Rainha Negra
Josephine Baker (1906-1975) foi uma das primeiras estrelas a nível mundial. Negra, mulher e feminista, foram mais as vezes que a despiram com os olhos do que aquelas que guardaram as várias histórias de uma vida só. Foi espia, adoptou crianças pelo mundo fora, envolveu-se com a política. Esteve várias vezes em Portugal: para cantar, em missão, para adoptar.
Augusto Mayer devia ter uns 15 anos quando conseguiu convencer o pai a levá-lo a ver "a Rainha Negra". Em Lisboa não se falava de outra coisa. E, para um rapaz daquela idade, entrar no Teatro da Trindade, mesmo que não distasse muito da loja de antiguidades que o pai tinha na Rua do Loreto, ao Largo de Camões, em Lisboa - e ele hoje, aos 84 anos, ainda gere - era fazer uma viagem a um outro mundo. Um mundo de festa.
"Havia lá de tudo. Todas as idades, todas as classes sociais. Eu era um rapaz, aquilo tudo era uma novidade." E aquela mulher, uma estrela que desafiava todos os desafios, "a estrela mais excêntrica e porventura mais famosa dos nossos tempos", como se escrevia nos jornais, era uma mulher que tinha a capital aos seus pés. Uma capital a viver um tempo electrizante, onde se cruzavam espiões a servir os Aliados, espiões alemães, agentes duplos, gente à espera do avião para os Estados Unidos da América... Lembra-se do filme Casablanca e do avião que seguiria para Lisboa? Lisboa era assim: o centro livre de uma Europa ocupada.
No Diário de Lisboa de 27 de Março de 1941 esperava-se que cumprisse o que há anos apenas se lia e, por vezes, se via nas actualidades que passavam nos cinemas: "Há elevação espiritual na sua técnica de dizer, [que] vence os ânimos mais frios, deslumbra os mais cépticos, ao tanger com estranho poder de expressão as cordas do sentimento ou do riso. Quanta distância vencida, até esta vitória de um talento feito de intuição, inteligência e sensibilidade?!"
O que dela se esperava era o que outros tinham visto, quase 20 anos antes, numa Paris feérica, onde "as vísceras de Baker eram feitas de cultura secular e o grito de charleston na sua boca era senão a espuma irisada da liquidação duma época".
"Josephine era, só pela sua cor e projecção popular, uma declaração política silenciosa que desafiava o statu quo social e político da primeira metade do século XX", diz o investigador e entusiasta João Moreira dos Santos que publicou este mês um livro sobre a bailarina e cançonetista, a propósito das suas passagens por Portugal. E acrescenta que "ela mesma percebeu que não podia silenciar sem calar a sua essência e um passado sofrido e marcado pela segregação racial na sua cidade natal, Saint Louis, e um presente de discriminação que, anacronicamente, não só persistia na sua pátria, os Estados Unidos da América, como recrudescia na Europa nazi dos anos 30/40".
"A negra endiabrada" esteve em Portugal por diversas vezes entre 1933 e 1960, de mera passagem casuística, porque eram aqui que aportavam os barcos com direcção ao Brasil ou vindos de lá, em tournée com os seus espectáculos, em missão especial a mando da resistência francesa, com o objectivo, especula-se, de adoptar uma criança, e para participar num programa de televisão, no início da RTP.
A biografia tem como subtítulo Crónica da artista, agente secreta, mãe universal e activista dos direitos cívicos. La Baker foi, segundo João Moreira dos Santos, "um sintoma da viragem dos tempos. E tornou-se, para o melhor e o pior, um símbolo vivo dos loucos e bipolares anos 20, a personificação do bem e do mal, consoante as ideologias em jogo".
Ela, que tanto incensava plateias com o despudor com que se exibia, como punha em fúria uma Europa autoritarista em ascensão: "Depois da guerra, dia a dia, a Europa vem abdicando da sua coroa imperial, das suas veleidades de soberania espiritual, da sua olímpica hegemonia. Hoje, é Josephine Baker e o seu charleston, o seu black bottom, o seu desengonçado e simiesco batuque que destronam a pureza estética da grande Arte", escreveu-se em Paris.
Ecos desses chegavam também aos jornais portugueses: Baker é, em Paris, "um carbúnculo - rutilo como a pedra preciosa do mesmo nome, venenosa e sádica, como a doença de igual apelido. O negro, esse borrão de tinta circunscrito à África, desaparecerá no oceano lívido das raças ariana e mongólica?", havia escrito Artur Portela no Diário de Lisboa de 11 de Fevereiro de 1930.
Uma visita-surpresa
Josephine Baker "a preta" era "um símbolo da libertação sexual e um rosto da emancipação das mulheres", escreve João Moreira dos Santos. Augusto Mayer lembra-se de uma sala cheia, de uma mulher bonita, de um corpo negro que nunca ninguém tinha visto em palco. "Era uma exuberância", conta-nos a rir.
Lisboa não era uma cidade desconhecida para Baker. Anos antes havia descido do paquete Massilia, que viajava de Bordéus rumo a Buenos Aires e ao Rio de Janeiro, para ali fazer uns espectáculos, e aportara no cais de Alcântara. Os seus vistosos chapéus e véus negros, "uma blusa "quase encarnada" e um longo e dispendioso casaco de peles", não passaram despercebidos a quem com ela se cruzou na rua.
E, de repente, quando os jornalistas do Diário de Notícias, cuja sede ainda estava no Bairro Alto, vêem entrar pela redacção dentro "três raparigas bem vestidas e cheias de alegria", perceberam de quem se tratava. Uma delas disse: "Estamos em Lisboa por umas horas. E conhecendo o nome deste grande jornal vínhamos pedir-lhe que nos indique um restaurante típico, com uma cozinha bem portuguesa." Acompanhada da sua secretária, Madeleine Chailot, e de uma amiga, Monique Lemb, foram encaminhadas para o restaurante Primavera, onde comeram, segundo os jornalistas do Diário de Lisboa, "sardinhas em conserva, robalos grelhados, bacalhau guisado à Primavera, fígado de vitela, salada de alface, arroz doce e fruta". E no fim brindaram com um vinho do Porto sob "vivas a Portugal".
"Aquela mulher vibrante e colorida como uma pimentinha do Novo Mundo, embrulhada num casaco petit gris riquíssimo", contaram no dia seguinte os jornalistas, chegou mesmo a cantar "não com a estridência do jazz, mas à meia voz tanguista - para não dar escândalo na pacífica travessa do Bairro Alto". C"est le Portugal, disse, "enchendo a minúscula sala com o seu riso alegre e travesso".
Os jornalistas não deixaram de a acompanhar até ao paquete e, perante o convite irrecusável de verem o interior da sua cabine, deliciaram-se com pormenores que só o fascínio justificava: "O camarote onde Josephine Baker viaja está literalmente cheio de flores. Há apenas o espaço para alguém ali se mexer. (...) Não há uma mesa à vista, nem mesmo um caixote. Mas Josephine, a vedeta que ganha milhões, não se prende com pequenas coisas. E é mesmo sobre um degrau da escada, numa posição de adorável simplicidade que nenhum fotógrafo teve a fortuna de surpeeender, que [nos] escreve umas palavras amáveis."
Baker a escrever, Baker a tricotar, Baker a sorrir e a mostrar "os grandes e lindos dentes, que eram uma ilha de brancura no mar vermelho dos seus lábios".
A sua relação com Lisboa, entre 1933 e 1960, começou no porto de Alcântara, passou pelas ruas do Bairro Alto, pelas flores que se vendiam na loja Paris em Lisboa, em pleno Chiado, pela livraria Barateira, subiu ao Teatro da Trindade e ao Largo da Misericórdia, foi até à Rua das Portas de Santo Antão, para um jantar de homenagem no Arcádia, onde hoje fica o restaurante Solmar, ao extinto Hotel Aviz, na Fontes Pereira de Melo, à casa do industrial Maxime Vaultier, na Rodrigues Sampaio, à Exposição do Mundo Português, em Belém, chegou a ir ao Estoril e acabou no aeroporto da Portela.
Mas, no jornal O Século de 30 de Março de 1941 (data em que Augusto Mayer a viu), aparece um poema assinado com as iniciais M.S. que não a poupa, nem ao seu espectáculo: "Mascavada na tez como ela é/ e em franciú mascarado, Josefina/ que da nossa brancura desafina/ e também desafina no couplet,/ Como aquela boneca que se vê/ nas garrafas de Rhum - bebida fina -/ surge no palco feita cantarina,/ e sem a gente perceber porquê/ Mas o público foi - enchente plena! -/ A fama de uma exótica pirueta/ vence na arte a concepção serena,/ E a ideia que ficou daquela treta, foi que, de novo, tinha ido à cena/ a famosa revista Ali à preta."
A má recepção dos espectáculos, especula-se, deveu-se à empresa Organarte, de um empresário russo que alugara o teatro ao lado de um edifício onde, diz-se, os alemães estavam instalados. Prometendo "um assombroso musical e artístico de todos os públicos", onde Baker apareceria nua, "não foram precisas mais que duas horas para a casa se passar completamente, ficando ainda muitos pedidos por atender". Mas o que se mostrou foi outra coisa. Disse o República que "quem o organizou tinha aí a Josephine Baker e, sem saber o que lhe fazer, andou à procura do pior que se podia arranjar, fosse o que fosse, para preencher aquele espaço de tempo que é costume durar o serão teatral. Foi a miséria das misérias". E o Século insiste: "Baker é uma vedeta que só o mau gosto, ou mais propriamente a depravação do mau gosto pode suportar."
Mesmo que, perante as críticas da noite de estreia, tenham sido alterados alguns números e feitas novas contratações, certo é que a razão para a presença de Baker em Lisboa não tinha muito a ver com espectáculos.
Uma espia disfarçada
O início da relação de Josephine Baker com a resistência francesa, começou em Paris, anos antes. "A sua primeira missão foi introduzir-se na Embaixada de Itália em Paris, por ocasião de um cocktail, e obter do adido militar informações sobre os planos do regime de Mussollini, o que conseguiu com facilidade. Ainda em Paris, na Embaixada de Portugal, ficou a par das negociações que a Alemanha efectuava em Lisboa para a reserva de uma doca seca destinada à reparação dos seus submarinos, informação prontamente transmitida à Armada Francesa." Quando chegou a Portugal, vinda de Tânger, anos mais tarde, a sua missão era outra.
Baker tinha uma missão encomendada pela resistência francesa, que se aproveitava do seu desejo de contribuição para a derrota dos alemães - que a detestavam e a faziam lembrar das proibições que a impediam de se apresentar nos Estados Unidos - para a fazerem passar mensagens. Precisava de obter um visto de entrada em Londres para o espião Jacques Abtley, já que este se encontrava bloqueado em Marrocos, uma vez que o consulado de Portugal em Casablanca se recusava a conceder-lho.
Baker contará nas suas memórias: "Acabada de desembarcar em Casablanca, tinha de apanhar o comboio para Tânger, com uma mala atafulhada de papéis de toda a espécie, de prospectos de teatro, mas entre as linhas havia uma outra coisa, escrita com água, vocês compreendem, a água simpática. Levava essa mala para Lisboa, era a minha primeira missão. Estava radiante e sabia-me sábia. Ah, sim! Sábia como a inocência."
A facilidade com que se podia disfarçar e a sedução que exercia nas mais diversas franjas do regime permitiam que circulasse, sem levantar suspeitas, por entre as festas nas embaixadas, os jantares nos hotéis e as estradas de Cascais. Os espectáculos, que depois de Lisboa foram para o Teatro Sá da Bandeira, no Porto, foram sendo prolongados. Baker usava a Livraria Barateira, perto do Teatro da Trindade, para fazer passar as suas mensagens, mas o visto nunca foi concedido. Baker acabou por partir.
Em 1958, quando regressou a Portugal, já a guerra tinha acabado e os seus objectivos eram outros. Tinha sido contratada pelo Casino Estoril para uma série de espectáculos. Chegou "sorridente, com uma saia azul e blusa branca, na cabeça um turbante colorido, nas orelhas duas argolas enormes". O Diário Popular garantia que "elegantíssima no seu recorte parisiense, comunicativa e intencional, alardeando um poder interpretativo que abrange todas as modalidades do music-hall, a grande vedeta trouxe-nos um vasto repertório que agradou sem reticências". Mas, mais uma vez, as razões eram outras.
Na imprensa dizia-se que queria adoptar uma criança portuguesa. Baker, que não podia ter filhos, adoptara, nos últimos anos, 12 crianças de várias nacionalidades e etnias. Chamava-lhe "A tribo do arco-íris". "Este meu pequeno mundo prova que não há diferenças raciais", contou ao Diário Popular. Era, segundo um jornalista, "a sua ONU de palmo e meio, sem votos, maiorias ou debates". Há fotografias que a mostram a visitar o orfanato da Misericórdia de Lisboa. Baker insistia em que nenhuma das crianças tivesse mais de um ano de idade "para não estranharem a mudança de ambiente". João Moreira dos Santos conta que não foi bem sucedida e socorre-se de uma frase do jornal República para o justificar: "Ela era uma negra. Que importa?"
Baker virá a Lisboa mais duas vezes. Uma delas, em 1958, em escala, vinda de Caracas, onde havia sido acusada de ter raptado uma criança. Equívoco que depressa se desfez, mas que não lhe granjeou uma nova criança para a sua tribo. Dois anos depois, virá à RTP, para uma emissão especial, para a qual pediu "a exorbitância de 25 contos" cantar Terra Seca, um poema onde dizia: "O negro vive sem esperança/ o negro nunca passa de um pobre negro./ (...) Porquê culpá-lo da cor da sua pele? Não é pecado ser-se somente um "preto"." Baker, mostram os registos, acompanhava os versos da canção com "olhares profundos para a cor da sua pele". E, depois, sob os olhares da polícia política, afirma: "Algumas vezes podemos chorar quando temos uma pele muito negra. Eu choro frequentemente... já chorei muito, mas tenho confiança em que chorarei cada vez menos. É verdade, porque somos todos irmãos, verdadeiros irmãos."
No dia a seguir, a imprensa ignorou o programa de televisão. A razão apontada foi o facto de se ter exprimido em francês num programa não legendado num país com elevada taxa de analfabetismo.
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