Está em cena no São Carlos uma nova produção, “Banksters”, de Nuno Côrte-Real, o que é de assinalar no estado de penúria do teatro nacional de ópera. Mas há mais factos de relevo.
Trata-se de uma estreia absoluta, encomenda do São Carlos, e se Côrte-Real tem tido condições para ser o mais prolífero compositor português neste campo nos últimos anos, sendo que esta é já a sua quinta ópera - mesmo que “O Velório de Cláudio” fosse um prólogo -, os colaboradores directos que teve possibilidades de escolher, Vasco Graça Moura no libreto e João Botelho na encenação, são estreantes nestas andanças.
Ocorre que há um inquietante efeito de actualidade em “Banksters”, incluindo até que o horizonte de bancarrota que se delineia é em particular apropriado à situação do próprio teatro em que o espectáculo ocorre. Estamos perante cenas da crise em São Carlos.
O ponto de partida é um texto de José Régio, “Jacob e o Anjo”, retomando um episódio desse livro fundador que é a Bíblia. A peça, como todo o teatro de Régio, é uma chatice incomensurável, e torna-se patente que não é do afecto particular do libretista. De modo paroxístico, foi a distância do adaptador para com o texto adaptado que propiciou a Graça Moura um trabalho (meta)textual deveras notável.
“Banksters”, supõe “bank” e “gangsters”, e o quadro é o do capitalismo financeiro e da sua crise, paródia e sátira que se podiam supor de algum autor esquerdista, o que Graça Moura não é de modo algum. Os americanos inventaram as chamadas “CNN operas”, sobre figuras e factos da história contemporânea, mas esta será a primeira ópera que tem como referente a crise do capitalismo financeiro global.
Eis exemplos concretos: “paraíso fiscal”, “offshore”, “injecções de capital”, “tempo de crise”, “mortgage” e mesmo “subprime”, além de outros que nos tornam presente a concreta situação portuguesa, como “Parte-se esse coração/ que eu tinha entregue à Finança/ Pra fugir ao IRS” ou “Corte no meu ordenado/ passe-me a recibos verdes”. De acordo com as motivações do compositor na sua escolha do texto, de Régio perdura a tipologia das personagens e o motivo da “redenção” - mas não mais.
Pois que se trata de um tema cristão, e inspirado em peça do autor de “Poemas de Deus e do Diabo”, ocorreu-me que “Banksters” podia ter como epígrafe uma frase que Mikhail Bakhtin atribui a São João Crisóstomo: “As burlas e o riso não provêm de Deus, mas são uma emanação do Diabo”. E não invoco por acaso o grande teórico russo, o estudioso de Rabelais e do carnavalesco, a propósito deste libreto que, como a justo título diz Graça Moura, é muito (Gil) “vicentino”. Bakhtin é um dos autores a ter mais presente na análise e na pragmática da “paródia”, não apenas no sentido restrito que ele considera, o de sátira, como mais latamente nos termos de Linda Hutcheon em “Uma teoria da paródia - ensinamento das formas de arte do século XX": “A paródia é, pois, repetição, mas repetição que inclui diferença; é imitação com distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo.
Os seus principais operadores formais são versões irónicas de ‘transcontextualização’ e inversão, e o âmbito do ‘ethos’ pragmático vai do ridículo desdenhoso à homenagem reverencial”. “Banksters” é um caso exemplar deste tipo de estratégia discursiva, não faltando uma surpreendente citação de “A rose is a rose, is a rose” de Gertrud Stein.
Depois de obras notáveis como “Concerto Vedras” e “Andarilhos”, o percurso de Nuno Côrte-Real tem-me deixado em vários aspectos perplexo. O desastre aconteceu com “A Montanha”, ópera adaptada de Teixeira de Pascoaes pelo próprio compositor. É então de assinalar que Côrte-Real se tem mostrado tanto mais interessante quando trabalha com textos de consistência dramática ("O Rapaz de Bronze”, de José Maria Vieira Mendes, a partir do conto homónimo de Sophia e agora “Banskters") e tanto menos quando a cena dramática não tem nexo, como em “O Velório de Cláudio”, texto de José Luís Peixoto - sendo ainda de ressalvar que o projecto de um prólogo contemporâneo a uma ópera barroca, a “Agrippina” de Haendel, era um disparate total e foi mesmo o maior descalabro em São Carlos nos lamentáveis anos de direcção de Christoph Dammann.
É então claro que a pragmática do compositor é a de “musicar um libreto”. Dir-se-á que é uma atitude de subserviência, mas não deixa de ter consideráveis ganhos em termos de inteligibilidade da obra - o que é um sério problema de muitas óperas contemporâneas, tanto mais de assinalar quanto entretanto Côrte-Real foi de vários modos adquirindo rodagem de palco, e também do canto, para o qual é patente que sabe escrever. Ainda assim, essa pragmática associada ao pluriestilismo que o vem caracterizando, e que em si mesmo é um gesto de relevo, coloca um risco: o de uma obra, na sua multiplicidade interna, ter muitos caracteres mas não um “carácter” musical distintivo.
São muitas as referências musicais em “Banksters” e é notável a fluidez da sua integração no discurso musical. Consideremos a referência ao “Rigoletto” de Verdi. Graça Moura, que com especial ironia paródica crismou o banqueiro de Santiago Malpago, chamou também ao anjo Angelino Rigoletto e à mulher do primeiro Mimi Kitsch, parodiando “La Bohème” de Puccini. Se a paródia a Mimi se perde, é surpreendente o modo como se integra a citação de “La donna è mobile”, a célebre ária do “Rigoletto” - é a “repetição que inclui diferença” e a “imitação com distância” da paródia nos termos de Hutcheon.
É nesses termos paródicos latos que há também a salientar o recurso a formas tradicionais, e não apenas da tradição erudita, como a valsa, a habanera ou o fado, embora me pergunte se esse recurso não é também de algum modo uma dispersão, pois ocorre sobretudo no Acto II que, sendo longo de mais, é o ponto problemático da ópera. Não há pois apenas “subserviência” ao texto mas, mais importante e ponto nodal da obra, a coerência entre as estratégias do libreto e da composição. E esse é um sucesso a ser devidamente sublinhado.
Não estamos contudo perante uma obra em abstracto mas um espectáculo, que, além dos autores, assenta noutros três pilares, o encenador João Botelho, o maestro Lawrence Rennes e o protagonista Jorge Vaz de Carvalho.
Depois de um progressivo afunilamento e esquematismo no seu percurso, até toda a lamentável história de “Corrupção”, Botelho está em novo florescimento criativo, com o esplêndido “Filme do Desassossego” e agora esta estreia na ópera. Diderot, que ele adaptou em “Tiago, o Fatalista”, escreveu também “O Paradoxo do Comediante”. Em Botelho há agora um “paradoxo do teatro”. Ele, cineasta austero, deixou-se fascinar pela máxima irrealidade teatral da apoteose que é a ópera. É certo que não deixa de haver similitudes entre a actualidade de “Banksters” e uma postura cinematográfica que tem como objecto fundamental metáforas do Portugal contemporâneo. Mas a passagem para a ópera é um enorme e arriscado salto. Mesmo que surpreendam alguns aspectos mais berrantes, nomeadamente nas luzes, a gestão do espaço e das movimentações, o inteligente uso dos cenários de fundo e sobretudo o arguto entendimento da obra e da sua musicalidade fazem desta estreia um sucesso.
Rennes dirige a obra com uma segurança e desenvoltura notáveis. E Vaz de Carvalho, que a meu ver andou anos perdido em cargos de administração cultural pública, regressa com um timbre, uma dicção e uma projecção de voz imaculados. Mas há também a referir Sara Braga Simões e um deveras equilibrado conjunto de secundários.
Christoph Dammann foi chamado pelo secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho para concretizar um gesto de dirigismo cultural como não havia desde o processo revolucionário, a estreia de “Das Märchen”, de Emmanuel Nunes. Afinal, o melhor de Dammann ocorre agora “a posteriori”, com a encomenda de “Banksters”, já depois de ter sido demitido e substituído por Martin André, que não dá sinais de um projecto (e há também a demissão do presidente da empresa, Jorge Salavisa).
Continua o folhetim da crise em São Carlos, com próximas cenas...
P.S. - Vasco Graça Moura é um distinto poeta, ensaísta e tradutor e foi durante anos gestor cultural público. É também um colunista sectário e demagogo, que escolheu como um dos seus alvos de eleição os ditos “subsidiodependentes”, os artistas que o Estado apoia para a criação contemporânea. É certo que sempre defendeu uma política patrimonial pública incluindo os teatros nacionais, mas para apresentarem o reportório clássico, coisa que, como uma vez lhe ouvi, um Beckett não seria! Então agora afinal como é?