Mangueira Eles são uma nação
É morro, favela e a mais famosa escola de samba do mundo, um mito do Brasil e uma devoção no Rio de Janeiro. O tráfico ainda domina, mas a polícia vai chegar. Hoje, a Mangueira encerra a primeira noite de Carnaval das maiores escolas. Lá estará Vadinho cantando o samba-enredo de 2011. Entre Janeiro e Fevereiro, a Pública foi à feijoada, ao ensaio, ao bloco e acabou no morro.
1. A feijoada
Eu vejo na televisão
A tropa invadindo o Complexo do Alemão
Eu leio nos jornais
Novas notícias de guerras mortais
Eu vejo muita corrupção
Enquanto irmão mata irmão
O bonde dos amigos invadindo o bonde
dos irmãos, não
Tanta guerra pra nada, nada, nada, nada,
nadaEssa letra tem voz: Vadinho Freire, mulato de tranças louras, o mais jovem cantor da Mangueira. Mirem-no só logo à noite, a encerrar o desfile no Sambódromo, todo majestade, com versos mais alegres, os do samba-enredo 2011: Mangueira é nação / é comunidade...
Príncipe, qual é o pente que te penteia? "Minha mãe é quem faz essas tranças", ele vai contar no fim da nossa viagem, violão no colo, bem dentro do morro, os meninos fazendo coro: Tanta guerra pra nada, nada, nada, nada, nada.Samba-rap saído do forno.
Mas para já, 13h30 de 8 de Janeiro, nem nos conhecemos. É o sábado da primeira feijoada do ano na Quadra da Mangueira.
Quadra é a casa de uma escola de samba. A Mangueira é a favela onde fica a mais famosa escola de samba do mundo. Então a Quadra da Mangueira é um mito no mundo e uma devoção no Rio de Janeiro. E o clímax será o desfile de Carnaval.
A Mangueira fica na Zona Norte do Rio. Quem vem da Zona Sul deixa para trás aquele perfil de morros e brilho, passa o Centro, a linha de comboio, o estádio do Maracanã em obras, vias rápidas, viadutos com barraquinhas por baixo. E lá ao fundo um frenesim, e eis o primeiro cartaz, em espanhol e inglês: "Bem Vindo à Mangueira. O deputado Chiquinho deseja a todos um 2011 repleto de amor e paz."
Quando do lado direito aparecer uma grande fachada verde-e-rosa, é a Quadra da Mangueira. Foi Cartola quem escolheu as cores. Fundador desta escola, Angenor de Oliveira, dito Cartola (1908-1980), deu ao mundo 500 sambas.
A porta tem fila, garotas da empresa patrocinadora com micro-saias, mulatos de músculo muito tatuados, e lá dentro já bomba um som. Uma garota-afro põe pulseirinhas de papel em quem entra. As grandes escolas são grandes organizações. Um assessor de imprensa está vindo, chama-se Júnior.
"Ontem teve show e todo o mundo saiu tarde", explica ele. "Esse horário da feijoada é mais para quem é de fora. As pessoas do samba vêm à noite, porque não têm tanto poder aquisitivo." Com 20 de entrada mais 10 para comer, a feijoada sai a 30 reais (13 euros). Então os moradores do morro comem mesmo em casa. "Descansam de dia para sambarem à noite."
Quando acabamos de subir os degraus, a Quadra abre-se em todo o esplendor. Uma pista rectangular ao ar livre, telões a fazerem de tecto, camarotes de cimento em cada extremidade, mesas de plástico dos dois lados, banda no palco.
A feijoada está a ser servida à direita e à esquerda, e pratos fumegantes atravessam em todas as direcções. "Ali é o camarote do Ivo Meireles, presidente da Mangueira", aponta Júnior. "Ele vai chegar mais tarde. E ali é o camarote da Renata Santos, a Rainha da Bateria."
A Bateria! Orquestra de percussões com nomes como surdo, caixa de guerra, repique, chocalho, tamborim, cuíca, agogô, reco-reco, prato e pandeiro. Pensem em 270 homens, mulheres e crianças, todos percutindo. É o que vai acontecer no desfile da Mangueira. E a Rainha à frente, vertiginosa, dançando.
Não confundir com a bandinha que agora toca, entretendo a tarde.
"A PISTA ESTÁ LIBERADA!", clama o vocalista. E a galera avança, deixando pratos a meio. Tem turistas estrangeiros, sim, mas muitos cariocas e brasileiros. Vê-se pelos pés: só um brasileiro samba assim. Pés sambando são uma nacionalidade, vêm de nascença. Mexer o bumbum pode ser para todo o mundo. Mas os pés?
Mesmo quando não é samba. A banda ataca Aquele Abraço, que Gilberto Gil escreveu no exílio para abraçar o Rio. Alô moça da favela! /Aquele Abraço!/ Todo mundo da Portela! / E do Salgueiro e da Mangueira! Uma velha mulata esfíngica dança só com a barriga. O Rio de Janeiro continua... A galera completa: LINDO!!!
Depois o som muda para canção do morro: Pode ser taxado de malandro / inconsequente / mas é meu mano... Uma jovem negra, vestido atado na nuca, samba nas costas do namorado.
E a costureira aposentada Vera Lúcia, toda verde-e-rosa, copo de coca-cola na mão, prestes a entrar no sonho: "O meu sonho é desfilar na Mangueira." Porquê a Mangueira? "Ah, isso é do coração. Minha neta já é Mangueira e tem seis anos." A Mangueira vai desfilar com 4000 pessoas divididas em alas. Pagam para isso: a fantasia pode custar uns 750 reais (327 euros). Vera Lúcia pagou e a feijoada é um ensaio para o desfile.
A repórter comprova: está saborosa.
E é então que entra em cena, esguio e firme, tranças platinadas, ténis verde-e-rosa com o nome escrito, Vadinho, apresentado à repórter como uma promessa da Mangueira.
Promessa de primeira linha: a escola tem quatro cantores sem hierarquia, Vadinho, 24 anos, é o mais jovem.
"Quem me trouxe para cá foi o Ivo [Meireles, o presidente], que me viu cantando noutra comunidade, em Niterói." Comunidade, ou seja, favela; Niterói, ou seja, a cidade do outro lado da Baía da Guanabara, onde Vadinho cresceu. "Cheguei aqui com 18 anos. O Ivo me convidou sem garantia de desfilar na avenida. E logo no primeiro ano conquistei isso."
O som lá dentro está tão alto que estamos a falar num canto do pátio. Vadinho abre os braços e começa a cantar o samba-enredo 2011, homenagem a Nelson Cavaquinho, outro ícone do Carnaval brasileiro, a par de Cartola ou Pixinguinha: Mangueira é nação / é comunidade / ....
"Mudei para cá, arrumei algumas mulheres, separei, casei, tenho um filho de seis anos..." É pai desde os 18. E com a Mangueira viajou: "Rússia, Argentina, Angola, o Brasil inteiro..."
Sendo sábado, esta noite tem ensaio a partir da meia-noite. Quantas pessoas virão dançar, umas cem? "Que é isso!!! Umas oito mil! Como vim de fora eu posso te falar: essa escola aqui é a única no mundo que tem a capacidade de atrair gente assim. Eu vivo disso, pago o meu carro, minhas contas, tudo. A Bateria da Mangueira inovou muito. Trouxe tudo o que é rico de outros ritmos." Mesmo vindo de fora, mais mangueirense é impossível: "Me vacinei com sangue verde-e-rosa. Esse ano estou montando um projecto com moradores, um projecto de inclusão."
Lá iremos, mas agora Ivo Meireles, o presidente está no palco. É um mulato com um cabelo platinado que parece, mas não é, cabeleira. "Quem é de fora do Rio?", pergunta ele para a pista. Bastantes, mas não a maioria. Um homem atravessa com uma T-shirt onde estão os 10 mandamentos do baiano. Um é "Viva para descansar." O seguinte não anda longe: "O trabalho é sagrado, não toque nele."
E José Simões Vieira, dito o Simões da Mangueira, locutor oficial, assiste a tudo sentado, por causa da perna que está mal. "Tenho 73 anos de idade e 45 de Mangueira. Nasci em Botafogo, mas no meu aniversário dos 19 anos vim à Mangueira e nunca mais saí. O pessoal me trouxe a umas quatro da tarde, saí às duas da manhã, me apaixonei."
Era soldado da aeronáutica, tornou-se compositor da escola. "Compus uns 30 ou 40 sambas-enredos. E fui duas ou três vezes vice-presidente, mas nunca quis ser presidente, porque é melhor ser amigo do rei do que rei. Esse presidente, o Ivo, vi ele na barriga da mãe, saí muito com ele, em muitos países. Fomos ao Japão, a Paris, a Bogotá, ao Panamá, ao México, a Portugal..." E o mundo também veio: "Mandela, a Rainha Elizabeth, Bill Clinton. A Mangueira é a única escola a que todas as autoridades vieram. O Bill Clinton passou três horas brincando com as crianças aqui e 20 minutos com o Presidente do Brasil."
É muito ano a ver passar o mundo. Mas ainda assim Simões continua a fazer o seu turno de locutor oficial. Hoje, por exemplo, vai a casa jantar, volta à meia-noite e fica todo o ensaio, até às cinco da manhã. E vem de Copacabana, lá na Zona Sul, onde mora há 48 anos.
Durante décadas cruzou os morros onde a política da polícia era entrar a matar e sair. Agora a política é UPP: Unidade de Polícia Pacificadora. Já há UPP em 16 favelas. O que tem acontecido nas favelas com UPP é que o tráfico sai e entram regras: por exemplo, nada de baile funk depois da meia-noite em dia de semana.
Ainda não há UPP na Mangueira mas vai haver, confirmou à Pública a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, escusando-se a adiantar uma data.
Que acha Simões? UPP é uma coisa boa? "Boa, não, óptima. Dá mas liberdade para as comunidades não ficarem escravas da bandidagem. Onde não tem UPP a bandidagem faz a comunidade de escrava." Na Mangueira também? "Não, porque a escola é dentro do morro e cria alegria na comunidade. Ainda ontem teve um baile que teve mais de 20 mil pessoas. E a bandidagem fica lá no cimo do morro, não perturba as pessoas." Mas nas outras favelas era demais. "Chegou num ponto em que o crime estava tomando as autoridades, que no Rio são muito corruptas. O governo foi obrigado a tomar uma atitude porque estava alastrando. O perigo que seria na Copa [do Mundo, 2014] e nas Olimpíadas [2016]..." Mas um sinal de que continua a alastrar foi a recente substituição do chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Allan Turnowski, na sequência de uma investigação que envolve agentes acusados de ligações ao tráfico e às milícias.
E entretanto que se passa no palco? Vadinho cantando. "EU SOU O QUÊ???", pergunta para a pista. "SOU MAN-GUEI-RA!!!", responde a pista.
Uma mulata de pernas intermináveis atravessa a multidão como se flutuasse. É um milagre da natureza, querem ver? "Chamo-me Márcia Anjo, tenho quatro filhos, três netos e 36 anos", diz a milagrosa a sorrir, tão linda que muda o espaço, passista da Mangueira, ou seja sambista. E o que isso significa é o que uma senhora, como todos nós maravilhada, bem diz: "Esta mulher não tem osso!"
2. O ensaio
No breu da favela, na madrugada
A única luz que se vê é a faísca de uma rajada
No breu da favela, na madrugada
O único som que se ouve é o apito
de uma macaca
É fogo cruzado, e tiro pra tudo que é lado
Pegue a criança no colo agora e saia voando
Foi o alarde geral
Tire a criança daí, ai meu Deus do céu
Proteja os meus filhinhos
Deus, Deus do céu
Proteja seus filhos de féIgor está com uma T-shirt verde-e-rosa e a namorada Priscilla trouxe os colegas americanos que trabalham com ela aqui, numa empresa de petróleo. "Esse ano a gente vai desfilar na Mangueira", diz, agarrando a palhinha da caipirinha de maracujá, unhas bem manicuradas, como toda a carioca. "A gente veio hoje para ver se aprende a música!" Do samba-enredo 2011, que vão ter de cantar no desfile: Mangueira é nação / é comunidade...
Hoje, sábado, 26 de Fevereiro, é o último ensaio na Quadra antes do Carnaval. São 22h30, ainda falta, ainda toca a banda, a cortina verde-e-rosa ainda não abriu para o espectáculo da Bateria.
Samba-enredo é só um, Mestre Nelson Cavaquinho, mas depois cada ala no desfile se divide em subtemas que homenageiam diferentes aspectos do Mestre, e cada ala tem a sua fantasia. "A fantasia da nossa ala é um macacão com uns negócios que saem aqui do ombro, e carregamos uma guitarrazinha em formato de coração", descreve Priscilla. Na hora portuguesa serão já umas oito da manhã de segunda-feira, porque a Mangueira encerra o desfile da primeira noite das escolas principais.
Duas matulonas com micro-saias pedem caipirinhas, e permanece a incerteza sobre se sempre terão sido mulheres. Uma delas sacode o fumo soprado por um mulato sem idade, sentado junto ao bar. A cabeça do mulato dá meia-volta em câmara lenta até ela, outra meia-volta de regresso como se ela não existisse, e sopra o fumo.
Sondagem rápida à pista: maioria absoluta de pernas nuas. Calção, salto alto e ténis: brasileiros. Bochecha corada e bolsa de dinheiro na barriga: estrangeiros.
Junto ao palco, o espectáculo dos passistas. Victor, de chapéu branco, girando com um Fred Astaire do samba sem nunca parar de sorrir. Vivianne, microvestido verde-e-rosa, pernas lancinantes e cabeça de bailarina, como se aquilo não custasse um ai. E crianças e pré-adolescentes, já sambistas, braços e sorriso aberto, pernas num sprint, exímios.
Os turistas, que pagaram 50 reais (22 euros), adoram tirar fotografias com os passistas, e os passistas estão aqui para isso. É trabalho.
E de vez em quando três mulatões de braços inchados como se fossem rebentar atravessam a multidão e ficam encostados ao palco, domando a cena. A T-shirt de um diz "Disciplina", mas não era preciso. Está na cara que são a primeira linha da segurança.
Como ainda não é meia-noite, a repórter decide sentar-se numa das mesas à beira da pista. Estão todas ocupadas, mas uma tem só um ancião negro e impávido, de chapéu, a beber uma água. Ele dá a sua permissão e ali ficamos, lado-a-lado, a ver a vida verdadeira.
Quanta honra, e a repórter nem sabe.
Este ancião é nada menos que Delegado, o maior mito vivo da Mangueira, amigo de Cartola e Nelson Cavaquinho, e esta é a mesa dele de sempre, vai explicar Vadinho, daqui a dois dias.
A banda engendra uma versão samba de If you think I"m sexy. A pista pula e grita. Por exemplo, Débora, gordinha de Botafogo, Diana, magrinha do Recreio, Ricardo, regressado dos Estados Unidos. "A gente cresce com algumas coisas que são muito fortes aqui no Rio", explica Débora em nome dos três, até porque temos de falar aos gritos. "E assim como tem muita gente que é flamenguense eu sou mangueirense."
A comparação é constante: ser Mangueira é como ser do Flamengo, o clube carioca mais popular.
A estonteante Laísa, passista de chapéu, calção e salto vertiginoso, dobra a perna para a foto e depois dança ao lado de uma mulher de 150 quilos, ambas à velocidade da luz. Há um momento a meio do samba em que o corpo simplesmente dispara.
E agora, 0h33, a cortina mexe, sim, a cortina abre, sim, é a Bateria!!! A pista arrepia-se, delira, como diante de deuses, todos batucando. O som é tão poderoso que quem não se mexer é porque está morto.
E a Rainha, Renata, morena de biquini faiscando, cabeleira em cascata, coxas poderosas, avança para uma varandinha central, ao lado de uma menina negra, 12 anos no máximo, vestida de rosa, fina e fulminante.
Se os anjos sambassem seria assim.
As pessoas erguem os braços e gritam: SOU MAN-GUEI-RA! Depois abraçam-se, como se o mundo fosse acabar, com braços e peitos, testas e pernas brilhantes de purpurina. O samba-enredo 2011 é cantado em loop, à exaustão.
Quando a repórter sai, pela 1h30, toda a rua é gente, uma massa compacta. Até às 5h será assim.
3. O bloco
Cuidado com o caveirão, tire a criança daí,
ela não merece ver isso não
Não chore mais irmão, não chore mais irmã,
não chore mais papai, não chore mais mamãe
A justiça de Jah [deus da tribo rasta] chegará
Ela tarda pra não falhar
A justiça de Jah chegará
A todo povo pobre da favela
Tanta guerra pra nada, nada, nada, nada, nadaDia seguinte ao ensaio: domingo, 27 de Fevereiro. Dois camiões verde-e-rosa numa esquina do Centro do Rio de Janeiro. Que é isto? É o Manga Bloco com dois trios eléctricos, ou seja, camiões de som, tradição importada da Bahia.
Porque Carnaval não é só desfile no Sambódromo. São centenas de blocos saindo pelas ruas em cada bairro, com e sem fantasia, de graça. Não contente em ser escola, a Mangueira também inventou o seu bloco. E a concentração é agora: desde as duas da tarde, apelo geral a que os mangueirenses se juntem na esquina da Presidente Vargas com a Rio Branco, duas avenidas daquelas de arranha-céus, onde ao fim-de-semana somem os funcionários e sopra algo desolado entre os cartões dos sem-abrigo.
Mas este fim-de-semana a esquina está tomada, todo o mundo com T-shirts da Mangueira, que Ivo Meireles, o presidente, ele mesmo, está a atirar de cima de um trio eléctrico.
Só os nomes desta gente valem uma tarde.
Vejam por exemplo Guaraciema com a sua bebé de oito meses e totós ao colo, já vestida de Mangueira, até ao biberon rosa, até ao babete verde. "É mangueirense, flamenguista, vai no ritmo, né Letícia?", pergunta para a filha. Guaraciema fazia faxina numa academia da Tijuca mas agora não trabalha. Veio de Campo Grande, Zona Oeste, lá longe, porque morou muito tempo na Mangueira. "Minha família está toda lá. Ser mangueirense para mim é de raiz, é alegria, é tudo de bom. Fui em outras escolas e não me toca. Adoro, sou apaixonada pela Mangueira."
Já Verónica, contabilista de Irajá, Zona Norte, 44 anos, avó, nem nunca morou na Mangueira. "Mas aqui é assim: a pessoa é aquilo que ama." Ao lado canta o belo Rodrigo, 28 anos, tranças verde-e-rosa, cabeleireiro fã-doente da Mangueira, mas morador no fim de tudo, a Baixada Fluminense. "Ser mangueirense não tem explicação." Abana as tranças à procura do impossível. "É muito, muito, muito amor. Os meus pais não eram mangueirenses, mas eu tinha dez anos quando vi pela televisão e me apaixonei tipo amor à primeira vista."
O próprio Ivo Meireles está a cantar, com a sua cabeleira tipo peruca, lá no topo do camião. A galera dança e pelo meio irrompe Gustavo, em pontas: "Oi, me ajuda a entrar no Big Brother! A gente é do balé!" Maiô rosa, saia de frufru, meia de rede. Só sapato é que não, ténis em vez de sapatilha. Um clássico do Carnaval, vai para nove anos, explica Gustavo. "Todo o ano a gente vem."
A gente é por exemplo este moço que agora vem abraçar-se a ele, olho azul e caracóis, Murilo, 30 anos, marketeiro de uma empresa de discos; ou Sérgio, consultor de gerenciamento de projecto, morador no bairro do Flamengo. Um corpo de baile com três, todos rosa, sem verde.
Muitos sambistas têm só a T-shirt da Mangueira como extra, mas há várias fantasias soltas. Garotas de cancan mostrando calcinhas de cetim. Garotos de vampiro, escorrendo sangue dos caninos. Anjos de asas negras. Ou só plumas, ou só flores no cabelo.
E passa um vendedor de algodão-doce de tronco nu, torso de estátua. E catadores de lixo olhando para o chão, batendo o pé nas latas de cerveja para amolgar. E vagabundos embrulhados em panos, falando a sós, mirando tudo.
A Bateria concentra-se aos pés do último trem eléctrico, tambores no chão com carimbos que dizem: "Tem de respeitar meu tamborim!" O mais novo da Bateria tem 14, o mais velho 80, e é este negro de bigode branco, Hélio de Oliveira. "Tenho 80 e 72 de Bateria, nascido e criado na Mangueira. Paguei muita bebida para Nelson Cavaquinho. Eu tinha 16 anos quando conheci ele. Ele bebia muito e era grande compositor." Que fez Hélio toda a vida, além da Bateria? "Sou bicheiro aposentado." Ou seja, "banqueiro" do Jogo do Bicho, espécie de lotaria com desenhos de animais que é um clássico da contravenção carioca, ilegal em quase todo o Brasil.
"SOMOS UMA NAÇÃO!!!", grita o locutor no topo do trio eléctrico. Batem as 17h, e atrás da verde-e-rosa só não vai defunto. Após três horas de concentração, o Manga Bloco arranca pela Avenida Rio Branco, deitando a fumarada de dois camiões. Melhor mesmo é ir ao lado do trio eléctrico, ou, ainda melhor, na frente.
O trânsito foi interrompido para isto. Toda a avenida é da Mangueira. E não tem turistas como no ensaio. É povão, mangueirenses de criação, sambando no asfalto. De um lado e do outro, a imobilidade vertical dos arranha-céus, aqui e ali as flores mortas que restam do art-déco, e no meio a explosão morena, vibrante, de corpos em todas as direcções.
Uma forma de soberania.
Flexível como um caule, um menino ainda adolescente e muito lindo samba travestido de peruca, peito falso e chinelo: que importa o acne na cara com este sorriso? As pessoas espetam o dedo no ar e riem para o desconhecido, depois caem nos braços umas das outras, jubilantes, com partes de cima de biquini em peitos peludos ou cabeleiras de Cléopatra. Do Norte de África ao Golfo, o mundo arde, mas o Brasil dança, parando o mundo: SOU MAN-GUEI-RA!!!
Uma morena grita ao ouvido da repórter "Você escreve muito rápido!" enquanto troca os pés a cem à hora. Outra agarra um tridente de diabo e berra: EU TE AMO / EU TE ADORO / MEU AMOR!!!, porque é a canção que agora vem lá do céu, do trio eléctrico. E todo o mundo pula, velhos e relhos, rechonchudos e malnutridos, nicos de gente: EU SÓ QUERO AMAR!!!
Como não os amar? Olhem para o chão: toda a gente tem pelo menos um pé no ar.
Por exemplo esta mãe com uma bebé no ombro, pernas de manequim, sandália altíssima. Não parece mas também é: mãe das quase-adolescentes que em volta sambam como princesas morenas de cor-de-rosa, cabeleiras até ao rabo como não existem na Europa, já sobrancelhas depiladas numa linha fina. Mas também aqui dançam mulatas que nunca aparecerão em cartão-postal, despigmentadas, tortas de tão magras, disformes de tão gordas, pobres, feias e aqui, rindo. "Fabulosa é a vida", diz o chapéu de uma mulher.
"PÁRA DE ESCREVER!!!", grita ao ouvido da repórter o menino ainda adolescente e muito lindo, endireitando a peruca. Chama-se Diego, tem 19 anos, é passista da Mangueira. "Nascido e criado lá!" E tira o chinelo, e samba descalço, rindo para o céu.
Quem é a sambista a seu lado? Também passista? "Não! Sou a tia dele!" Chama-se Elane, tem 29 anos, é fisioterapeuta, vem de Vila Isabel. Mas Vila Isabel tem uma óptima escola e, pelo que a repórter viu na oficina das escolas, está em condições de impressionar o Sambódromo este ano. "Mas eu sou Mangueira, porque a minha mãe morou lá e amo a Mangueira! É muito mais divertida e emocionante!"
Entretanto, o Flamengo joga para a conquista da Taça Guanabara. Vai ganhar 1-0, golo de Ronaldinho, muito antes de este bloco acabar.
4. O morro
Abrace a criança, tranque a porta,
feche a janela
Tiro come solto, homens de preto
tomando a favela
Foi em novembro, dia 27 eu me lembro
RJ TV registra os bandidos correndo
Comércio fechado, povo apavorado
Em cada canto da cidade um carro incendiado
Policiamento ostensivo, sem arrego e perdão
Primeiro passo dado rumo à pacificação
2011 chegou, muita coisa mudou
Lá no Complexo finalmente a paz reinou
Hoje em dia, só alegria, quem diria?
A pista trouxe de volta o sorriso da periferia
Que levanta cedo e dorme tarde
Pega o busão [autocarro] lotado, todo dia,
rumo ao centro da cidade
Crianças brincando nas ruas, hoje sem clima sombrio
Voltar a ser como era antes? Cê é louco, tio!Vadinho não foi ao ensaio nem ao bloco. Esteve a cantar em Niterói. Mas hoje, segunda-feira, 28 de Fevereiro, vai estar no Morro da Mangueira, e quer mostrar o arranque do seu Batuque Favela, o tal projecto de inclusão.
Combinámos pela hora de almoço. Até lá chegar a repórter ouve o taxista, mangueirense devoto, falar do bem que a cantora Alcione fez à comunidade, e daquela sopa que havia numa birosca do Buraco Quente.
Birosca é uma banca de petisco. Buraco Quente é a rua mais célebre da Mangueira. E é onde Vadinho está a almoçar a esta hora, explica Anderson, 37 anos, óculos escuros, cabeça rapada, camisa do Flamengo. "Sou tio do Vadinho!" Vadinho enviou-o para pescar a repórter frente à Quadra.
Buraco Quente: ladeira de favela; cascatas de casas com tijolo à vista e o alumínio mais barato; homens de tronco nu sentados em cadeiras de plástico, pernas estendidas; garotas sentadas em becos, pernas flectidas, queixo na mão. O tédio de quando não sobra nada entre os acontecimentos, com crianças pulando no meio, sempre pulando.
Subimos um degrau, entramos por uma frecha, Vadinho aparece na penumbra, sentado com dois amigos. O restaurante chama-se Isaías e ainda tem as portas de correr fechadas, mas ele já comeu um "frango à parmeggiana". Um dos amigos é Johnny, produtor de Vadinho, o outro é Alexandre, presidente do projecto. Mangueirenses do morro, brancos de mochila com jeito de bom aluno ou jovem pai.
"Aqui no Buraco Quente é que nasceu a Mangueira", diz Johnny, quando saímos para a rua, à espera de Renan TanQ, branco de boné, cara de menino, 21 anos, o rapper que também "graffita" e vai "graffitar" a sede do Batuque Favela.
"É um projecto que nunca teve aqui", diz Vadinho. "Comparável ao AfroReggae." ONG presente em várias favelas, que se tornou uma influência poderosa.
Estamos a subir a ladeira, passando escadinhas e becos, e atraindo crianças: "Esse aí é o Rafael", apresenta Vadinho, abraçando um garoto de cabelo à Cristiano Ronaldo mas realmente bonito. "Ele anda na comunidade de radinho [rádio] ligado..." Cantando, aos 13 anos.
A sede do projecto é um armazém onde até agora se guardavam as caixas de som do baile funk das sextas-feiras. Paredes verde-sujo, ainda uma pilha de caixas-de-som, e ao fundo uma outra divisão imunda. Vadinho quer mostrar como tudo está para depois mostrar como vai ficar. Acabou de conquistar este espaço.
"Depois que vier a UPP para aqui, não vai ter mais esse baile funk." E quando imagina ele que isso acontecerá? "Vai ser depois do Carnaval, mas não tem previsão. E a directoria do morro..." Faz sinal de aspas com os dedos ao dizer "directoria", ou seja, o poder paralelo. "... a directoria do morro cedeu este espaço para a gente. Eles, do poder social [a UPP], iam querer a polícia aqui, porque eles tomam os melhores lugares, mas a gente botou os papéis."
O espaço é grande, a meio da ladeira do Buraco Quente, e por isso cobiçável. Enquanto vagueamos entre paredes, Vadinho confere as mensagens no BlackBerry e depois mostra o logótipo do projecto. Tem tudo no telemóvel: rádio para comunicar sem pagar chamadas, fotos, música, email, redes sociais.
E agora quer mostrar mais duas coisas: o estúdio-que-vai-ser e a casa onde mora. Então voltamos a descer a ladeira, passando por uma parede de azulejos com imagens da Sagrada Família, onde uma imagem incrível se forma por instantes: a da pequena Vitória, nove anos, com a priminha bebé ao colo, como uma Madona com bambino. Ela não descansa até ter a certeza de que a repórter não só anotou o nome dela como o dos meninos em volta: "Você escreveu o nome deles?" A repórter não tinha escrito, e escreve: Renan, Beinho e Paulo.
Mais adiante, Vadinho cumprimenta um negro que ensina futebol às crianças da comunidade. Chama-se Ariquernan, assim mesmo. "Esse nome não tem sócio", admite ele mesmo. Todo o mundo lhe chama Ari.
Para chegar ao estúdio-que-vai-ser, voltamos a entrar no restaurante do Isaías. "É a melhor comida do morro", diz Vadinho trepando os degraus de cimento. Contornamos uma máquina de lavar, bacias, na primeira sala há roupa pendurada de canto a canto. "Aqui vai ser o estúdio", diz ele abrindo os braços. "Vai chamar-se Toca do Buraco. Existe a Toca do Bandido e aqui vai ser a Toca do Buraco. Vários compositores do morro ficam procurando estúdio, mas na comunidade não há. Existe a rádio comunitária, mas não faz gravação. Eu vou gravar samba-enredo, MC"s, funk, pagode, mas a prioridade é samba-enredo. Aqui vão nascer as obras que agora ficam enterradas porque eles não gravam."
Passamos à sala seguinte: garrafas vazias, uma bicicleta, um fogão velho, uma ventoinha, uma velha TV, janela para os barracos de cimento, os cabos convulsos, e a bandeira do Flamengo ao vento.
Mais um lance de escadas e desembocamos no terraço, aqui chamado laje. "É a minha laje!" Vadinho roda em volta, mirando cimento e tijolo. "Antigamente era tudo de zinco, como diz Cartola..." E canta: O morro com seus barracões de zinco/ Quando amanhece que esplendor / Todo mundo te conhece ao longe/ Pelo som dos seus tamborins/ E o rufar do seu tambor / Chegou ô, ô, ô / A Mangueira chegou, ô, ô... É o samba "Exaltação da Mangueira".
Depois aponta uma casa branca em ruínas. "Essa casa era do dono do morro. O cara está preso. Era toda linda, com piscina, tudo o que você puder imaginar."
Ladra um cão ao longe. Descemos.
E com Johnny, Alexandre, Anderson e TanQ, metemos mesmo para dentro, labirinto de esquinas e buracos que podia ser um campo de refugiados no Líbano, linha de esgoto a passar no meio dos pés.
Vadinho vai dizendo quando dá para tirar fotografias e quando não dá. Quando não dá, há sempre rapazes sentados, tatuados, de tronco nu. Depois vira-se a esquina e já dá outra vez. O grupo até pára junto a um poste, para Vadinho cantar estes versos que nos acompanham desde o começo: Eu vejo na televisão/ A tropa invadindo o Complexo do Alemão / Eu leio nos jornais / Novas notícias de guerras mortais... Acompanha com batuque na parte em que entra o rapper TanQ: Abrace a criança, tranque a porta, feche a janela / Tiro come solto, homens de preto tomando a favela. E quando acaba diz, apontando em frente: "Daqui para lá, se você não vir uma pessoa me pedindo para cantar essa música, eu mudo o meu nome!"
Daqui para lá há garotas em muros, garotos num pátio, um Pit Bull a rosnar no tecto, uma imagem de Nossa Senhora da Glória, túneis, vielas, passagens. O nome dos "bairros", sucessivamente: Inferninho, Três Tombos, Olaria. "Para baixo não pode tirar fotos..."
E estamos à porta do "apê" de Vadinho. Apê é como os brasileiros chamam aos apartamentos. Neste caso uma salinha com grades na janela, um quartinho onde cabe uma cama, um esboço de cozinha, uma luz sombria de cimento.
Vadinho mostra o fato branco pendurado ao lado da cama com a palavra "Músico" bordada no bolso: "É o terno do meu primeiro desfile em 2008." Depois o retrato de um menino numa moldura infantil: "O meu filho Gabriel, que vai fazer sete anos. Vou fazer a maior festa para ele..." E depois um fato direitinho em cima da cama. "Esse é o terno do enredo de 2009. O tema era miscigenação. Aqui tem o índio, o caboclo, o europeu..." Estampados em metade do fato.
Sendo anfitrião, Vadinho quer oferecer bebidas. Então agarra um violão. "Vou mostrar um segredo para vocês...." E começa a sacudir até cair dinheiro de dentro. Dá uma nota a quem lhe vá comprar coca-cola e senta-se no único móvel da sala, violão no colo. As crianças amontoam-se primeiro à janela, depois à porta. E cantam com ele: "Eu vejo na televisão...."
Já gravou um disco caseiro, agora prepara outro que se vai chamar "Nova Vibe".
Uma garota aparece por trás das grades. É Ana Lúcia, 32 anos, secretária do Mano, presidente da Associação de Moradores da Mangueira. Fica ali a ouvir, por exemplo o hino do projecto de Vadinho: Sou da favela / mas não sou favelado...
Muita canção até sairmos para ir espreitar o bar do Paulinho. "O Paulinho é um cara importante na minha vida", diz Vadinho. "Me acolheu quando cheguei. Ele era forte no crime e agora está trabalhando de limpeza na Rodoviária. Isso me chamou muito a atenção. Olha a música que fiz para ele: A vida de bandido já não faz sentido..."
E lá em baixo os caras que não podem ser fotografados.
Abra o seu coração / faça de nossa canção a mais linda oração...
A essa hora Paulinho está a trabalhar, a esperança de Vadinho era achar a mulher, mas também não acha e ficamos encostados a um graffito, ele a cantar. A gente passa e pergunta: "Tudo bom?" E ele responde: "Na paz..." Depois está ao telefone com uma menina de Curitiba, todo charmoso. "Não é namorada", descarta, ao desligar. "É uma amizade colorida: não estou casado, não estou nessa vida. Porque um dia já fiz essa loucura de achar que era o amor da minha vida, e não era."
Volta a encostar no graffito, perna traçada, violão: Porque ainda existe a esperança / sei que às vezes existe a vontade de fugir / jogar tudo para o alto / mas o destino é seu... No braço tem tatuada uma chama.
Moram umas 35 mil pessoas no Morro da Mangueira, e tudo tão calmo como uma aldeia.
Fechamos a tarde voltando à Quadra. Alexandre, o presidente do projecto, vai despedir-se, mas antes conta um pouco da sua vida, aproveitando que Vadinho deu um pulo a casa, para trocar de camisa. Aos 38 anos, Alexandre é avô de um neto, já com outro a caminho. "Sou encanador e tesoureiro da Associação de Moradores, mas não parei de estudar. Faço cursinhos. Todo o mundo que está na equipa, graças a Deus, não usa drogas, todo o mundo está casado." Refere-se à Associação de Moradores.
Vadinho vem de camisa fresca, soltando as tranças e é então que conta: "A minha mãe aprendeu só para fazer em mim. E agora está ganhando dinheiro com isso." Porque cada pessoa que pergunta quem lhe fez as tranças e quer fazer igual vai direcionada lá para Niterói. E de 15 em 15 dias o próprio vai lá fazer manutenção.
Nisto, estamos diante de um casebre verde, com porta de chapa, grades na janela. "Esta é a casa do Delegado, um ícone vivo", anuncia Vadinho, com respeito. Palavra puxa palavra, a repórter percebe que o ícone vivo era aquele ancião negro ao lado de quem esteve sentada no ensaio da Quadra. "Titio!", chama Vadinho, batendo na porta. Mas o Delegado não está.
Já à porta da Quadra aparece outro cantor da Mangueira, Ciganerey, que no ensaio de anteontem cantou até às cinco da manhã e ficou sem voz, e Tuany, a jovem mulata musa do Batuque Favela, quase-19 anos de esplendor, aparelho azul nos dentes e um ursinho pendurado no bolso dos calções.
O plano é sentarmo-nos todos no meio da Quadra, agora deserta, a falar. Mas no momento em que nos sentamos a escuridão que se acumulava no céu desaba toda. Chuva torrencial ao ponto de os telões não protegerem e fugirmos para um canto.
Então falamos de UPP.
Que pensa Vadinho?"Pelo que ouço das pessoas do morro, acho que 75 por cento não é a favor. Aqui, quem é de fumar, fuma, quem é de beber, bebe, faz churrasco na porta de casa na hora que quiser. Com UPP não vai ter essa liberdade. Aqui o baile funk começa às dez da noite vai até às dez da manhã, de ponta a ponta do Buraco Quente..."
"Até à UPP chegar", atalha Tuany, carrancuda.
Sondagem em volta: quem é a favor da UPP? Nem um braço. Mas Vadinho tempera: "A minha opinião é dividida. Não sou tão a favor, mas se entrar todo o mundo vai ter de se adaptar." Então por partes. Desvantagens? "Os limites impostos pelo poder social. Já cantei no Morro de Santa Marta [que tem UPP] ao lado de um policial. Lá, festa tem de ser até meia-noite. UPP é isso: eles é que mandam, eles é que ditam." Vantagens: "Não tenho dúvida de que vai trazer benefícios para a comunidade, inclusão social, cultura, patrocinadores, empresas que têm vontade de vir pelo nome da Mangueira, de Cartola, de Nelson Cavaquinho, mas que vêem na UPP uma outra segurança."
Tuany lembra um funk que diz que se a UPP botar a cara / os caras do morro vão fuzilar. Vadinho responde: "Mas não vai fuzilar nada, porque não tem armas, não tem como. Contra força não há resistência. Entrou no Alemão com quartel-general e não entra aqui?"
A Mangueira é umas 10 vezes menor que o Complexo do Alemão.
Mas Tuany não se fica: "A minha visão é que isso não vai trazer nada, e melhor ainda é ficar com os caras do morro [tráfico]. As pessoas do Alemão estão falando que antes tinham água porque o tráfico dava água todo o dia."
Vadinho contrapõe: "Depende do lugar. No Santa Marta, a UPP foi o melhor. Tudo organizado, todo o mundo com um cantinho para vender as suas coisas. Mas no Alemão já não é assim."
O facto é que o Alemão ainda não tem UPP. Só chegará dentro de meses.
Mas chega de UPP: o Carnaval está aí. Eles estão nervosos. Desfile no Sambódromo é o mundo inteiro a olhar para um ano inteiro de trabalho.
"A Mangueira é o sonho de qualquer cantor e eu acabo de realizar o meu", diz Ciganerey, que é muito mais velho mas entrou há menos tempo do que Vadinho para a escola. "Espero nunca mais sair daqui, porque ficar lá fora sofrendo é foda."
Vadinho pergunta-lhe como está a encarar o desfile de domingo.
"Acho que a Mangueira vai ser a grande surpresa da avenida", responde Ciganerey, acrescentando que os operários que estão no barracão a ultimarem os carros disseram que vai ser o melhor desfile da Mangueira em anos.
A escola favorita ia ser a Grande Rio, dizem todos. Depois houve aquele incêndio que queimou os barracões de três escolas e a Grande Rio foi a mais afectada. Vadinho acha que foi fogo posto para tramar a Grande Rio. "Ia ganhar, tinha tudo pronto..."
Agora vamos ver.
Domingo é hoje.
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