Reportagem: De comboio até Vigário Geral
Central do Brasil. Aqui se cruzam metro e comboios para os subúrbios cariocas. O arquitecto Manoel Ribeiro compra duas passagens para Vigário Geral. É quase o fim de linha, no limite do Rio de Janeiro. A coisa mais célebre que lá aconteceu foi uma chacina: 21 pessoas assassinadas pela polícia em 1993.
Praias, Cristo, Pão de Açúcar, fica tudo para trás quando arrancamos num comboio sujo e partido, entre armazéns portuários e ferroviários. À esquerda, Estádio do Maracanã em obras. À direita, Estação Primeira de Mangueira, a escola de samba que se chama assim porque era a primeira estação depois da Central do Brasil.
À beira dos 70 anos e com meio-mundo viajado, Manoel está habituado a fazer pontes entre a favela e a cidade formal. Não só é autor de vários projectos no programa Favela-Bairro, até agora a maior intervenção em bairros de lata da América Latina, como anteviu a importância do funk, quando o fenómeno apareceu nos morros. "Levei-o para a universidade. Fiz um seminário na Reitoria, naquele cadeiral de jacarandá, com os decanos..."
Hoje, o funk domina os morros em bailes muitas vezes presididos pelo "poder alternativo": o tráfico. Um universo armado, narcotizado e hipersexualizado.
"O tráfico tem duas estruturas. A ponta da venda, que faz o trabalho sujo e é muito ágil e flexível: se morre um, é substituído imediatamente. E tem uma espécie de segurança social: dá uma bolsa básica à viúva, tem um plano salarial desde o fogueteiro, que é o moleque que está de olho e solta foguete quando a polícia chega. É como nas guerras coloniais africanas, aqueles grupos que só sabiam fazer a guerra, depois saíram roubando, matando." Na Costa do Marfim, diz Manoel, a ONU fez um programa de reinserção, e era o que precisaria de ser feito aqui. "Então não adianta espantar os caras de um lugar, que eles vão para outro. O que interessa é pegar a superstrutura, os financiadores que moram nas coberturas [o melhor apartamento de um prédio, no último piso] de Ipanema e do Leblon, donos de fazendas e de grandes comércios de fachada."
Esse é o verdadeiro núcleo do problema: "São os caras que viabilizam a importação de contentores de armas. E tem os advogados que fazem a intermediação, chamados de "matutos", sinónimo de caipira ou saloio. E tem os juízes, que vendem sentenças, habeas corpus..."
Ao contrário do que acontece no morro, "é um problema para substituir, se alguém dessa corrente morre". Por isso, eles é que são o verdadeiro alvo. "Mas é mais difícil por razões políticas. Como é que se vai atacar os ricos? É um sistema em que os grandes beneficiários estão no topo, e não estão a ser tocados. Essa é que é a cabeça da cobra, não a questão da violência. A violência tem a ver com desigualdade, com o modelo económico que estimula o consumo e gera muitas frustrações."
O comboio avança aos sacões. Favelas pardas, de zinco e tijolo "grafitado", e no meio os velhos palacetes em que moravam negociantes e "bicheiros" - aqueles que lucravam com o ilegal Jogo do Bicho -, e agora têm placas a dizer: "Vende-se".
Na favelaVigário não é morro, é uma favela plana. Saindo da estação, avista-se ao longe o viaduto projectado por Manoel. Depois, descemos para um corredor paralelo à linha do comboio, entre um muro de betão e uma parede de tijolo. "Na chacina [de 1993], os policiais entraram por aqui", diz Manoel. "E os moradores botaram os 21 cadáveres do lado de lá, fechando a rua."
Se tudo continua a parecer pobre, nesse tempo era mais. "Já tem abastecimento de água, que antes não tinha. Isso era tudo lama e agora tem calçada, drenagem, esgoto. A parte de iluminação é que é a antiga, com os fios todos de fora."
O corredor acaba e estamos dentro: fachadas pintadas de amarelo, verde, azul, como também se vê na Rocinha, cor para cortar a desolação. Uma Assembleia de Deus, um campo de jogos "grafitado", homens de tronco nu com o Cristo tatuado, homens que param para cumprimentar e têm histórias de um tiro na perna.
"A chacina foi ali, em frente àquele bar", aponta Manoel. "E ali fizemos a Casa da Paz, que agora é um posto de vacinação." A história do movimento cívico gerado pela chacina está contada no livro Cidade Partida, de Zuenir Ventura.
"Na inauguração do AfroReggae o Zuenir veio", orgulha-se um dos moradores. O AfroReggae é a grande ONG das favelas, e tem uma sede muito recente aqui em Vigário Geral, desenhada por Manoel. Lá iremos, mas entretanto o veterano Lins, de 77 anos, está à janela de sua casa, já não vê Manoel há muito e insiste para subirmos.
Mesa com toalha de plástico à espera da panela do almoço, retrato na parede com a mulher, noivos. "Essa fotografia deve ter aí uns 47 anos..." É muito tempo de vida em Vigário Geral, o que também passou por ser presidente da Associação de Moradores.
E, se querem saber, Lins não está satisfeito: "Nós não temos Governo, não temos autoridade. Temos um bando de polícias militares que são tudo uns pilantras, malandragem. Todo o policial está com o tráfico." Sendo que o tráfico mudou. O comando da favela rival, Parada de Lucas, conquistou Vigário. Os traficantes que agora mandam aqui são novos, vêm de Parada.
"Antes tínhamos bandidagem que respeitava o nosso trabalho e tratava a gente bem", queixa-se Lins. "Em parte as coisas estão melhor, na urbanização, na água, no esgoto, mas o viaduto novo está interditado pelos traficantes. Dá tristeza. Lutei muito para ter isso. Agora nem sei quem é o líder do tráfico. Tem muita casa vazia. Os moradores têm medo."
Também das milícias, esse outro poder paralelo feito de ex-polícias.
Este é o Rio longe do postal olímpico. Com que mudança sonha Lins? "Eu queria que o Estado tomasse as providências necessárias. Tinha que acabar com o problema do poder público na mão do bandido. Agora a Dilma criou a Secretaria dos Direitos Humanos. Mas aqui ninguém tem direitos humanos, e bandido tem direitos humanos. O bandido pode matar, mas o trabalhador não pode dar um tapa no bandido."
As Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) que têm estado a ocupar as favelas não são solução que anime Lins. "Já tem UPP envolvida com bandido, vai ser pior que a milícia. Vai dar uma trégua [na violência] até 2016 mas passa as Olimpíadas e as UPP vão botar as unhas de fora. Todo o morador que queira fazer festa vai ter de pedir autorização e pagar."
Manoel tempera: "A sua visão é muito pessimista... Não tem esperança nessa polícia nova?" Lins responde com um ditado: "O policial, tanto faz ganhar um tostão como um milhão, não deixa de ser ladrão."
Tráfico no controleEm Vigário Geral, o tráfico era Comando Vermelho, em Parada de Lucas, Terceiro Comando. Agora senhor de ambas as favelas, diz-se que o Terceiro Comando fez um acordo com as milícias para explorar o tráfico sem armas na rua.
E não se entra em Vigário sem que o tráfico saiba.
Quando Manoel chega à sede do AfroReggae e fala com os rapazes, um deles sai para tratar do assunto. "Vão avisar a bandidagem que a gente vai circular..." É a política local.
Manoel não conhece nenhuma destas caras. "Faz 15 anos que comecei a trabalhar aqui e todos [aqueles com quem trabalhou] já morreram. Mesmo em Parada de Lucas, de 15 rapazes só sobram dois."
A sede chama-se Centro Cultural Waly Salomão, em homenagem ao poeta que quando se tornou secretário do Livro - no Ministério da Cultura de Gilberto Gil - disse numa entrevista: "Sonho com um povo mais bem alimentado, letrado, gostando de livro mas sem estar oprimido pela leitura. Minha meta é transformar o livro numa carta de alforria." Não teve muito tempo, morreu em Maio de 2003, meses depois de ser nomeado.
Lá dentro há estúdios com jovens bandas a ensaiar e um painel que diz: "Mais pessoas descobrindo sua importância. Vamos fazer juntos?" Cá fora um graffito: "Abra sua mão e divida com todos."
Seguimos caminho.
Uma banca de fruta, um talho fechado, uma igreja evangélica, uma lan house, como aqui se chamam os cibercafés. Ruas batidas pelo sol do meio-dia, um cavalo escanzelado a vaguear entre o cimento, uma porta de ferro onde alguém pintou a frase: "Deus é fiel".
À medida que avançamos, a cor desaparece. Tudo é cada vez mais pobre, mais pardo, mais quebrado, com crianças de cuecas, descalças. E o limite é um canal de rio, podre, com lixo a boiar e um cheiro que se entranha na pele.
"Isso era para ser tudo arborizado...", lamenta Manoel.
A uma hora de caminho do Rio reluzente, da gente gostosa e cheirosa, da oitava-economia-do-mundo-que-quer-ser-a-quinta.
Barraco após barraco, placas a dizer: "Vende-se".
Com Os DevastadoresForasteiro não fica sozinho. Neste caso, o nosso cicerone é Diogo, manager d"Os Devastadores, "funkeiros" em arranque de carreira.
"Agora você só "tá tranquilo na favela", diz ele. "O bandido já "tá todo na pista [cidade formal]. Agora "tão roubando de trabalhador. Daqui a nada você "tá no seu ponto [de autocarro] e vão pegar a sua marmita e o seu Rio Card [passe social]. Eu agora "tou tendo medo quando pego o ônibus. Boto Deus na frente e vou."
Separamo-nos à porta da Chupeta, a melhor tasquinha de Vigário. Chama-se assim porque a dona é mesmo uma mulata de chupeta, Lizietia Carmen Siqueira Rodrigues. Mesas corridas com plástico por cima, carne assada com feijão, arroz e farofa, uma delícia. E no fim, trazido por Diogo, aparece Alex Sandro, de 19 anos, "funkeiro" d"Os Devastadores, aparelho azul nos dentes, brinco de brilhante, manga cava, boné.
"Tem muita gente que pensa que o funk é para fazer apologia do crime. Não é isso. Os MC usam o funk para mandar recado para o governante ver o que acontece realmente naquele local." E o que acontece realmente é que o tráfico manda. "Você não é livre para falar o que quer. Tem de negociar. A gente faz show em outras comunidades e tem de pedir permissão." Diogo completa: "Tem de avisar que está indo para lá, que fazer show é o nosso trabalho." Quem os contrata? "São as associações de moradores. Mas não posso te afirmar se é o tráfico que dá o dinheiro."
Logo de arranque, houve uma conversa com o Terceiro Comando. "Tem que saber conviver com eles. Quando tem uma discussão de família, eles se envolvem. Tem como se fosse um tribunal, muitos fazem julgamento. Dizem que não querem bagunça na comunidade."
Se bloquearam o viaduto, foi para a polícia não entrar.
Amanhã: A cidade na cabeça dos artistas