uma boa pessoa. Era um homem que também estava reformado, como eu... Mas foi a pior coisa que fiz."
Ao fim de três anos de casamento, ele começou a agredi-la. "Gritava, chamava-me nomes, tinha ciúmes, cheguei a achar que não estava bem da cabeça. E a pedir que o internassem. Ele tinha uma pistola. Eu tinha medo da pistola."
Maria, uma mulher simples, que trabalhou toda a vida como empregada de balcão, com uma energia que ainda hoje se adivinha na forma determinada como fala, não sabe, até hoje, se a alteração de comportamento do marido se deve à disfunção sexual que ele desenvolveu com a idade. Mas lembra-se de ele a olhar, "com os olhos muito abertos", muito agressivo.
Um dia, quando ela estava a dormir, atacou-a.
"Tomo comprimidos para dormir, aquilo apanhou-me desprevenida. Com a pancada, cortei a língua, comecei a sangrar, fiquei com a cara toda negra. De manhã, saí de casa e fiz duas coisas: primeiro fui à polícia, depois à APAV. Ele bateu-me à meia-noite e meia hora e às nove da manhã já eu estava na polícia."
Expulsou-o de casa, pediu o divórcio. E, durante meses, ele perseguiu-a e ameaçou-a. "Chegou a dizer à polícia e aos meus filhos que eu havia de morrer no carro, toda desfeita." Depois desapareceu. Faltou a todas as convocatórias do tribunal. E "o divórcio ainda não saiu".
Maria está casada contra vontade. Diz que se já tivesse o divórcio se sentiria mais segura. Acha que na cabeça daquele homem, por serem casados, ela é uma espécie de propriedade que ele pode vir resgatar a qualquer momento, outra vez. "O Presidente da República está sempre a dizer que agora o divórcio é a maior das facilidades. Não percebo."
O abandono magoa. E muito
No próximo mês, a APAV vai relançar a campanha de prevenção de maus tratos que desenvolveu no ano passado. Cartazes e outdoors mostram imagens de corpos cobertos de nódoas negras. É uma campanha-choque, num país cada vez mais envelhecido que, acredita João Lázaro, tem ainda um longo caminho a percorrer no que diz respeito à forma como lida com este tipo de violência - um caminho que se trilhou em relação à violência contra as mulheres, mas que só agora se começa a fazer em relação aos velhos, diz.
Na campanha da APAV há cartazes que alertam especificamente para os maus tratos, outro para a violência financeira e outro ainda é orientado para os crimes cometidos por pessoas estranhas. Não é por acaso. O comissário Paulo Ornelas Flor, das relações públicas da direcção nacional da PSP, explica que estão identificados "determinados modus operandi" que os criminosos utilizam especificamente com pessoas com mais de 65 anos. E ilustra a afirmação com números que ganham uma particular expressão entre esta população: só em 2010, mais de 700 foram vítimas de carteiristas; 80 foram alvo de burla por pessoas que se identificaram como funcionários do Estado ou de instituições; 87 foram sofreram abuso de confiança.
Mas há um cartaz da campanha da APAV que chama especial atenção. Mostra uma mulher de cabelo curto, branco, as costas a descoberto nas quais foi cravada, como que com uma faca, a palavra "abandono". Segue-se uma frase: "O abandono magoa. E muito." E um apelo: "Quando alguém é desprezado e deixado à sua sorte, isso deixa marcas. Tão ou mais profundas quanto as que são provocadas por violência física."
Não é certo que Claire, uma das mulheres que acederam a contar-nos a sua história, já tenha visto esse cartaz. Não lhe perguntámos. Mas é mais do que seguro que a depressão que anda a tratar com medicamentos está relacionada com esse sentimento de abandono.
No pequeno gabinete da APAV, conta como o filho de que tanto gosta - e que uma noite a deixou na rua - saiu, entretanto, de casa. Casou-se, foi viver com a mulher. Claire até já tem um neto que pouco vê. "Tenta-me afastar..." Diz que não é bem recebida quando telefona: ""O que é que queres?" responde-me o meu filho." Claire ensaia uma voz ainda mais grossa para imitar o filho: "O que é que queres?"
"Quando precisa de alguma coisa, vem ter comigo, é simpático. Ajudo-o, mas depois ele esquece." Um carro, um curso, o que for... "mas ele esquece".
"Por que é que ainda dou? É uma boa pergunta... não sou obrigada. Faço porque quero. Estou a tentar comprar o meu filho? Olhe, nunca tinha pensado nisso! É muito forte, não é? É vergonhoso, não é? Já tentei de todas as formas ter o amor dele e não tenho, percebe? Não tenho absolutamente nenhum. Vivo sozinha com o meu cão."
E o primeiro filho, aquele que há muitos anos entregou aos pais do marido? "Não o vejo desde 1989. Trocámos cartas, às vezes. Ainda me chama mamã. Mas mudou de casa, não me deu o novo número. Já procurei na Internet. Mas estava demasiado nervosa e desisti. Escrevi-lhe uma carta a dizer que não pretendia que reatássemos uma ligação de mãe e filho amado. O que é que eu queria? Que ele telefonasse de vez em quando. Isso chegava. A vida traça às vezes umas linhas complicadas. Acho que fiz o melhor para ele, que ele nunca teria chegado aonde chegou se tivesse ficado comigo."
É médico, conta Claire, quase a sussurrar, como se fosse um segredo. E continua: "Mas muitas vezes sinto-me culpada." Sozinha. E culpada. "Chegava-me que ele telefonasse de vez em quando."
Nota: os nomes de vítimas foram alterados.