A ilha dos portugueses
"Se vai ao meu país, não se esqueça de visitar a ilha dos portugueses." Foi com estas palavras que se despediu de mim o jovem secretário da embaixada da Birmânia, em Pequim, onde fui pedir um visto de turista, já lá vão uns bons anos. Dessa vez não cheguei a utilizar o visto requerido, mas essa coisa da "ilha dos portugueses" ficou a bailar-me na ideia durante algum tempo.
Quando, finalmente, visitei essa nação, levava a lição minimamente estudada, e sabia que essa "ilha portuguesa", a quase ilha de Sirião, fora de facto um feudo governado por um aventureiro português que, juntamente com os seus homens, soldados da fortuna como ele, deixou inúmera prole que ainda hoje reivindica a sua costela lusa, os denominados bayingys.
Os portugueses foram pioneiros na Birmânia, e quem primeiro nos relatou essa realidade foi o cronista Duarte Barbosa, que em 1501 rumou à Índia com uma frota de várias dezenas de navios, só regressando a Portugal quinze anos depois. No decorrer da sua viagem referiu-se por diversas ocasiões ao reino da Birmânia, com "os seus habitantes de pele escura que andam nus da cintura para cima", e aos "mouros e pagãos" (entre estes últimos estavam incluídos os chineses), os grandes comerciantes da época, rivais dos portugueses.
Também Fernão Mendes Pinto, na sua Peregrinação, refere-nos as riquezas da Birmânia, chamariz para mercadores portugueses, que ali demandavam a partir de Malaca, buscando as afamadas madeiras, cereais, laca e pedras preciosas como os rubis ou as safiras, entre tantos outros produtos, visitando no processo o arquipélago de Mergui, as cidades de Tavoy, Sirião, Bassein, Akyab, e tornando-se aliados do rei de Pegu. Chegaram acompanhados pelos respectivos capelões, e assim se foi instalando o cristianismo na região.
Mecânico de profissão, Will Abreu é um dos poucos luso-descendentes da Birmânia que guarda apelido português. Com ele vivem as duas filhas e um filho. Três dos seus irmãos vivem em Perth, Austrália, para onde partiram aquando da Segunda Grande Guerra.
Graças aos missionários barbanitas italianos - que ensinaram o português nas escolas por eles fundadas, que pediram livros em português à Europa, que compilaram dicionários latim-português-birmanês, que imprimiram livros em português - a língua de Camões foi uma realidade na Birmânia até aos finais do século XIX.
Em Rangum, a capital do país, há ainda a Rua do Cunha e as tipografias D´Rozário Press e a J. D´Silva Press. Há também o padre Salgado, as igrejas de Santo António e de Nossa Senhora de Fátima, as famílias Melo, Gomes, Ataíde, Sequeira, Lobo, Baptista, Fonseca e um Ministro dos Negócios Estrangeiros chamado Daniel Abel.
Em finais do século XVIII, o barbanita Vincenzo Sangermano salientava a existência de inúmeros cristãos em Rangum, havendo nessa altura duas igrejas; uma dedicada à Nossa Senhora da Assumpção "feita de madeira e de acordo com o estilo do país, com espaço para um milhar de pessoas"; e outra dedicada a São João Baptista, "feita de tijolos e cimento e maior do que primeira".
Actualmente, são cinco as igrejas católicas e uma delas, junto à principal artéria da capital, não muito longe dos ministérios, é dedicada a Nossa Senhora de Fátima. A estátua, de Nossa Senhora da Paz, virgem de Fátima peregrina, efectuou já duas visitas à Birmânia, sendo a mais recente em Dezembro de 1999. Estátua e placa comemorativa lembram o acontecimento. Foi lá que falei com o padre Gordon, que tocava um órgão movido a pedal nas missas de domingo. Garantia-me esse padre que a comunidade católica local preservava os seus apelidos portugueses, baptizando, casando e sepultando os entes próximos como faziam os seus antepassados. Perdurava ainda na memória colectiva o nome Ambrósio de Rosário, um aluno brilhante que em 1806 acompanhou Sangermano numa viagem a Itália, com escala no Brasil e em Lisboa. Ambrósio de Rosário viria a tornar-se um cirurgião de renome em Roma.
Enquanto no interior da igreja se rezava, cá fora, no terreiro, jogava-se à bola. E se os adultos associavam o nome de Portugal ao culto mariano e antonino, havendo a possibilidade de o nome de Vasco da Gama acender algumas memórias, às crianças o nome de Portugal lembrava invariavelmente o futebol. Rui Costa e Luís Figo eram apenas duas das estrelas do futebol mundial que diariamente mereciam a atenção nas páginas das revistas e jornais desportivos birmaneses, e eram as únicas referências de Portugal, pouco mais se sabendo a respeito do nosso país.
Entretanto, enquanto circulavam rumores da retoma do ensino do português na Birmânia a nível oficial - uma prática habitual até finais do século XIX -, havia quem o quisesse aprender e demonstrasse até aquilo que já sabia, fruto de uma aprendizagem por conta própria, como acontecia com o jovem Gregory Vaz que fez questão de me recitar alguns versos de Os Lusíadas, muito orgulhoso de ser senhor de um apelido igual ao do "nosso maior poeta", como ele próprio dizia.