Tiveste medo?Testemunho de Catarina Gomes
Em minha casa também havia um álbum de fotos de guerra
Eu também cresci a ouvir fragmentos de histórias do tempo da guerra em Angola. Só com este trabalho percebi que a minha está entre os milhares de casas portuguesas onde havia álbuns de guerra e uma parafernália de objectos que sempre me foram familiares, de estatuetas de negros a peles de palanca semidesfeitas pelas traças, uma girafa de madeira que se aguentava de pé com uma perna colada - coisas que foram desaparecendo de vista, como na casa dos pais do Paulo Peixoto.
Nas minhas histórias da guerra em Angola havia sempre o nome de um lugar quase de feitiçaria, Cangamba, onde o meu pai tinha sido colocado. Não faço ideia onde fica nem se mudou de nome.
Dei por mim a chorar quando ouvi a Alexandra Penteado falar do pai que acordava com gritos lancinantes a meio da noite. Ela perguntou-me se eu me identificava. Disse-lhe que não. A minha experiência foi a das historinhas positivas. Coisas caricatas, como o meu pai fazer parte de umas campanhas de "acção psicológica" que consistiam em espalhar pelos céus de Angola panfletos a apelar à rendição de soldados angolanos, com fotografias de rostos como os deles, de ar feliz e bem nutrido, porque se tinham entregado aos portugueses.
As fotos do álbum que andou lá por casa também pareciam ser, tal como para o Paulo Peixoto, uma selecção de bons momentos, quase postais pitorescos, com casotas de colmo, meninos de barriga arredondada, o meu pai a tocar guitarra, a fazer teatro num palco improvisado com lençóis brancos. Dão-me a mesma sensação que teve a Susana Gaspar, de parecerem fotos de férias. Como ela, desconfio que não tenha sido bem assim.
E para mim também houve um episódio que o confirmou e que, não por acaso, era sempre contado pela minha mãe, que acompanhou o meu pai na guerra. A 28 de Abril de 1974 o meu pai foi chamado a identificar corpos de colegas. Só há dias, quando perguntei à minha mãe, soube que o meu pai dormiu mal nessa noite, vinha-lhe à memória a imagem de um soldado que morreu com a mão esquerda paralisada para cima, como quem mostra a aliança, como dizendo "não me mate que sou casado". Foi pelo menos assim que o meu pai, recém-casado, o interpretou.
É em alturas especiais que se sentem mais as ausências. O meu pai morreu quando eu estava a aprender a fazer perguntas de adultos. Lembro-me de lhe ter feito uma quando ainda era adolescente, quase como quem pergunta por uma aventura. Mataste alguém? Ele respondeu que não sabia, que em princípio não, mas que na guerrilha não se via o inimigo. Ao fazer este trabalho dei por mim a querer fazer-lhe mais perguntas de adultos: Sabias por que é que ias? Sentiste medo? Pensaste que ias morrer? Em que é que isso te mudou?
À medida que foram desaparecendo de casa os objectos trazidos da guerra foram rareando pretextos para voltar a estas memórias. Os meus pais trouxeram de Angola para mim um banquinho de madeira feito da pele seca e esticada de um animal que não conheço. Lembro-me de me sentar nele quando era pequenina, agora vai ser do meu filho. Vou-lhe contar os fragmentos do que sei, as minhas memórias de guerra.