Música para o reino animal
Referência absoluta do jazz brasileiro, o músico que conseguiu pôr Miles Davis a rir, que quer legislar contra a música ruim e gosta de tocar para animais, termina em Braga uma digressão de três datas por Portugal
Isto devia ser estudado. Hermeto Pascoal tem uma memória clara de quando começou a fazer música. Mas não estamos a falar de um piano que recebeu pelo quarto aniversário ou de uma flauta que encontrou esquecida na rua a caminho da escola. Hermeto diz lembrar-se perfeitamente do seu primeiro choro, acabado de chegar a este mundo, como resposta aos nove meses passados a ouvir os ritmos marcados pelo coração da sua mãe. Há quem se assuste, mas o músico que junta o jazz aos brasileiros frevo, forró, samba e choro, repete que faz música há 74 anos, tantos quantos se passaram sobre o seu nascimento em Olho d"Água, no meio do mato brasileiro.
Cresceu a admirar as melodias que ouvia aos pássaros em volta, a escutar os sapos como orquestras espontâneas perfeitas. E a inspirar-se em tudo isso para tocar, rejeitando as convenções com que mais tarde quiseram convencê-lo. Para Hermeto, que acredita que a música não se aprende - "ou se tem ou não se tem" -, instrumento que lhe chegue às mãos num embrulho merece um respeito sobretudo decorativo: "Não gosto do som pronto. Ganho muitos instrumentos prontos de presente, acho bonito e ponho pendurado na parede, mas para tocar não, porque já é uma coisa padronizada." Ainda hoje, antes de qualquer concerto, vai às traseiras dos teatros procurar pedras, paus, plásticos, latas, qualquer coisa que tenha música por desvirginar.
Até aos 14 anos, Hermeto viveu no meio da natureza do estado de Alagoas e quando começou a circular nas cidades grandes, com um ruído constante a não dar descanso aos ouvidos, os músicos invejavam-lhe as origens. O que eles não sabiam, diz-nos do outro lado do telefone [Pascoal falou com o P2 na terça-feira passada, ainda no Brasil, na véspera de chegar a Portugal], é que ele também gosta do barulho. Já compôs a partir do padrão rítmico de umas obras ao pé de casa e houve até uma vez em que se encostou a um poste numa das mais nervosas avenidas paulistas, fechou os olhos, e ali ficou durante meia hora a compor mentalmente uma peça para coro chamada Do Feto à Vida, inspirada no som dos carros a passarem por ele. "Ia para casa, mas voltei para o estúdio, peguei no piano e fiz essa música, porque eu acho muito bonito, quando os carros estão todos buzinando."
Capaz de ver beleza em quase tudo, os longos cabelos brancos de Hermeto eriçam-se apenas quando é confrontado com aquilo que classifica como "música ruim". Aí, corre a refugiar-se dos "músicos que são tocados pelos instrumentos". Fala da música computorizada ou do rap que, na sua opinião, são feitos por "pessoas que só cuidam do corpo, esquecem que existe uma energia maravilhosa na alma". Por sua vontade, redigia-se uma lei contra esta música e é isso que pretende fazer lá para os 80 anos, idade perfeita para se candidatar a um cargo de deputado. Para ele, a questão é simples: "Se você vai no supermercado e compra uma carne estragada, uma coisa ruim, pode processar o dono. Agora, música ruim é-se obrigado a escutar na rua, aqueles carros no maior volume do mundo... Tem de haver uma lei para isso." E como se chegaria a uma definição de música ruim que fosse legislável? Como bom defensor da intuição, a resposta não poderia ser outra: "Quando a música é boa, não é preciso dizer que é boa. As pessoas sentem."
A originalidade do som de Hermeto Pascoal começou a encantar o mundo do jazz no final dos anos 60, altura em que conheceu Miles Davis - com quem gravou e a quem arrancou gargalhadas que ninguém achava existirem no carrancudo músico norte-americano. Em 1976, Hermeto gravou o seu álbum mais marcante, Slaves Mass, nos Estados Unidos. Tudo porque no Brasil prevaleceu o medo da sua real intenção de levar porcos para estúdio. Apanhou então um avião para Los Angeles, onde um casal lhe levou dois porquinhos, que ele dirigiu como um maestro, pedindo sons diferentes a cada um.
A intensidade da sua ligação ao mundo animal é tal que há uns anos propôs à Prefeitura de São Paulo dedicar um dia à bicharada, deixando que os bichos circulassem pelas ruas livremente e pudessem gozar de alguns espectáculos. "Ficaram rindo de mim", recorda Hermeto, "não deram nem resposta e diziam: "Você é louco."" A ideia ficou semiesquecida, mas quando a TV Bandeirantes o convidou a fazer um especial nos moldes em que quisesse, lembrou-se que tinha essa dívida por saldar com os animais e, com a ajuda de vários fazendeiros, conseguiu montar um concerto para um público invulgar. "Você precisava ver o sucesso que fez, como os animais se comportaram, como eles ficaram parados, desde os bois grandes, até aos passarinhos, gansos, patos, todos radiantes, felizes da vida", lembra com orgulho.
Se muitas destas coisas podem, à partida, soar a loucura a mais, fazem todo o sentido em Hermeto Pascoal. A música, na sua cabeça, não se rege por academismos, não é exclusivo de génios e iluminados, e tudo aquilo que a maioria prontamente desclassifica por não se enquadrar nos padrões universalmente acordados não deixa, quando ele a escuta, de ser música na mesma. Para quem tocou a primeira nota ao chegar ao mundo, a sua derradeira vontade é morrer a tocar. É coisa que pede a Deus a toda a hora e, como não quer ser apanhado desprevenido, diz que se acontecer estar internado num hospital e sentir a morte rondar-lhe a cama, terá de ter alguém por perto a quem possa pedir um instrumento rapidamente. "A minha vida é música", resume. E, portanto, a morte também terá de ser.